Como a medicina controlou o corpo feminino ao longo da história


Livro mostra como a profissão médica, historicamente dominada por homens, tratou dos males femininos

Por Susan Okie
Atualização:

Elinor Cleghorn está indignada. Na sua ampla narrativa sobre como a medicina ocidental há séculos não leva a sério as doenças que afligem as mulheres, a cólera da escritora é perceptível em quase todas as páginas do livro.

'Uma Lição de Medicina', pintura de André Brouillet de 1887 que mostra médicos examinando uma paciente mulher Foto: Paris Descartes University

O que não surpreende: ela convive com uma enfermidade chamada lúpus eritematoso sistêmico, doença inflamatória autoimune grave muito mais frequente em mulheres do que nos homens, que ataca vários órgãos e é difícil de diagnosticar e tratar. Analisando o tratamento de “mulheres enfermas” através da história, ela acusa uma profissão médica dominada por homens, desde os tempos passados até os dias atuais, de não atentar para os relatos dos sintomas feitos pelas mulheres e elogia alguns médicos, homens e mulheres, que considera exceções.

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“Nossas doenças não são ininteligíveis para nós. Mas alguma coisa a respeito delas parece impedir e frustrar a medicina o tempo todo”, escreve ela.

Como médica e jornalista especializada em medicina, eu já estava familiarizada com as muitas formas com que a medicina tem ignorado doenças femininas ou deixado de investigar suas causas, mas o livro de Elinor Cleghorn, Unwell Women: Misdiagnosis and Myth in a Man-Made World faz conexões entre o papel do médico e o interesse da sociedade em controlar o corpo das mulheres que nunca avaliei completamente. Em cada era, desde os ensinamentos do médico grego da Antiguidade, Hipócrates, aos debates do século passado sobre o acesso das mulheres aos métodos de contracepção e aborto, Cleghorn detecta pressupostos econômicos e sociais comuns: que as mulheres são inferiores aos homens; que seu principal propósito na vida é casar e ter filhos; que excesso de educação é ruim para elas; que as mulheres, por natureza, são vulneráveis a doenças “misteriosas”, físicas e mentais; e que a sexualidade feminina é perigosa se não for controlada - bastante perigosa durante alguns períodos para justificar a remoção dos órgãos sexuais femininos, a prescrição de tranquilizantes viciantes e mesmo uma cirurgia cerebral.

Sem sexo frequente e sem procriar, sugeriu Hipócrates nos seus escritos médicos nos séculos 4 e 5 antes de Cristo, o útero feminino “vagava” para cima na direção do fígado e então bloqueava sua respiração, levando a mulher à morte. Mais tarde sua teoria deu origem à palavra “histeria” (de hystera palavra grega para útero), termo usado para denotar um transtorno mental (normalmente em mulheres) que provocava uma excitação emocional, ansiedade e sintomas físicos, que os médicos consideravam fictício. Até o final do século 19, escreve Cleghorn, a histeria era “o diagnóstico para toda e quaisquer patologias “femininas” que os médicos não conseguiam compreender”.

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Durante séculos, a medicina continuou a atribuir poderes estranhos ao sistema reprodutivo feminino. Em 1651 William Harvey, médico que ficou famoso por explicar a circulação do sangue, declarou que “a condição antinatural do útero” (ou seja, a falta de sexo marital) podia causar sintomas mentais do tipo mais grave”. Duzentos anos depois, outro médico britânico, Edward Tilt, sugeriu que as mulheres jovens irritavam seus ovários quando andavam a cavalo ou viajavam de trem durante a menstruação - especialmente se estavam nervosas ou tinham longos cílios. Na Inglaterra no século 19 a menstruação era mencionada como “doença” e se achava que as mulheres não deviam trabalhar, se exercitar, ter atividades sociais ou intelectuais durante aquele período do mês em que ela menstruava.

Mas não menstruar era visto como algo perigoso também. Em 1972 um cirurgião americano, Robert Battey, removeu os ovários de Julia Omberg, de 23 anos, para tratar um cansaço debilitante que ela dizia ser ocasionado pela falta de períodos menstruais. A sobrevivência da jovem levou Battey e outros cirurgiões a removerem os ovários de outras mulheres (e assim esterilizando-as) durante os anos 1880 e 1890 “em hospitais públicos na Grã-Bretanha e instituições psiquiátricas nos Estados Unidos”.

Às vezes esta e outras cirurgias eram realizadas em mulheres como tratamento para a masturbação ou outro comportamento considerado extremamente sexual. Em muitos Estados americanos, a esterilização sem consentimento das mulheres com doenças como epilepsia ou doença mental foi legalizada no início do século 20, durante o movimento de eugenia, especialmente depois de uma decisão da Suprema Corte, em 1927, que sustentou a legalidade da esterilização forçada de Carrie Buck, de 17 anos, em Lynchburg, Virgínia. Nos anos 1940 e 1950, uma operação no cérebro chamada lobotomia pré-frontal, ficou popular como um novo tratamento para curar a depressão e outras doenças mentais. As mulheres constituíam 75% dos pacientes submetidos a essas “psicocirurgias” realizadas por Walter Freeman e James Watts, dois médicos famosos nos Estados Unidos. “Numa era em que a mulher mentalmente saudável era a esposa e mãe serena, qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica podia ser interpretada como justificativa para uma lobotomia”, escreve Cleghorn.

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Antiga estudiosa de ciências humanas e estudos culturais na universidade de Oxford, Cleghorn concentrou sua pesquisa na Europa Ocidental, particularmente na Grã-Bretanha, e nos Estados Unidos. Ela aponta os importantes avanços no entendimento científico do corpo feminino, mas não explica em detalhes. Durante a maior parte do período que ela cobriu, as mulheres não tinham permissão para se tornarem médicas. Elizabeth Blackwell, nascida na Inglaterra em 1849, foi a primeira a se diplomar em medicina em uma faculdade americana. Na Grã-Bretanha, em 1865, Elizabeth Garrett Anderson foi a primeira mulher a obter uma licença para a prática de medicina.

Somente mulheres brancas, da classe mais alta, eram tratadas por médicos. Muitas outras tiveram filhos assistidas por parteiras e suas febres e feridas eram tratadas por membros da família ou curadores locais. Mas os corpos de mulheres pobres, incluindo prisioneiras executadas, às vezes eram fornecidos a médicos para serem dissecados e para estudos anatômicos.

No século 19, na Inglaterra e nos Estados Unidos, considerava-se que as mulheres negras sentiam menos dor do que as brancas - “suposições racistas”, observa Cleghorn, “que tiveram reflexo na prática médica atual”. Em 1845 um cirurgião americano, James Marion Sims, baseou-se nessa crença para justificar a realização de várias operações experimentais, sempre sem anestesia, em três mulheres escravas, Anarcha, Betsey e Lucy. As três sofreram danos pélvicos durante o parto dos seus filhos que causaram problemas de vazamento da urina da bexiga para a vagina, Sims quis realizar uma operação para corrigir o problema, mas visando outras pacientes, mas para isso infligiu uma tortura inimaginável a essas três mulheres, impotentes para recusarem. Anarcha se submeteu ao experimento cirúrgico mais de 30 vezes.

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Nos anos 1850, tanto mulheres brancas como negras aderiram às campanhas por direitos iguais e o direito ao voto. Mudanças políticas e sociais, embora lentas para se materializarem, já começavam a surgir. Em 1914, Margaret Sanger, enfermeira e ativista, começou a distribuir um folheto para as mulheres sugerindo receitas e remédios caseiros para evitar uma gravidez indesejada e logo depois abriu uma clínica no Brooklyn. Processada judicialmente, ela foi presa com base em leis deficientes, ela insistiu no seu argumento de que as mulheres deviam ser donas do seu próprio corpo, cunhando o termo “controle de natalidade”. Sua contemporânea, a ativista britânica Marie Stopes, publicou um livro popular para educar as mulheres inglesas sobre sexo e, em 1921, abriu uma clínica em Londres para mulheres casadas que fornecia assistência e até contraceptivos. Infelizmente, como Cleghorn relata, apesar da sua importância como defensoras da saúde reprodutiva das mulheres, os registros de Sanger e Stopes estão manchados por suas crenças na eugenia. Sanger defendeu a esterilização para “as loucas e de mente fraca” e aquelas com “doenças herdadas ou transmissíveis”. Hoje, “controle de natalidade” implica o controle pelo Estado ou outros, e não é mais usado comumente.

