“Quem conhece esse tal dr. Schreber?” pergunta, em tom jocoso, um artigo publicado no Reino da Saxônia, em 1884, em referência à derrota que o jurista Daniel Paul Schreber (1842-1911) sofrera nas eleições parlamentares.
O nome certamente não carregava irrelevância: pertencia a uma linhagem de pessoas cultas, eruditas e preocupadas com a moralidade. O pai, o pedagogo e ortopedista Daniel Gottlob Moritz Schreber (1808-1861), era referência de uma educação infantil rigorosa, corporalmente corretiva e baseada na supressão das emoções, que visava à construção de seres humanos “aperfeiçoados” – um higienismo moral, cruel e fadado ao insucesso, ilustrado pelo mal-estar que Michael Haneke põe na tela em A Fita Branca (2009).
As ideias de Schreber-pai mais tarde serviriam à Alemanha nacionalista. Mesmo sob conhecidas pretensões de adentrar a História por meio do trabalho intelectual, dificilmente algum dos Schreber fosse imaginar o alcance que seu nome teria com Daniel Paul: hoje, quase 120 anos depois, o estudo da loucura é devedor do relato de suas vivências, apresentadas com os detalhes despudorados e destemidos de quem sabia estar ofertando ouro.
“O pior que poderia me acontecer seria apenas que me considerassem mentalmente perturbado, e isso já acontece de qualquer modo. Portanto, aqui eu nada teria a perder”, escreve Schreber nas suas Memórias de um Doente dos Nervos, publicadas em 1903. Leitores brasileiros têm uma nova oportunidade de encontro com a tocante obra, que estava esgotada. Traduzida pela psicanalista Marilene Carone e publicada em 1984, recebeu novíssima edição pela Todavia – aliás, a bela capa de Elisa v. Randow é outro ponto a ser destacado.
Carone é a criteriosa pioneira que apresentou um outro Freud ao Brasil ao traduzi-lo diretamente do alemão, transpondo fascínio literário e rigor conceitual à língua de chegada. Nos próximos anos a editora vai publicar as reedições dos esgotados Luto e Melancolia e A Negação, além da inédita tradução que ela fez das Conferências Introdutórias à Psicanálise.
Escritas entre 1900 e 1902, durante a segunda das três internações clínicas por quais Schreber passou, as Memórias são o testemunho de seu atordoante processo paranoico. Antes do desencadeamento de seu sofrimento mental, ele alçara voos cada vez mais altos na carreira; desfrutava de tamanho prestígio profissional que, em 1893, foi convocado para o mais alto posto jurídico, em uma irrecusável nomeação feita pelo rei.
Certa manhã, em estado meio adormecido, meio desperto, Schreber se viu assaltado por um pensamento que o deixou perplexo. “Era a ideia de que deveria ser realmente bom ser uma mulher se submetendo ao coito”. Logo após assumir o prestigioso cargo, passa a sofrer de insônia e angústia intensa, chegando ao colapso mental. Alucinações e delírios exprimem as rachaduras de seu mundo interno, ao mesmo tempo em que o revestem de fantasias místico-religiosas que envolvem, entre outras exigências, sua transformação em mulher.
Schreber se vê incumbido de uma intransferível tarefa: protagonizar, sob os desígnios de Deus, o nascimento de um novo mundo, povoado por uma humanidade renovada. O jurista, então, escreve suas vivências em um esforço de explicar as estranhezas de seu comportamento.
Idealizadas com o pretexto de lhe fornecer fundamento legal para sair do hospital e recuperar sua autonomia como cidadão – o que de fato foi conquistado –, as Memórias acabaram vestindo uma outra intenção, a de contribuir “para a ciência e o conhecimento de verdades religiosas”. Suas criações de linguagem, imprescindíveis para seu tecido paranoico, recebem de Marilene Carone um cuidadoso e interessante glossário, como um léxico infamiliar em que muitos podem se reconhecer.
Mais do que um nome ou um verbete enciclopédico, Schreber fez de sua existência uma permanência que resistiu inclusive diante daqueles que se recusavam a dar voz aos psicóticos. Sobretudo depois da leitura de Freud, que, naquelas linhas tão bem escritas e estruturadas pelo douto jurista, encontrou o empuxo de que precisava para desenvolver e lançar, em 1911, sua teoria sobre as psicoses. A meticulosa autobiografia de Schreber fez com que ele conquistasse lugar dentre os grandes casos da clínica freudiana, mesmo não tendo sido um paciente.
A obra recebeu atenção de Walter Benjamin e, décadas mais tarde, suscitou em Lacan uma redefinição de rumos na psicopatologia e na abordagem de pacientes psicóticos. Sua influência hoje perpassa searas distintas da cultura, como a adaptação para audiolivro feita pelas atrizes Frances McDormand e Maura Tierney; a homenagem ao nome do personagem de Kiefer Sutherland no filme Cidade das Sombras (1998); ou a inspiração direta para o romance Playthings, de Alex Pheby.
A partir de Schreber, Freud faz uma ruptura no discurso psiquiátrico da loucura ao instituir o valor do delírio como um trabalho de reconstrução de um mundo acessível ao paranoico. Em vez de produto da doença, a formação delirante é, “na realidade, tentativa de cura”.
Lacan preserva a riqueza restauradora dos delírios, mas oferece interpretação distinta à paranoia de Schreber. Para Freud, o que deflagra a psicose é a defesa frente ao desejo homossexual que irrompe na imagem moralmente idealizada que o jurista forja para si em seu tempo e contexto social e familiar. Para Lacan, no entanto, o que estava em questão era a relação de Schreber com o pai.
Além de um envolvente texto introdutório de Carone, a edição da Todavia traz dois belos ensaios que levam as Memórias a outras direções. O ensaísta Roberto Calasso contextualiza as diferentes recepções psicanalíticas à íntima narrativa de Schreber, enquanto o romancista Elias Canetti depura dali uma atualíssima interpretação a respeito das relações entre paranoia e (desejo de) poder.
Não restam dúvidas de que as Memórias de um doente dos nervos se tornaram um instrumento de validação imaterial para Schreber; porém, a repercussão é coletiva ao estabelecer uma espécie de estatuto de humanização com lições para o Brasil. Em uma lamentável atualidade, especialmente ditada por retrocessos nas políticas de saúde mental, “loucos e alienados” permanecem apartados do convívio e da realidade partilhada por aqueles que se designam “sãos”. Mas foi por meio da própria loucura que Schreber demandou sua reinserção no laço social.
Foi com a palavra e com a apresentação de si que ele pôde transmitir sua legitimidade, assim como o fez a brasileira Estamira, protagonista do documentário que leva seu nome e então sobrevivente do transbordamento de sua própria vida: “A minha missão, além de ser a Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja a mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou, então... ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes...”.
*AMANDA MONT’ALVÃO VELOSO É PSICANALISTA E DOUTORANDA EM LINGUÍSTICA APLICADA PELA PUC-SP