Eleita a melhor saga de fantasia e ficção científica de todos os tempos em 1966 pelo prêmio Hugo, batendo obras de J.R.R. Tolkien e Edgar Rice Burroughs, a trilogia da Fundação, do escritor russo-americano Isaac Asimov (1920-1992), é, simultaneamente, uma colcha de retalhos e uma das mais ambiciosas histórias já contadas. Colcha de retalhos, porque o primeiro livro consiste de cinco contos publicados entre 1942 e 1951, e os outros dois, de 1952 e 1953, somam duas noveletas cada. Mas ambiciosa, pois, embora episódica, abarca séculos de história e não tem um personagem central único: a protagonista é a raça humana.
A saga completa da Fundação conta ao todo com sete livros, mas sua trilogia inicial (Fundação, Fundação e Império e Segunda Fundação) acaba de ganhar uma nova edição pela Aleph, em um volume único, um calhamaço de 880 páginas que inclui um ensaio do pesquisador Donald Palumbo, professor da East Carolina University, e uma entrevista com o autor feita à época da publicação da segunda de suas três autobiografias, em 1980.
Prolífico, Asimov nunca foi conhecido por ser um grande esteta literário ou por construir personagens extremamente sólidos, mas sim por suas ideias revolucionárias como as leis da robótica. Inspirado pela descrição da queda de Roma pelo historiador Edward Gibbon, Asimov decidiu narrar a agonia de um império de proporções titânicas: “Havia quase vinte e cinco milhões de planetas habitados na Galáxia então, e nenhum deles deixava de prestar obediência ao Império cujo trono ficava em Trantor. Era o último meio século no qual essa afirmação poderia ser feita.”
Nesse pano de fundo, o cientista Hari Seldon cria a psico-história, uma ciência capaz de aplicar estatística e matemática às questões políticas, sociais e econômicas não apenas para identificar tendências mas para prever com eficácia eventos futuros. Por meio de seus cálculos, ele descobre, ainda durante o auge do Império, que seu declínio é inevitável e trará 30 milênios de trevas, obscurantismo e barbárie à humanidade. Então, propõe uma estratégia para reduzir esse interregno a mil anos.
O vaticínio de Seldon é recebido pelos governantes de Trantor com a mesma hostilidade com que os líderes mundiais de hoje recebem os alertas da comunidade científica quanto às mudanças climáticas: “Dos quatrilhões que vivem hoje, ninguém, entre todas as estrelas da Galáxia, estará vivo daqui a um século. Por que, então, deveríamos nos preocupar com acontecimentos de daqui a três séculos?”, indaga o chefe de segurança pública do império, durante o julgamento de Seldon, acusado de traição meramente por divulgar seus cálculos. O cientista responde: “Chame de idealismo. Chame de uma identificação minha com a da generalização mística à qual nos referimos pelo termo ‘humanidade’.”
A trilogia da Fundação narra, então, o chamado “Plano Seldon” sendo colocado em prática por vias tortuosas mesmo séculos após sua morte. Para conduzir os rumos dessa sociedade – a Fundação –, ele cria uma equipe secreta de psico-historiadores – a Segunda Fundação – que age por debaixo dos panos para se ater aos desígnios do cientista. A saga oferece brilhantes discussões sobre livre-arbítrio, determinismo e o lugar da humanidade no universo, mas os principais debates giram em torno da (in)evitabilidade do processo histórico e do real impacto dos indivíduos, por mais importantes que sejam, nessa marcha coletiva.
Raskolnikov, o atormentado protagonista de Crime e Castigo, de Fiodor Dostoievski, pondera sobre a existência de uma linha que separe os indivíduos extraordinários – como César e Napoleão, que, para ele, não se furtam a cometer atrocidades para alcançar a grandeza que lhes é reservada – das pessoas comuns, sujeitas às leis e às próprias consciências. Já em uma carta de 1894 ao economista Walther Borgius, Friedrich Engels afirma que “se não houvesse Napoleão, outro preencheria seu lugar”.
