Como o 'Fausto' de Goethe foi atualizado por um brasileiro


'A Dupla Noite das Tílias', de Marcus Vinicius Mazzari, encarou desafio de produzir uma nova interpretação do mito

Por André Jobim Martins

Sergio Buarque de Holanda escreveu certa vez que “cada época recria as obras de arte segundo sistemas de gosto que lhe são próprios e familiares”. “É graças a essa maravilhosa recriação”, continua, “que Homero e Cervantes podem ser e são nossos contemporâneos”. Observação de sentido quase idêntico foi feita alguns anos depois por Erich Auerbach. Notando como o romantismo atribuiu à obra máxima de Cervantes uma nostalgia (romântica) que não estar nas intenções do autor, o filólogo escreveu num estudo sobre o Dom Quixote que “tais interpretações e hiperinterpretações de um texto são frutíferas” porque, nelas, “um livro solta-se da intenção de seu autor” e “apresenta a cada época que nele acha prazer um novo rosto”.

A consciência de que a atualização das obras literárias se dá conforme as solicitações espirituais e disposições de leitura da época de quem lê – e não aquelas de quem escreve – é consequência natural da sensibilidade histórica desenvolvida no Ocidente a partir do final do século 18. Há boas razões para supor, no entanto, que tanto Sergio Buarque quanto Auerbach se valeram, na formulação de seus insights, das reflexões críticas de Goethe, para quem a literatura não se limitava a depositar num texto os sentimentos e formas de ver de uma pessoa, mas poderia ser apropriada pelos leitores, que encontrariam nas obras elementos que os próprios autores não teriam sido capazes sequer de imaginar. É significativo, nesse sentido, que o grande poeta tenha deixado aos cuidados de amigos a publicação póstuma da segunda parte de sua obra máxima – o Fausto. Assim, pode-se dizer que tal obra foi feita para todas as épocas, menos, num sentido estrito, para a sua própria. Essa atualidade “quase inimaginável” da tragédia goethiana levou Marcus Vinicius Mazzari ao desafio de produzir, no encalço de uma legião de comentadores, uma nova interpretação da peça.

A tarefa do germanista da USP em A Dupla Noite das Tílias (Ed. 34, 2019) é difícil, pois o texto comentado encerra nada menos do que um painel quase inesgotável de motivos e figuras compostos a partir da visão extraordinariamente lúcida que Goethe articulou das transformações históricas e sociais que presenciou ao longo de sua vida. 60 anos decorreram entre o início do trabalho do poeta em torno do doutor pactário até que o desse por terminado, pouco antes de morrer. Auxiliado pelo demônio Mefistófeles, Fausto testemunha (e em certos casos influencia) acontecimentos como a invenção da máquina a vapor, a introdução do papel-moeda, a rotinização das navegações intercontinentais, a devastação da natureza e até o surgimento do socialismo – poucos dos temas centrais da modernidade escaparam a essa peça de Goethe.

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Goethe em obra de Andy Warhol Foto: Andy Warhol

Diante da riqueza potencialmente desnorteante da obra, Mazzari opta, acertadamente, por centrar sua análise no episódio singular do qual deriva o título de seu livro. Começa o último ato da tragédia e Fausto, alçado por façanhas militares (obtidas, naturalmente, por meios demoníacos) a governante da região costeira de um grande império, empenha a força (e eventualmente as vidas) de um exército de operários na construção de um sistema de diques e aterros que conquistarão ao mar, para usufruto humano, vastas e novas terras. O despótico empreendedor se sente ainda incomodado pelo último resquício das formas de vida tradicionais a subsistir na vizinhança de seu palácio: a idílica cabana do casal de anciãos Filemon e Baucis. Fausto, que ainda não conseguiu convencer os vizinhos das vantagens de ocupar as terras por ele criadas, deixa aos cuidados de Mefistófeles a tarefa de remover os dois de lá, a fim de poder construir um alto mirante, de onde a infinita extensão de suas terras possa ser admirada. De volta do encontro previsivelmente violento com os dois anciãos, Mefisto responde à pergunta de Fausto sobre os detalhes da expedição com um eufemismo cínico que lembra o jargão miliciano bem conhecido do Brasil atual: “Perdão! Não ocorreu de maneira amistosa”.

A imagem que dá corpo à intensidade dramática do destino do casal é a canção de Linceu, vigia do palácio, que começa elogiando a beleza da paisagem idílica em torno da cabana, mas logo passa à expressão do horror diante da “dupla noite das tílias”, ou seja, dos escuros troncos das duas árvores milenares que ardem junto à cabana e aos anciãos assassinados. O episódio evoca uma cena clássica: em certo passo das Metamorfoses, Ovídio narra como os pastores Filemon e Baucis perdem suas terras, por capricho divino, numa inundação, mas são imortalizados, em troca, pela transformação num par de árvores.

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O que interessa a Mazzari é torção trágica que Goethe dá ao modelo: o projeto demiúrgico de Fausto nada oferece em troca do assassinato do casal e da destruição de seu mundo arcaico, a não ser, talvez, a esperança no futuro de uma humanidade livre. À luz de desenvolvimentos históricos mais recentes, é difícil atualizar uma leitura otimista da obra sem prejudicar nossa própria leitura do mundo real. Se Fausto foi lido no passado como personificação da perfectibilidade da espécie humana – ou seja, de um futuro redentor da trajetória por vezes trágica e cruel da espécie – é preciso admitir que essa perspectiva não tem muito a dizer ao mundo atual.