A palavra “hormônio” entrou no léxico médico em 1905 para descrever secreções do pâncreas e foi logo usada para outros mensageiros químicos produzidos por qualquer das glândulas do corpo. No caso das mulheres, o século 20 foi a era dos hormônios e da terapia hormonal. Enfim, cientistas e médicos aprenderam como os ovários funcionam de fato, o que desencadeava o período menstrual e porque as mulheres passam por uma menopausa. Os hormônios “femininos” estrogênio e progesterona, junto com outros, é que dirigiam a orquestra.

A descoberta desses hormônios e o desenvolvimento de drogas para imitar seus efeitos resultou primeiro no remédio extremamente popular Premarin, um estrógeno que foi promovido para mulheres na menopausa, e mais tarde levou aos anticoncepcionais na forma de pílulas, injetáveis ou implantáveis e remédios atualmente aprovados pela FDA para aborto médico. Sem dúvida essas invenções mudaram, e ainda vêm mudando, a vida das mulheres. E no caso das empresas farmacêuticas, para elas também foram abertas oportunidades de marketing de enorme sucesso financeiro.

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Embora a menopausa seja um processo natural, os ginecologistas tendem a vê-la como doença que pode hoje ser tratada com hormônio. Antes e durante a menopausa, as mulheres sofrem com “ondas de calor”, mudanças nos seus períodos e às vezes alterações de humor. Para muitas, os sintomas são temporários. O Premarin foi comercializado em 1941 “para abrandar sintomas severos da menopausa”, afirma Cleghorn, mas também era “vendido como um alívio para os maridos que não podiam mais suportar o humor belicoso das suas esposas”. As mulheres foram encorajadas a acreditar que o Premarin as manteria com aparência jovem e “eternamente feminina”, citando o título de um manual de uma farmacêutica.

Cleghorn não menciona a sequela: mais de 60 anos depois, pelo menos 40% das mulheres que passaram da menopausa estavam fazendo terapia hormonal quando resultados de um estudo amplo que durou vários anos sobres os efeitos do tratamento, o Women’s Health Initiative, foi publicado. Depois de acompanhar mais de 27 mil mulheres durante um tempo médio de 13 anos, os pesquisadores concluíram que os riscos daquele tratamento mais comumente adotado superavam os benefícios. A terapia hormonal aumentava o risco das usuárias de contraírem um câncer invasivo da mama, sofrerem um AVC e terem coágulos sanguíneos, emboraajudasse a prevenir fraturas de quadril e diabetes. O tratamento hormonal depois da menopausa já não é mais recomendado.

Cleghorn oferece relatos sobre a ascensão do feminismo e do movimento pela saúde da mulher, incluindo as controvérsias médicas e éticas em torno dos primeiros contraceptivos orais nos anos 1950. Esses contraceptivos foram testados em mulheres pobres de Porto Rico que não foram avisadas dos possíveis efeitos colaterais e tampouco foi pedido o consentimento delas.

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Cleghorn relata a formação de grupos ativistas nos Estados Unidos cujos membros davam aulas às mulheres sobre seu próprio corpo, faziam lobby para o establishment médico e em alguns lugares treinaram ilegalmente pessoas para realizarem abortos. Nos anos 1960 quando uma a cada seis mortes relacionadas à gravidez era causada por um aborto não realizado com segurança, as ativistas também lutavam pela legalização do aborto a nível estadual. Our Bodies, Ourselves (Nossos corpos, nós mesmas), um livro do Boston Women’s Health Collective, foi publicado em 1971 e vendidos 230 mil exemplares naquele mesmo ano.

Em 1981 a ativista Byllye Avery lançou o National Black Women’s Health Project para criar uma comunidade onde as mulheres negras poderiam falar sobre seus próprios problemas de saúde, incluindo a mortalidade materna e de recém-nascidos, câncer de mama, doenças renais e do coração, lúpus e outras enfermidades. “Há muito tempo nos falam para guardar nossos problemas para nós”, disse Lillie Pearl Allen à uma plateia. “Bem, esse silêncio mantido está nos matando”.

O escopo e os detalhes no livro Unwell Women são vastos e às vezes arrasadores. Sua lição mais marcante é que, quando se trata de doenças femininas e seu tratamento, falsas crenças e atitudes sexistas têm vida própria. Num momento em a pandemia tem mostrado as disparidades em termos de saúde e quando os direitos de reprodução da mulher estão de novo ameaçados, o livro é um chamado às armas para qualquer mulher que achar que os médicos não têm resolvido adequadamente sua doença ou dor. Oportunamente, Cleghorn termina falando da sua própria batalha com sua doença, o lúpus, que não foi diagnosticado durante vários anos até causar complicações na sua gravidez que quase levaram seu segundo filho à morte antes de nascer.

“Para parafrasear a grande Maya Angelou”, ela escreve, “Quando uma mulher disser que está com dor, acredite nela desde o primeiro instante”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Elinor Cleghorn está indignada. Na sua ampla narrativa sobre como a medicina ocidental há séculos não leva a sério as doenças que afligem as mulheres, a cólera da escritora é perceptível em quase todas as páginas do livro.

'Uma Lição de Medicina', pintura de André Brouillet de 1887 que mostra médicos examinando uma paciente mulher Foto: Paris Descartes University

O que não surpreende: ela convive com uma enfermidade chamada lúpus eritematoso sistêmico, doença inflamatória autoimune grave muito mais frequente em mulheres do que nos homens, que ataca vários órgãos e é difícil de diagnosticar e tratar. Analisando o tratamento de “mulheres enfermas” através da história, ela acusa uma profissão médica dominada por homens, desde os tempos passados até os dias atuais, de não atentar para os relatos dos sintomas feitos pelas mulheres e elogia alguns médicos, homens e mulheres, que considera exceções.

“Nossas doenças não são ininteligíveis para nós. Mas alguma coisa a respeito delas parece impedir e frustrar a medicina o tempo todo”, escreve ela.

Como médica e jornalista especializada em medicina, eu já estava familiarizada com as muitas formas com que a medicina tem ignorado doenças femininas ou deixado de investigar suas causas, mas o livro de Elinor Cleghorn, Unwell Women: Misdiagnosis and Myth in a Man-Made World faz conexões entre o papel do médico e o interesse da sociedade em controlar o corpo das mulheres que nunca avaliei completamente. Em cada era, desde os ensinamentos do médico grego da Antiguidade, Hipócrates, aos debates do século passado sobre o acesso das mulheres aos métodos de contracepção e aborto, Cleghorn detecta pressupostos econômicos e sociais comuns: que as mulheres são inferiores aos homens; que seu principal propósito na vida é casar e ter filhos; que excesso de educação é ruim para elas; que as mulheres, por natureza, são vulneráveis a doenças “misteriosas”, físicas e mentais; e que a sexualidade feminina é perigosa se não for controlada - bastante perigosa durante alguns períodos para justificar a remoção dos órgãos sexuais femininos, a prescrição de tranquilizantes viciantes e mesmo uma cirurgia cerebral.

Sem sexo frequente e sem procriar, sugeriu Hipócrates nos seus escritos médicos nos séculos 4 e 5 antes de Cristo, o útero feminino “vagava” para cima na direção do fígado e então bloqueava sua respiração, levando a mulher à morte. Mais tarde sua teoria deu origem à palavra “histeria” (de hystera palavra grega para útero), termo usado para denotar um transtorno mental (normalmente em mulheres) que provocava uma excitação emocional, ansiedade e sintomas físicos, que os médicos consideravam fictício. Até o final do século 19, escreve Cleghorn, a histeria era “o diagnóstico para toda e quaisquer patologias “femininas” que os médicos não conseguiam compreender”.