Em um dos trechos mais dramáticos do segundo livro, Fundação e Império, o destino do Plano Seldon é ameaçado graças a um único indivíduo, o Mulo, um mutante com habilidades psíquicas sobre-humanas – algo que Hari Seldon, morto séculos antes desse momento histórico, nunca poderia ter previsto em seus cálculos. Nessa cena, os conhecimentos do principal cientista da Fundação após Seldon, o psicólogo Ebling Mis, podem colocar em risco todo o plano, e é também uma ínfima ação individual de Bayta Darell (uma das raras personagens femininas interessantes na obra de Asimov, curiosamente inspirada em sua ex-mulher Gertrude) que sela o destino da galáxia.
O conflito entre esses personagens – indivíduos que podem afetar a vida de trilhões de pessoas – desperta a insolúvel questão da real capacidade de uma pessoa sozinha influenciar a história.
Psico-história na vida real
Não existem indícios de que Asimov conhecesse o filósofo catalão Alexandre Deulofeu (1903-1978), mas no mesmo ano em que a Fundação foi lançada em livro, Deulofeu publicou A Matemática da História, em que defendia que civilizações e impérios passam por ciclos passíveis de serem antevistos por instrumentos estatísticos e, com isso, crises poderiam ser evitadas. Ele preconizou em 1934 a dissolução da Iugoslávia; em 1941, a queda da Alemanha nazista; e, em 1951, a reunificação da Alemanha e o colapso da União Soviética “por volta do ano 2000”.
Outro candidato a “Hari Seldon da vida real” é o professor russo-americano Peter Turchin, da Universidade de Connecticut. Em 2003, ele propôs a cliodinâmica, que tenta explicar eventos históricos por meio de modelos matemáticos aplicados às ciências humanas. Em 2012, Turchin publicou um estudo identificando padrões entre os picos de instabilidade política e violência em diversas sociedades, como o Império Romano, a França medieval e os Estados Unidos. Por meio de sua análise, o acadêmico previu uma nova escalada de tensão a partir de 2020.
No entanto, uma versão da psico-história de Asimov pode já estar sendo amplamente utilizada em um laboratório de mais de 2,3 bilhões de pessoas: o Facebook. Cameron Marlow, ex-chefe da equipe científica da empresa de Mark Zuckerberg, já afirmou que “pela primeira vez, temos um microscópio que não apenas nos permite examinar o comportamento social num nível muito detalhado, que jamais conseguimos ver antes, como também possibilita fazer experimentos a que milhões de usuários estão expostos”.
No livro O Mundo que Não Pensa, o jornalista Franklin Foer mostra como a gigante tecnológica trata seus usuários como cobaias. Um dos exemplos que ele fornece é a ocasião em que a empresa tentou descobrir se emoções são contagiosas pela rede: “Para um grupo, o Facebook removeu palavras positivas dos posts do feed de notícias; para um outro grupo, removeu as negativas. Cada grupo, foi concluído, escreveu postagens que reproduziam o tom dos posts que foram reescritos.”
Com uma quantidade tão grande de informações sobre usuários à disposição, as empresas do Vale do Silício podem, na era do Big Data, transformar estatísticas em previsões reais a nível individual, ainda mais precisas do que a cliodinâmica jamais sonhou – mais eficientes até mesmo que a psico-história de Hari Seldon, que só consegue lidar com grandes massas humanas, sem fazer previsões sobre indivíduos isolados.
A frieza dos tecnocratas do Vale do Silício ao lidar com dados pessoais é assustadoramente semelhante à maneira pela qual os psico-historiadores conduzem o destino da galáxia por se julgarem aptos a decidir as veredas pelas quais a humanidade deve trilhar. Não por acaso, no terceiro livro da série, Segunda Fundação, quando a sociedade descobre a possível manipulação de seu destino, mantida em segredo por anos, ainda que supostamente com boas intenções, eles se rebelam contra os psico-historiadores – Asimov, que migrou da União Soviética para os Estados Unidos ainda na infância, sabia muito bem o valor da liberdade.