Durante séculos, a medicina continuou a atribuir poderes estranhos ao sistema reprodutivo feminino. Em 1651 William Harvey, médico que ficou famoso por explicar a circulação do sangue, declarou que “a condição antinatural do útero” (ou seja, a falta de sexo marital) podia causar sintomas mentais do tipo mais grave”. Duzentos anos depois, outro médico britânico, Edward Tilt, sugeriu que as mulheres jovens irritavam seus ovários quando andavam a cavalo ou viajavam de trem durante a menstruação - especialmente se estavam nervosas ou tinham longos cílios. Na Inglaterra no século 19 a menstruação era mencionada como “doença” e se achava que as mulheres não deviam trabalhar, se exercitar, ter atividades sociais ou intelectuais durante aquele período do mês em que ela menstruava.

Mas não menstruar era visto como algo perigoso também. Em 1972 um cirurgião americano, Robert Battey, removeu os ovários de Julia Omberg, de 23 anos, para tratar um cansaço debilitante que ela dizia ser ocasionado pela falta de períodos menstruais. A sobrevivência da jovem levou Battey e outros cirurgiões a removerem os ovários de outras mulheres (e assim esterilizando-as) durante os anos 1880 e 1890 “em hospitais públicos na Grã-Bretanha e instituições psiquiátricas nos Estados Unidos”.

Às vezes esta e outras cirurgias eram realizadas em mulheres como tratamento para a masturbação ou outro comportamento considerado extremamente sexual. Em muitos Estados americanos, a esterilização sem consentimento das mulheres com doenças como epilepsia ou doença mental foi legalizada no início do século 20, durante o movimento de eugenia, especialmente depois de uma decisão da Suprema Corte, em 1927, que sustentou a legalidade da esterilização forçada de Carrie Buck, de 17 anos, em Lynchburg, Virgínia. Nos anos 1940 e 1950, uma operação no cérebro chamada lobotomia pré-frontal, ficou popular como um novo tratamento para curar a depressão e outras doenças mentais. As mulheres constituíam 75% dos pacientes submetidos a essas “psicocirurgias” realizadas por Walter Freeman e James Watts, dois médicos famosos nos Estados Unidos. “Numa era em que a mulher mentalmente saudável era a esposa e mãe serena, qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica podia ser interpretada como justificativa para uma lobotomia”, escreve Cleghorn.

Antiga estudiosa de ciências humanas e estudos culturais na universidade de Oxford, Cleghorn concentrou sua pesquisa na Europa Ocidental, particularmente na Grã-Bretanha, e nos Estados Unidos. Ela aponta os importantes avanços no entendimento científico do corpo feminino, mas não explica em detalhes. Durante a maior parte do período que ela cobriu, as mulheres não tinham permissão para se tornarem médicas. Elizabeth Blackwell, nascida na Inglaterra em 1849, foi a primeira a se diplomar em medicina em uma faculdade americana. Na Grã-Bretanha, em 1865, Elizabeth Garrett Anderson foi a primeira mulher a obter uma licença para a prática de medicina.

Somente mulheres brancas, da classe mais alta, eram tratadas por médicos. Muitas outras tiveram filhos assistidas por parteiras e suas febres e feridas eram tratadas por membros da família ou curadores locais. Mas os corpos de mulheres pobres, incluindo prisioneiras executadas, às vezes eram fornecidos a médicos para serem dissecados e para estudos anatômicos.

No século 19, na Inglaterra e nos Estados Unidos, considerava-se que as mulheres negras sentiam menos dor do que as brancas - “suposições racistas”, observa Cleghorn, “que tiveram reflexo na prática médica atual”. Em 1845 um cirurgião americano, James Marion Sims, baseou-se nessa crença para justificar a realização de várias operações experimentais, sempre sem anestesia, em três mulheres escravas, Anarcha, Betsey e Lucy. As três sofreram danos pélvicos durante o parto dos seus filhos que causaram problemas de vazamento da urina da bexiga para a vagina, Sims quis realizar uma operação para corrigir o problema, mas visando outras pacientes, mas para isso infligiu uma tortura inimaginável a essas três mulheres, impotentes para recusarem. Anarcha se submeteu ao experimento cirúrgico mais de 30 vezes.

Nos anos 1850, tanto mulheres brancas como negras aderiram às campanhas por direitos iguais e o direito ao voto. Mudanças políticas e sociais, embora lentas para se materializarem, já começavam a surgir. Em 1914, Margaret Sanger, enfermeira e ativista, começou a distribuir um folheto para as mulheres sugerindo receitas e remédios caseiros para evitar uma gravidez indesejada e logo depois abriu uma clínica no Brooklyn. Processada judicialmente, ela foi presa com base em leis deficientes, ela insistiu no seu argumento de que as mulheres deviam ser donas do seu próprio corpo, cunhando o termo “controle de natalidade”. Sua contemporânea, a ativista britânica Marie Stopes, publicou um livro popular para educar as mulheres inglesas sobre sexo e, em 1921, abriu uma clínica em Londres para mulheres casadas que fornecia assistência e até contraceptivos. Infelizmente, como Cleghorn relata, apesar da sua importância como defensoras da saúde reprodutiva das mulheres, os registros de Sanger e Stopes estão manchados por suas crenças na eugenia. Sanger defendeu a esterilização para “as loucas e de mente fraca” e aquelas com “doenças herdadas ou transmissíveis”. Hoje, “controle de natalidade” implica o controle pelo Estado ou outros, e não é mais usado comumente.

A palavra “hormônio” entrou no léxico médico em 1905 para descrever secreções do pâncreas e foi logo usada para outros mensageiros químicos produzidos por qualquer das glândulas do corpo. No caso das mulheres, o século 20 foi a era dos hormônios e da terapia hormonal. Enfim, cientistas e médicos aprenderam como os ovários funcionam de fato, o que desencadeava o período menstrual e porque as mulheres passam por uma menopausa. Os hormônios “femininos” estrogênio e progesterona, junto com outros, é que dirigiam a orquestra.

A descoberta desses hormônios e o desenvolvimento de drogas para imitar seus efeitos resultou primeiro no remédio extremamente popular Premarin, um estrógeno que foi promovido para mulheres na menopausa, e mais tarde levou aos anticoncepcionais na forma de pílulas, injetáveis ou implantáveis e remédios atualmente aprovados pela FDA para aborto médico. Sem dúvida essas invenções mudaram, e ainda vêm mudando, a vida das mulheres. E no caso das empresas farmacêuticas, para elas também foram abertas oportunidades de marketing de enorme sucesso financeiro.

Embora a menopausa seja um processo natural, os ginecologistas tendem a vê-la como doença que pode hoje ser tratada com hormônio. Antes e durante a menopausa, as mulheres sofrem com “ondas de calor”, mudanças nos seus períodos e às vezes alterações de humor. Para muitas, os sintomas são temporários. O Premarin foi comercializado em 1941 “para abrandar sintomas severos da menopausa”, afirma Cleghorn, mas também era “vendido como um alívio para os maridos que não podiam mais suportar o humor belicoso das suas esposas”. As mulheres foram encorajadas a acreditar que o Premarin as manteria com aparência jovem e “eternamente feminina”, citando o título de um manual de uma farmacêutica.

Cleghorn não menciona a sequela: mais de 60 anos depois, pelo menos 40% das mulheres que passaram da menopausa estavam fazendo terapia hormonal quando resultados de um estudo amplo que durou vários anos sobres os efeitos do tratamento, o Women’s Health Initiative, foi publicado. Depois de acompanhar mais de 27 mil mulheres durante um tempo médio de 13 anos, os pesquisadores concluíram que os riscos daquele tratamento mais comumente adotado superavam os benefícios. A terapia hormonal aumentava o risco das usuárias de contraírem um câncer invasivo da mama, sofrerem um AVC e terem coágulos sanguíneos, emboraajudasse a prevenir fraturas de quadril e diabetes. O tratamento hormonal depois da menopausa já não é mais recomendado.

Cleghorn oferece relatos sobre a ascensão do feminismo e do movimento pela saúde da mulher, incluindo as controvérsias médicas e éticas em torno dos primeiros contraceptivos orais nos anos 1950. Esses contraceptivos foram testados em mulheres pobres de Porto Rico que não foram avisadas dos possíveis efeitos colaterais e tampouco foi pedido o consentimento delas.

Cleghorn relata a formação de grupos ativistas nos Estados Unidos cujos membros davam aulas às mulheres sobre seu próprio corpo, faziam lobby para o establishment médico e em alguns lugares treinaram ilegalmente pessoas para realizarem abortos. Nos anos 1960 quando uma a cada seis mortes relacionadas à gravidez era causada por um aborto não realizado com segurança, as ativistas também lutavam pela legalização do aborto a nível estadual. Our Bodies, Ourselves (Nossos corpos, nós mesmas), um livro do Boston Women’s Health Collective, foi publicado em 1971 e vendidos 230 mil exemplares naquele mesmo ano.

Em 1981 a ativista Byllye Avery lançou o National Black Women’s Health Project para criar uma comunidade onde as mulheres negras poderiam falar sobre seus próprios problemas de saúde, incluindo a mortalidade materna e de recém-nascidos, câncer de mama, doenças renais e do coração, lúpus e outras enfermidades. “Há muito tempo nos falam para guardar nossos problemas para nós”, disse Lillie Pearl Allen à uma plateia. “Bem, esse silêncio mantido está nos matando”.

O escopo e os detalhes no livro Unwell Women são vastos e às vezes arrasadores. Sua lição mais marcante é que, quando se trata de doenças femininas e seu tratamento, falsas crenças e atitudes sexistas têm vida própria. Num momento em a pandemia tem mostrado as disparidades em termos de saúde e quando os direitos de reprodução da mulher estão de novo ameaçados, o livro é um chamado às armas para qualquer mulher que achar que os médicos não têm resolvido adequadamente sua doença ou dor. Oportunamente, Cleghorn termina falando da sua própria batalha com sua doença, o lúpus, que não foi diagnosticado durante vários anos até causar complicações na sua gravidez que quase levaram seu segundo filho à morte antes de nascer.

“Para parafrasear a grande Maya Angelou”, ela escreve, “Quando uma mulher disser que está com dor, acredite nela desde o primeiro instante”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Elinor Cleghorn está indignada. Na sua ampla narrativa sobre como a medicina ocidental há séculos não leva a sério as doenças que afligem as mulheres, a cólera da escritora é perceptível em quase todas as páginas do livro.

'Uma Lição de Medicina', pintura de André Brouillet de 1887 que mostra médicos examinando uma paciente mulher Foto: Paris Descartes University

O que não surpreende: ela convive com uma enfermidade chamada lúpus eritematoso sistêmico, doença inflamatória autoimune grave muito mais frequente em mulheres do que nos homens, que ataca vários órgãos e é difícil de diagnosticar e tratar. Analisando o tratamento de “mulheres enfermas” através da história, ela acusa uma profissão médica dominada por homens, desde os tempos passados até os dias atuais, de não atentar para os relatos dos sintomas feitos pelas mulheres e elogia alguns médicos, homens e mulheres, que considera exceções.

“Nossas doenças não são ininteligíveis para nós. Mas alguma coisa a respeito delas parece impedir e frustrar a medicina o tempo todo”, escreve ela.

Como médica e jornalista especializada em medicina, eu já estava familiarizada com as muitas formas com que a medicina tem ignorado doenças femininas ou deixado de investigar suas causas, mas o livro de Elinor Cleghorn, Unwell Women: Misdiagnosis and Myth in a Man-Made World faz conexões entre o papel do médico e o interesse da sociedade em controlar o corpo das mulheres que nunca avaliei completamente. Em cada era, desde os ensinamentos do médico grego da Antiguidade, Hipócrates, aos debates do século passado sobre o acesso das mulheres aos métodos de contracepção e aborto, Cleghorn detecta pressupostos econômicos e sociais comuns: que as mulheres são inferiores aos homens; que seu principal propósito na vida é casar e ter filhos; que excesso de educação é ruim para elas; que as mulheres, por natureza, são vulneráveis a doenças “misteriosas”, físicas e mentais; e que a sexualidade feminina é perigosa se não for controlada - bastante perigosa durante alguns períodos para justificar a remoção dos órgãos sexuais femininos, a prescrição de tranquilizantes viciantes e mesmo uma cirurgia cerebral.

Sem sexo frequente e sem procriar, sugeriu Hipócrates nos seus escritos médicos nos séculos 4 e 5 antes de Cristo, o útero feminino “vagava” para cima na direção do fígado e então bloqueava sua respiração, levando a mulher à morte. Mais tarde sua teoria deu origem à palavra “histeria” (de hystera palavra grega para útero), termo usado para denotar um transtorno mental (normalmente em mulheres) que provocava uma excitação emocional, ansiedade e sintomas físicos, que os médicos consideravam fictício. Até o final do século 19, escreve Cleghorn, a histeria era “o diagnóstico para toda e quaisquer patologias “femininas” que os médicos não conseguiam compreender”.

Durante séculos, a medicina continuou a atribuir poderes estranhos ao sistema reprodutivo feminino. Em 1651 William Harvey, médico que ficou famoso por explicar a circulação do sangue, declarou que “a condição antinatural do útero” (ou seja, a falta de sexo marital) podia causar sintomas mentais do tipo mais grave”. Duzentos anos depois, outro médico britânico, Edward Tilt, sugeriu que as mulheres jovens irritavam seus ovários quando andavam a cavalo ou viajavam de trem durante a menstruação - especialmente se estavam nervosas ou tinham longos cílios. Na Inglaterra no século 19 a menstruação era mencionada como “doença” e se achava que as mulheres não deviam trabalhar, se exercitar, ter atividades sociais ou intelectuais durante aquele período do mês em que ela menstruava.

Mas não menstruar era visto como algo perigoso também. Em 1972 um cirurgião americano, Robert Battey, removeu os ovários de Julia Omberg, de 23 anos, para tratar um cansaço debilitante que ela dizia ser ocasionado pela falta de períodos menstruais. A sobrevivência da jovem levou Battey e outros cirurgiões a removerem os ovários de outras mulheres (e assim esterilizando-as) durante os anos 1880 e 1890 “em hospitais públicos na Grã-Bretanha e instituições psiquiátricas nos Estados Unidos”.

Às vezes esta e outras cirurgias eram realizadas em mulheres como tratamento para a masturbação ou outro comportamento considerado extremamente sexual. Em muitos Estados americanos, a esterilização sem consentimento das mulheres com doenças como epilepsia ou doença mental foi legalizada no início do século 20, durante o movimento de eugenia, especialmente depois de uma decisão da Suprema Corte, em 1927, que sustentou a legalidade da esterilização forçada de Carrie Buck, de 17 anos, em Lynchburg, Virgínia. Nos anos 1940 e 1950, uma operação no cérebro chamada lobotomia pré-frontal, ficou popular como um novo tratamento para curar a depressão e outras doenças mentais. As mulheres constituíam 75% dos pacientes submetidos a essas “psicocirurgias” realizadas por Walter Freeman e James Watts, dois médicos famosos nos Estados Unidos. “Numa era em que a mulher mentalmente saudável era a esposa e mãe serena, qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica podia ser interpretada como justificativa para uma lobotomia”, escreve Cleghorn.

Antiga estudiosa de ciências humanas e estudos culturais na universidade de Oxford, Cleghorn concentrou sua pesquisa na Europa Ocidental, particularmente na Grã-Bretanha, e nos Estados Unidos. Ela aponta os importantes avanços no entendimento científico do corpo feminino, mas não explica em detalhes. Durante a maior parte do período que ela cobriu, as mulheres não tinham permissão para se tornarem médicas. Elizabeth Blackwell, nascida na Inglaterra em 1849, foi a primeira a se diplomar em medicina em uma faculdade americana. Na Grã-Bretanha, em 1865, Elizabeth Garrett Anderson foi a primeira mulher a obter uma licença para a prática de medicina.

Somente mulheres brancas, da classe mais alta, eram tratadas por médicos. Muitas outras tiveram filhos assistidas por parteiras e suas febres e feridas eram tratadas por membros da família ou curadores locais. Mas os corpos de mulheres pobres, incluindo prisioneiras executadas, às vezes eram fornecidos a médicos para serem dissecados e para estudos anatômicos.

No século 19, na Inglaterra e nos Estados Unidos, considerava-se que as mulheres negras sentiam menos dor do que as brancas - “suposições racistas”, observa Cleghorn, “que tiveram reflexo na prática médica atual”. Em 1845 um cirurgião americano, James Marion Sims, baseou-se nessa crença para justificar a realização de várias operações experimentais, sempre sem anestesia, em três mulheres escravas, Anarcha, Betsey e Lucy. As três sofreram danos pélvicos durante o parto dos seus filhos que causaram problemas de vazamento da urina da bexiga para a vagina, Sims quis realizar uma operação para corrigir o problema, mas visando outras pacientes, mas para isso infligiu uma tortura inimaginável a essas três mulheres, impotentes para recusarem. Anarcha se submeteu ao experimento cirúrgico mais de 30 vezes.

Nos anos 1850, tanto mulheres brancas como negras aderiram às campanhas por direitos iguais e o direito ao voto. Mudanças políticas e sociais, embora lentas para se materializarem, já começavam a surgir. Em 1914, Margaret Sanger, enfermeira e ativista, começou a distribuir um folheto para as mulheres sugerindo receitas e remédios caseiros para evitar uma gravidez indesejada e logo depois abriu uma clínica no Brooklyn. Processada judicialmente, ela foi presa com base em leis deficientes, ela insistiu no seu argumento de que as mulheres deviam ser donas do seu próprio corpo, cunhando o termo “controle de natalidade”. Sua contemporânea, a ativista britânica Marie Stopes, publicou um livro popular para educar as mulheres inglesas sobre sexo e, em 1921, abriu uma clínica em Londres para mulheres casadas que fornecia assistência e até contraceptivos. Infelizmente, como Cleghorn relata, apesar da sua importância como defensoras da saúde reprodutiva das mulheres, os registros de Sanger e Stopes estão manchados por suas crenças na eugenia. Sanger defendeu a esterilização para “as loucas e de mente fraca” e aquelas com “doenças herdadas ou transmissíveis”. Hoje, “controle de natalidade” implica o controle pelo Estado ou outros, e não é mais usado comumente.

A palavra “hormônio” entrou no léxico médico em 1905 para descrever secreções do pâncreas e foi logo usada para outros mensageiros químicos produzidos por qualquer das glândulas do corpo. No caso das mulheres, o século 20 foi a era dos hormônios e da terapia hormonal. Enfim, cientistas e médicos aprenderam como os ovários funcionam de fato, o que desencadeava o período menstrual e porque as mulheres passam por uma menopausa. Os hormônios “femininos” estrogênio e progesterona, junto com outros, é que dirigiam a orquestra.

A descoberta desses hormônios e o desenvolvimento de drogas para imitar seus efeitos resultou primeiro no remédio extremamente popular Premarin, um estrógeno que foi promovido para mulheres na menopausa, e mais tarde levou aos anticoncepcionais na forma de pílulas, injetáveis ou implantáveis e remédios atualmente aprovados pela FDA para aborto médico. Sem dúvida essas invenções mudaram, e ainda vêm mudando, a vida das mulheres. E no caso das empresas farmacêuticas, para elas também foram abertas oportunidades de marketing de enorme sucesso financeiro.

Embora a menopausa seja um processo natural, os ginecologistas tendem a vê-la como doença que pode hoje ser tratada com hormônio. Antes e durante a menopausa, as mulheres sofrem com “ondas de calor”, mudanças nos seus períodos e às vezes alterações de humor. Para muitas, os sintomas são temporários. O Premarin foi comercializado em 1941 “para abrandar sintomas severos da menopausa”, afirma Cleghorn, mas também era “vendido como um alívio para os maridos que não podiam mais suportar o humor belicoso das suas esposas”. As mulheres foram encorajadas a acreditar que o Premarin as manteria com aparência jovem e “eternamente feminina”, citando o título de um manual de uma farmacêutica.

Cleghorn não menciona a sequela: mais de 60 anos depois, pelo menos 40% das mulheres que passaram da menopausa estavam fazendo terapia hormonal quando resultados de um estudo amplo que durou vários anos sobres os efeitos do tratamento, o Women’s Health Initiative, foi publicado. Depois de acompanhar mais de 27 mil mulheres durante um tempo médio de 13 anos, os pesquisadores concluíram que os riscos daquele tratamento mais comumente adotado superavam os benefícios. A terapia hormonal aumentava o risco das usuárias de contraírem um câncer invasivo da mama, sofrerem um AVC e terem coágulos sanguíneos, emboraajudasse a prevenir fraturas de quadril e diabetes. O tratamento hormonal depois da menopausa já não é mais recomendado.

Cleghorn oferece relatos sobre a ascensão do feminismo e do movimento pela saúde da mulher, incluindo as controvérsias médicas e éticas em torno dos primeiros contraceptivos orais nos anos 1950. Esses contraceptivos foram testados em mulheres pobres de Porto Rico que não foram avisadas dos possíveis efeitos colaterais e tampouco foi pedido o consentimento delas.

Cleghorn relata a formação de grupos ativistas nos Estados Unidos cujos membros davam aulas às mulheres sobre seu próprio corpo, faziam lobby para o establishment médico e em alguns lugares treinaram ilegalmente pessoas para realizarem abortos. Nos anos 1960 quando uma a cada seis mortes relacionadas à gravidez era causada por um aborto não realizado com segurança, as ativistas também lutavam pela legalização do aborto a nível estadual. Our Bodies, Ourselves (Nossos corpos, nós mesmas), um livro do Boston Women’s Health Collective, foi publicado em 1971 e vendidos 230 mil exemplares naquele mesmo ano.

Em 1981 a ativista Byllye Avery lançou o National Black Women’s Health Project para criar uma comunidade onde as mulheres negras poderiam falar sobre seus próprios problemas de saúde, incluindo a mortalidade materna e de recém-nascidos, câncer de mama, doenças renais e do coração, lúpus e outras enfermidades. “Há muito tempo nos falam para guardar nossos problemas para nós”, disse Lillie Pearl Allen à uma plateia. “Bem, esse silêncio mantido está nos matando”.

O escopo e os detalhes no livro Unwell Women são vastos e às vezes arrasadores. Sua lição mais marcante é que, quando se trata de doenças femininas e seu tratamento, falsas crenças e atitudes sexistas têm vida própria. Num momento em a pandemia tem mostrado as disparidades em termos de saúde e quando os direitos de reprodução da mulher estão de novo ameaçados, o livro é um chamado às armas para qualquer mulher que achar que os médicos não têm resolvido adequadamente sua doença ou dor. Oportunamente, Cleghorn termina falando da sua própria batalha com sua doença, o lúpus, que não foi diagnosticado durante vários anos até causar complicações na sua gravidez que quase levaram seu segundo filho à morte antes de nascer.

“Para parafrasear a grande Maya Angelou”, ela escreve, “Quando uma mulher disser que está com dor, acredite nela desde o primeiro instante”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Elinor Cleghorn está indignada. Na sua ampla narrativa sobre como a medicina ocidental há séculos não leva a sério as doenças que afligem as mulheres, a cólera da escritora é perceptível em quase todas as páginas do livro.

'Uma Lição de Medicina', pintura de André Brouillet de 1887 que mostra médicos examinando uma paciente mulher Foto: Paris Descartes University

O que não surpreende: ela convive com uma enfermidade chamada lúpus eritematoso sistêmico, doença inflamatória autoimune grave muito mais frequente em mulheres do que nos homens, que ataca vários órgãos e é difícil de diagnosticar e tratar. Analisando o tratamento de “mulheres enfermas” através da história, ela acusa uma profissão médica dominada por homens, desde os tempos passados até os dias atuais, de não atentar para os relatos dos sintomas feitos pelas mulheres e elogia alguns médicos, homens e mulheres, que considera exceções.

“Nossas doenças não são ininteligíveis para nós. Mas alguma coisa a respeito delas parece impedir e frustrar a medicina o tempo todo”, escreve ela.

Como médica e jornalista especializada em medicina, eu já estava familiarizada com as muitas formas com que a medicina tem ignorado doenças femininas ou deixado de investigar suas causas, mas o livro de Elinor Cleghorn, Unwell Women: Misdiagnosis and Myth in a Man-Made World faz conexões entre o papel do médico e o interesse da sociedade em controlar o corpo das mulheres que nunca avaliei completamente. Em cada era, desde os ensinamentos do médico grego da Antiguidade, Hipócrates, aos debates do século passado sobre o acesso das mulheres aos métodos de contracepção e aborto, Cleghorn detecta pressupostos econômicos e sociais comuns: que as mulheres são inferiores aos homens; que seu principal propósito na vida é casar e ter filhos; que excesso de educação é ruim para elas; que as mulheres, por natureza, são vulneráveis a doenças “misteriosas”, físicas e mentais; e que a sexualidade feminina é perigosa se não for controlada - bastante perigosa durante alguns períodos para justificar a remoção dos órgãos sexuais femininos, a prescrição de tranquilizantes viciantes e mesmo uma cirurgia cerebral.

Sem sexo frequente e sem procriar, sugeriu Hipócrates nos seus escritos médicos nos séculos 4 e 5 antes de Cristo, o útero feminino “vagava” para cima na direção do fígado e então bloqueava sua respiração, levando a mulher à morte. Mais tarde sua teoria deu origem à palavra “histeria” (de hystera palavra grega para útero), termo usado para denotar um transtorno mental (normalmente em mulheres) que provocava uma excitação emocional, ansiedade e sintomas físicos, que os médicos consideravam fictício. Até o final do século 19, escreve Cleghorn, a histeria era “o diagnóstico para toda e quaisquer patologias “femininas” que os médicos não conseguiam compreender”.

Durante séculos, a medicina continuou a atribuir poderes estranhos ao sistema reprodutivo feminino. Em 1651 William Harvey, médico que ficou famoso por explicar a circulação do sangue, declarou que “a condição antinatural do útero” (ou seja, a falta de sexo marital) podia causar sintomas mentais do tipo mais grave”. Duzentos anos depois, outro médico britânico, Edward Tilt, sugeriu que as mulheres jovens irritavam seus ovários quando andavam a cavalo ou viajavam de trem durante a menstruação - especialmente se estavam nervosas ou tinham longos cílios. Na Inglaterra no século 19 a menstruação era mencionada como “doença” e se achava que as mulheres não deviam trabalhar, se exercitar, ter atividades sociais ou intelectuais durante aquele período do mês em que ela menstruava.

Mas não menstruar era visto como algo perigoso também. Em 1972 um cirurgião americano, Robert Battey, removeu os ovários de Julia Omberg, de 23 anos, para tratar um cansaço debilitante que ela dizia ser ocasionado pela falta de períodos menstruais. A sobrevivência da jovem levou Battey e outros cirurgiões a removerem os ovários de outras mulheres (e assim esterilizando-as) durante os anos 1880 e 1890 “em hospitais públicos na Grã-Bretanha e instituições psiquiátricas nos Estados Unidos”.

Às vezes esta e outras cirurgias eram realizadas em mulheres como tratamento para a masturbação ou outro comportamento considerado extremamente sexual. Em muitos Estados americanos, a esterilização sem consentimento das mulheres com doenças como epilepsia ou doença mental foi legalizada no início do século 20, durante o movimento de eugenia, especialmente depois de uma decisão da Suprema Corte, em 1927, que sustentou a legalidade da esterilização forçada de Carrie Buck, de 17 anos, em Lynchburg, Virgínia. Nos anos 1940 e 1950, uma operação no cérebro chamada lobotomia pré-frontal, ficou popular como um novo tratamento para curar a depressão e outras doenças mentais. As mulheres constituíam 75% dos pacientes submetidos a essas “psicocirurgias” realizadas por Walter Freeman e James Watts, dois médicos famosos nos Estados Unidos. “Numa era em que a mulher mentalmente saudável era a esposa e mãe serena, qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica podia ser interpretada como justificativa para uma lobotomia”, escreve Cleghorn.

Antiga estudiosa de ciências humanas e estudos culturais na universidade de Oxford, Cleghorn concentrou sua pesquisa na Europa Ocidental, particularmente na Grã-Bretanha, e nos Estados Unidos. Ela aponta os importantes avanços no entendimento científico do corpo feminino, mas não explica em detalhes. Durante a maior parte do período que ela cobriu, as mulheres não tinham permissão para se tornarem médicas. Elizabeth Blackwell, nascida na Inglaterra em 1849, foi a primeira a se diplomar em medicina em uma faculdade americana. Na Grã-Bretanha, em 1865, Elizabeth Garrett Anderson foi a primeira mulher a obter uma licença para a prática de medicina.

Somente mulheres brancas, da classe mais alta, eram tratadas por médicos. Muitas outras tiveram filhos assistidas por parteiras e suas febres e feridas eram tratadas por membros da família ou curadores locais. Mas os corpos de mulheres pobres, incluindo prisioneiras executadas, às vezes eram fornecidos a médicos para serem dissecados e para estudos anatômicos.

No século 19, na Inglaterra e nos Estados Unidos, considerava-se que as mulheres negras sentiam menos dor do que as brancas - “suposições racistas”, observa Cleghorn, “que tiveram reflexo na prática médica atual”. Em 1845 um cirurgião americano, James Marion Sims, baseou-se nessa crença para justificar a realização de várias operações experimentais, sempre sem anestesia, em três mulheres escravas, Anarcha, Betsey e Lucy. As três sofreram danos pélvicos durante o parto dos seus filhos que causaram problemas de vazamento da urina da bexiga para a vagina, Sims quis realizar uma operação para corrigir o problema, mas visando outras pacientes, mas para isso infligiu uma tortura inimaginável a essas três mulheres, impotentes para recusarem. Anarcha se submeteu ao experimento cirúrgico mais de 30 vezes.

Nos anos 1850, tanto mulheres brancas como negras aderiram às campanhas por direitos iguais e o direito ao voto. Mudanças políticas e sociais, embora lentas para se materializarem, já começavam a surgir. Em 1914, Margaret Sanger, enfermeira e ativista, começou a distribuir um folheto para as mulheres sugerindo receitas e remédios caseiros para evitar uma gravidez indesejada e logo depois abriu uma clínica no Brooklyn. Processada judicialmente, ela foi presa com base em leis deficientes, ela insistiu no seu argumento de que as mulheres deviam ser donas do seu próprio corpo, cunhando o termo “controle de natalidade”. Sua contemporânea, a ativista britânica Marie Stopes, publicou um livro popular para educar as mulheres inglesas sobre sexo e, em 1921, abriu uma clínica em Londres para mulheres casadas que fornecia assistência e até contraceptivos. Infelizmente, como Cleghorn relata, apesar da sua importância como defensoras da saúde reprodutiva das mulheres, os registros de Sanger e Stopes estão manchados por suas crenças na eugenia. Sanger defendeu a esterilização para “as loucas e de mente fraca” e aquelas com “doenças herdadas ou transmissíveis”. Hoje, “controle de natalidade” implica o controle pelo Estado ou outros, e não é mais usado comumente.

A palavra “hormônio” entrou no léxico médico em 1905 para descrever secreções do pâncreas e foi logo usada para outros mensageiros químicos produzidos por qualquer das glândulas do corpo. No caso das mulheres, o século 20 foi a era dos hormônios e da terapia hormonal. Enfim, cientistas e médicos aprenderam como os ovários funcionam de fato, o que desencadeava o período menstrual e porque as mulheres passam por uma menopausa. Os hormônios “femininos” estrogênio e progesterona, junto com outros, é que dirigiam a orquestra.

A descoberta desses hormônios e o desenvolvimento de drogas para imitar seus efeitos resultou primeiro no remédio extremamente popular Premarin, um estrógeno que foi promovido para mulheres na menopausa, e mais tarde levou aos anticoncepcionais na forma de pílulas, injetáveis ou implantáveis e remédios atualmente aprovados pela FDA para aborto médico. Sem dúvida essas invenções mudaram, e ainda vêm mudando, a vida das mulheres. E no caso das empresas farmacêuticas, para elas também foram abertas oportunidades de marketing de enorme sucesso financeiro.

Embora a menopausa seja um processo natural, os ginecologistas tendem a vê-la como doença que pode hoje ser tratada com hormônio. Antes e durante a menopausa, as mulheres sofrem com “ondas de calor”, mudanças nos seus períodos e às vezes alterações de humor. Para muitas, os sintomas são temporários. O Premarin foi comercializado em 1941 “para abrandar sintomas severos da menopausa”, afirma Cleghorn, mas também era “vendido como um alívio para os maridos que não podiam mais suportar o humor belicoso das suas esposas”. As mulheres foram encorajadas a acreditar que o Premarin as manteria com aparência jovem e “eternamente feminina”, citando o título de um manual de uma farmacêutica.

Cleghorn não menciona a sequela: mais de 60 anos depois, pelo menos 40% das mulheres que passaram da menopausa estavam fazendo terapia hormonal quando resultados de um estudo amplo que durou vários anos sobres os efeitos do tratamento, o Women’s Health Initiative, foi publicado. Depois de acompanhar mais de 27 mil mulheres durante um tempo médio de 13 anos, os pesquisadores concluíram que os riscos daquele tratamento mais comumente adotado superavam os benefícios. A terapia hormonal aumentava o risco das usuárias de contraírem um câncer invasivo da mama, sofrerem um AVC e terem coágulos sanguíneos, emboraajudasse a prevenir fraturas de quadril e diabetes. O tratamento hormonal depois da menopausa já não é mais recomendado.

Cleghorn oferece relatos sobre a ascensão do feminismo e do movimento pela saúde da mulher, incluindo as controvérsias médicas e éticas em torno dos primeiros contraceptivos orais nos anos 1950. Esses contraceptivos foram testados em mulheres pobres de Porto Rico que não foram avisadas dos possíveis efeitos colaterais e tampouco foi pedido o consentimento delas.

Cleghorn relata a formação de grupos ativistas nos Estados Unidos cujos membros davam aulas às mulheres sobre seu próprio corpo, faziam lobby para o establishment médico e em alguns lugares treinaram ilegalmente pessoas para realizarem abortos. Nos anos 1960 quando uma a cada seis mortes relacionadas à gravidez era causada por um aborto não realizado com segurança, as ativistas também lutavam pela legalização do aborto a nível estadual. Our Bodies, Ourselves (Nossos corpos, nós mesmas), um livro do Boston Women’s Health Collective, foi publicado em 1971 e vendidos 230 mil exemplares naquele mesmo ano.

Em 1981 a ativista Byllye Avery lançou o National Black Women’s Health Project para criar uma comunidade onde as mulheres negras poderiam falar sobre seus próprios problemas de saúde, incluindo a mortalidade materna e de recém-nascidos, câncer de mama, doenças renais e do coração, lúpus e outras enfermidades. “Há muito tempo nos falam para guardar nossos problemas para nós”, disse Lillie Pearl Allen à uma plateia. “Bem, esse silêncio mantido está nos matando”.

O escopo e os detalhes no livro Unwell Women são vastos e às vezes arrasadores. Sua lição mais marcante é que, quando se trata de doenças femininas e seu tratamento, falsas crenças e atitudes sexistas têm vida própria. Num momento em a pandemia tem mostrado as disparidades em termos de saúde e quando os direitos de reprodução da mulher estão de novo ameaçados, o livro é um chamado às armas para qualquer mulher que achar que os médicos não têm resolvido adequadamente sua doença ou dor. Oportunamente, Cleghorn termina falando da sua própria batalha com sua doença, o lúpus, que não foi diagnosticado durante vários anos até causar complicações na sua gravidez que quase levaram seu segundo filho à morte antes de nascer.

“Para parafrasear a grande Maya Angelou”, ela escreve, “Quando uma mulher disser que está com dor, acredite nela desde o primeiro instante”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Elinor Cleghorn está indignada. Na sua ampla narrativa sobre como a medicina ocidental há séculos não leva a sério as doenças que afligem as mulheres, a cólera da escritora é perceptível em quase todas as páginas do livro.

'Uma Lição de Medicina', pintura de André Brouillet de 1887 que mostra médicos examinando uma paciente mulher Foto: Paris Descartes University

O que não surpreende: ela convive com uma enfermidade chamada lúpus eritematoso sistêmico, doença inflamatória autoimune grave muito mais frequente em mulheres do que nos homens, que ataca vários órgãos e é difícil de diagnosticar e tratar. Analisando o tratamento de “mulheres enfermas” através da história, ela acusa uma profissão médica dominada por homens, desde os tempos passados até os dias atuais, de não atentar para os relatos dos sintomas feitos pelas mulheres e elogia alguns médicos, homens e mulheres, que considera exceções.

“Nossas doenças não são ininteligíveis para nós. Mas alguma coisa a respeito delas parece impedir e frustrar a medicina o tempo todo”, escreve ela.

Como médica e jornalista especializada em medicina, eu já estava familiarizada com as muitas formas com que a medicina tem ignorado doenças femininas ou deixado de investigar suas causas, mas o livro de Elinor Cleghorn, Unwell Women: Misdiagnosis and Myth in a Man-Made World faz conexões entre o papel do médico e o interesse da sociedade em controlar o corpo das mulheres que nunca avaliei completamente. Em cada era, desde os ensinamentos do médico grego da Antiguidade, Hipócrates, aos debates do século passado sobre o acesso das mulheres aos métodos de contracepção e aborto, Cleghorn detecta pressupostos econômicos e sociais comuns: que as mulheres são inferiores aos homens; que seu principal propósito na vida é casar e ter filhos; que excesso de educação é ruim para elas; que as mulheres, por natureza, são vulneráveis a doenças “misteriosas”, físicas e mentais; e que a sexualidade feminina é perigosa se não for controlada - bastante perigosa durante alguns períodos para justificar a remoção dos órgãos sexuais femininos, a prescrição de tranquilizantes viciantes e mesmo uma cirurgia cerebral.

Sem sexo frequente e sem procriar, sugeriu Hipócrates nos seus escritos médicos nos séculos 4 e 5 antes de Cristo, o útero feminino “vagava” para cima na direção do fígado e então bloqueava sua respiração, levando a mulher à morte. Mais tarde sua teoria deu origem à palavra “histeria” (de hystera palavra grega para útero), termo usado para denotar um transtorno mental (normalmente em mulheres) que provocava uma excitação emocional, ansiedade e sintomas físicos, que os médicos consideravam fictício. Até o final do século 19, escreve Cleghorn, a histeria era “o diagnóstico para toda e quaisquer patologias “femininas” que os médicos não conseguiam compreender”.

Durante séculos, a medicina continuou a atribuir poderes estranhos ao sistema reprodutivo feminino. Em 1651 William Harvey, médico que ficou famoso por explicar a circulação do sangue, declarou que “a condição antinatural do útero” (ou seja, a falta de sexo marital) podia causar sintomas mentais do tipo mais grave”. Duzentos anos depois, outro médico britânico, Edward Tilt, sugeriu que as mulheres jovens irritavam seus ovários quando andavam a cavalo ou viajavam de trem durante a menstruação - especialmente se estavam nervosas ou tinham longos cílios. Na Inglaterra no século 19 a menstruação era mencionada como “doença” e se achava que as mulheres não deviam trabalhar, se exercitar, ter atividades sociais ou intelectuais durante aquele período do mês em que ela menstruava.

Mas não menstruar era visto como algo perigoso também. Em 1972 um cirurgião americano, Robert Battey, removeu os ovários de Julia Omberg, de 23 anos, para tratar um cansaço debilitante que ela dizia ser ocasionado pela falta de períodos menstruais. A sobrevivência da jovem levou Battey e outros cirurgiões a removerem os ovários de outras mulheres (e assim esterilizando-as) durante os anos 1880 e 1890 “em hospitais públicos na Grã-Bretanha e instituições psiquiátricas nos Estados Unidos”.

Às vezes esta e outras cirurgias eram realizadas em mulheres como tratamento para a masturbação ou outro comportamento considerado extremamente sexual. Em muitos Estados americanos, a esterilização sem consentimento das mulheres com doenças como epilepsia ou doença mental foi legalizada no início do século 20, durante o movimento de eugenia, especialmente depois de uma decisão da Suprema Corte, em 1927, que sustentou a legalidade da esterilização forçada de Carrie Buck, de 17 anos, em Lynchburg, Virgínia. Nos anos 1940 e 1950, uma operação no cérebro chamada lobotomia pré-frontal, ficou popular como um novo tratamento para curar a depressão e outras doenças mentais. As mulheres constituíam 75% dos pacientes submetidos a essas “psicocirurgias” realizadas por Walter Freeman e James Watts, dois médicos famosos nos Estados Unidos. “Numa era em que a mulher mentalmente saudável era a esposa e mãe serena, qualquer comportamento ou emoção que perturbasse a harmonia doméstica podia ser interpretada como justificativa para uma lobotomia”, escreve Cleghorn.

Antiga estudiosa de ciências humanas e estudos culturais na universidade de Oxford, Cleghorn concentrou sua pesquisa na Europa Ocidental, particularmente na Grã-Bretanha, e nos Estados Unidos. Ela aponta os importantes avanços no entendimento científico do corpo feminino, mas não explica em detalhes. Durante a maior parte do período que ela cobriu, as mulheres não tinham permissão para se tornarem médicas. Elizabeth Blackwell, nascida na Inglaterra em 1849, foi a primeira a se diplomar em medicina em uma faculdade americana. Na Grã-Bretanha, em 1865, Elizabeth Garrett Anderson foi a primeira mulher a obter uma licença para a prática de medicina.

Somente mulheres brancas, da classe mais alta, eram tratadas por médicos. Muitas outras tiveram filhos assistidas por parteiras e suas febres e feridas eram tratadas por membros da família ou curadores locais. Mas os corpos de mulheres pobres, incluindo prisioneiras executadas, às vezes eram fornecidos a médicos para serem dissecados e para estudos anatômicos.

No século 19, na Inglaterra e nos Estados Unidos, considerava-se que as mulheres negras sentiam menos dor do que as brancas - “suposições racistas”, observa Cleghorn, “que tiveram reflexo na prática médica atual”. Em 1845 um cirurgião americano, James Marion Sims, baseou-se nessa crença para justificar a realização de várias operações experimentais, sempre sem anestesia, em três mulheres escravas, Anarcha, Betsey e Lucy. As três sofreram danos pélvicos durante o parto dos seus filhos que causaram problemas de vazamento da urina da bexiga para a vagina, Sims quis realizar uma operação para corrigir o problema, mas visando outras pacientes, mas para isso infligiu uma tortura inimaginável a essas três mulheres, impotentes para recusarem. Anarcha se submeteu ao experimento cirúrgico mais de 30 vezes.

Nos anos 1850, tanto mulheres brancas como negras aderiram às campanhas por direitos iguais e o direito ao voto. Mudanças políticas e sociais, embora lentas para se materializarem, já começavam a surgir. Em 1914, Margaret Sanger, enfermeira e ativista, começou a distribuir um folheto para as mulheres sugerindo receitas e remédios caseiros para evitar uma gravidez indesejada e logo depois abriu uma clínica no Brooklyn. Processada judicialmente, ela foi presa com base em leis deficientes, ela insistiu no seu argumento de que as mulheres deviam ser donas do seu próprio corpo, cunhando o termo “controle de natalidade”. Sua contemporânea, a ativista britânica Marie Stopes, publicou um livro popular para educar as mulheres inglesas sobre sexo e, em 1921, abriu uma clínica em Londres para mulheres casadas que fornecia assistência e até contraceptivos. Infelizmente, como Cleghorn relata, apesar da sua importância como defensoras da saúde reprodutiva das mulheres, os registros de Sanger e Stopes estão manchados por suas crenças na eugenia. Sanger defendeu a esterilização para “as loucas e de mente fraca” e aquelas com “doenças herdadas ou transmissíveis”. Hoje, “controle de natalidade” implica o controle pelo Estado ou outros, e não é mais usado comumente.

A palavra “hormônio” entrou no léxico médico em 1905 para descrever secreções do pâncreas e foi logo usada para outros mensageiros químicos produzidos por qualquer das glândulas do corpo. No caso das mulheres, o século 20 foi a era dos hormônios e da terapia hormonal. Enfim, cientistas e médicos aprenderam como os ovários funcionam de fato, o que desencadeava o período menstrual e porque as mulheres passam por uma menopausa. Os hormônios “femininos” estrogênio e progesterona, junto com outros, é que dirigiam a orquestra.

A descoberta desses hormônios e o desenvolvimento de drogas para imitar seus efeitos resultou primeiro no remédio extremamente popular Premarin, um estrógeno que foi promovido para mulheres na menopausa, e mais tarde levou aos anticoncepcionais na forma de pílulas, injetáveis ou implantáveis e remédios atualmente aprovados pela FDA para aborto médico. Sem dúvida essas invenções mudaram, e ainda vêm mudando, a vida das mulheres. E no caso das empresas farmacêuticas, para elas também foram abertas oportunidades de marketing de enorme sucesso financeiro.

Embora a menopausa seja um processo natural, os ginecologistas tendem a vê-la como doença que pode hoje ser tratada com hormônio. Antes e durante a menopausa, as mulheres sofrem com “ondas de calor”, mudanças nos seus períodos e às vezes alterações de humor. Para muitas, os sintomas são temporários. O Premarin foi comercializado em 1941 “para abrandar sintomas severos da menopausa”, afirma Cleghorn, mas também era “vendido como um alívio para os maridos que não podiam mais suportar o humor belicoso das suas esposas”. As mulheres foram encorajadas a acreditar que o Premarin as manteria com aparência jovem e “eternamente feminina”, citando o título de um manual de uma farmacêutica.

Cleghorn não menciona a sequela: mais de 60 anos depois, pelo menos 40% das mulheres que passaram da menopausa estavam fazendo terapia hormonal quando resultados de um estudo amplo que durou vários anos sobres os efeitos do tratamento, o Women’s Health Initiative, foi publicado. Depois de acompanhar mais de 27 mil mulheres durante um tempo médio de 13 anos, os pesquisadores concluíram que os riscos daquele tratamento mais comumente adotado superavam os benefícios. A terapia hormonal aumentava o risco das usuárias de contraírem um câncer invasivo da mama, sofrerem um AVC e terem coágulos sanguíneos, emboraajudasse a prevenir fraturas de quadril e diabetes. O tratamento hormonal depois da menopausa já não é mais recomendado.

Cleghorn oferece relatos sobre a ascensão do feminismo e do movimento pela saúde da mulher, incluindo as controvérsias médicas e éticas em torno dos primeiros contraceptivos orais nos anos 1950. Esses contraceptivos foram testados em mulheres pobres de Porto Rico que não foram avisadas dos possíveis efeitos colaterais e tampouco foi pedido o consentimento delas.

Cleghorn relata a formação de grupos ativistas nos Estados Unidos cujos membros davam aulas às mulheres sobre seu próprio corpo, faziam lobby para o establishment médico e em alguns lugares treinaram ilegalmente pessoas para realizarem abortos. Nos anos 1960 quando uma a cada seis mortes relacionadas à gravidez era causada por um aborto não realizado com segurança, as ativistas também lutavam pela legalização do aborto a nível estadual. Our Bodies, Ourselves (Nossos corpos, nós mesmas), um livro do Boston Women’s Health Collective, foi publicado em 1971 e vendidos 230 mil exemplares naquele mesmo ano.

Em 1981 a ativista Byllye Avery lançou o National Black Women’s Health Project para criar uma comunidade onde as mulheres negras poderiam falar sobre seus próprios problemas de saúde, incluindo a mortalidade materna e de recém-nascidos, câncer de mama, doenças renais e do coração, lúpus e outras enfermidades. “Há muito tempo nos falam para guardar nossos problemas para nós”, disse Lillie Pearl Allen à uma plateia. “Bem, esse silêncio mantido está nos matando”.

O escopo e os detalhes no livro Unwell Women são vastos e às vezes arrasadores. Sua lição mais marcante é que, quando se trata de doenças femininas e seu tratamento, falsas crenças e atitudes sexistas têm vida própria. Num momento em a pandemia tem mostrado as disparidades em termos de saúde e quando os direitos de reprodução da mulher estão de novo ameaçados, o livro é um chamado às armas para qualquer mulher que achar que os médicos não têm resolvido adequadamente sua doença ou dor. Oportunamente, Cleghorn termina falando da sua própria batalha com sua doença, o lúpus, que não foi diagnosticado durante vários anos até causar complicações na sua gravidez que quase levaram seu segundo filho à morte antes de nascer.

“Para parafrasear a grande Maya Angelou”, ela escreve, “Quando uma mulher disser que está com dor, acredite nela desde o primeiro instante”. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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