É motivado em parte por esse problema que Mazzari opera sua engenhosa leitura do episódio de Filemon e Baucis como uma “fórmula ético-estética” para a destrutibilidade inerente ao mundo moderno. Uma tal “fórmula”, na linha interpretativa avançada pelo crítico, não seguiria os preceitos poéticos das formas mais tradicionais da alegoria e do símbolo, nas quais a imagem poética está mobilizada na direção de um significado visado previamente pelo autor, mas sim num nível de sublimação “matemático”, no qual o poeta compõe uma figura aparentemente alegórica ou simbólica que pode, pela sua pregnância universal, incidir para além do horizonte histórico no qual fora gestada – como um teorema que se aplica indistintamente a casos conhecidos ou não por quem o formula. Assim, a sina de Filemon e Baucis poderá apontar tanto para a cena ovidiana como para os genocídios perpetrados na colonização da América, ou até para para o Holocausto (como já se disse sobre o sentido premonitório da obra de Kafka) e para a devastação de biomas e populações originárias. Resta saber quem, a esta altura, ainda seria capaz de redimir Fausto.

A DUPLA NOITE DAS TÍLIAS AUTOR: MARCUS VINICIUS MAZZARI EDITORA: 34 264 PÁGS., R$ 53*ANDRÉ JOBIM MARTINS É HISTORIADOR E TRADUTOR

Sergio Buarque de Holanda escreveu certa vez que “cada época recria as obras de arte segundo sistemas de gosto que lhe são próprios e familiares”. “É graças a essa maravilhosa recriação”, continua, “que Homero e Cervantes podem ser e são nossos contemporâneos”. Observação de sentido quase idêntico foi feita alguns anos depois por Erich Auerbach. Notando como o romantismo atribuiu à obra máxima de Cervantes uma nostalgia (romântica) que não estar nas intenções do autor, o filólogo escreveu num estudo sobre o Dom Quixote que “tais interpretações e hiperinterpretações de um texto são frutíferas” porque, nelas, “um livro solta-se da intenção de seu autor” e “apresenta a cada época que nele acha prazer um novo rosto”.

A consciência de que a atualização das obras literárias se dá conforme as solicitações espirituais e disposições de leitura da época de quem lê – e não aquelas de quem escreve – é consequência natural da sensibilidade histórica desenvolvida no Ocidente a partir do final do século 18. Há boas razões para supor, no entanto, que tanto Sergio Buarque quanto Auerbach se valeram, na formulação de seus insights, das reflexões críticas de Goethe, para quem a literatura não se limitava a depositar num texto os sentimentos e formas de ver de uma pessoa, mas poderia ser apropriada pelos leitores, que encontrariam nas obras elementos que os próprios autores não teriam sido capazes sequer de imaginar. É significativo, nesse sentido, que o grande poeta tenha deixado aos cuidados de amigos a publicação póstuma da segunda parte de sua obra máxima – o Fausto. Assim, pode-se dizer que tal obra foi feita para todas as épocas, menos, num sentido estrito, para a sua própria. Essa atualidade “quase inimaginável” da tragédia goethiana levou Marcus Vinicius Mazzari ao desafio de produzir, no encalço de uma legião de comentadores, uma nova interpretação da peça.

A tarefa do germanista da USP em A Dupla Noite das Tílias (Ed. 34, 2019) é difícil, pois o texto comentado encerra nada menos do que um painel quase inesgotável de motivos e figuras compostos a partir da visão extraordinariamente lúcida que Goethe articulou das transformações históricas e sociais que presenciou ao longo de sua vida. 60 anos decorreram entre o início do trabalho do poeta em torno do doutor pactário até que o desse por terminado, pouco antes de morrer. Auxiliado pelo demônio Mefistófeles, Fausto testemunha (e em certos casos influencia) acontecimentos como a invenção da máquina a vapor, a introdução do papel-moeda, a rotinização das navegações intercontinentais, a devastação da natureza e até o surgimento do socialismo – poucos dos temas centrais da modernidade escaparam a essa peça de Goethe.

Goethe em obra de Andy Warhol Foto: Andy Warhol

Diante da riqueza potencialmente desnorteante da obra, Mazzari opta, acertadamente, por centrar sua análise no episódio singular do qual deriva o título de seu livro. Começa o último ato da tragédia e Fausto, alçado por façanhas militares (obtidas, naturalmente, por meios demoníacos) a governante da região costeira de um grande império, empenha a força (e eventualmente as vidas) de um exército de operários na construção de um sistema de diques e aterros que conquistarão ao mar, para usufruto humano, vastas e novas terras. O despótico empreendedor se sente ainda incomodado pelo último resquício das formas de vida tradicionais a subsistir na vizinhança de seu palácio: a idílica cabana do casal de anciãos Filemon e Baucis. Fausto, que ainda não conseguiu convencer os vizinhos das vantagens de ocupar as terras por ele criadas, deixa aos cuidados de Mefistófeles a tarefa de remover os dois de lá, a fim de poder construir um alto mirante, de onde a infinita extensão de suas terras possa ser admirada. De volta do encontro previsivelmente violento com os dois anciãos, Mefisto responde à pergunta de Fausto sobre os detalhes da expedição com um eufemismo cínico que lembra o jargão miliciano bem conhecido do Brasil atual: “Perdão! Não ocorreu de maneira amistosa”.

A imagem que dá corpo à intensidade dramática do destino do casal é a canção de Linceu, vigia do palácio, que começa elogiando a beleza da paisagem idílica em torno da cabana, mas logo passa à expressão do horror diante da “dupla noite das tílias”, ou seja, dos escuros troncos das duas árvores milenares que ardem junto à cabana e aos anciãos assassinados. O episódio evoca uma cena clássica: em certo passo das Metamorfoses, Ovídio narra como os pastores Filemon e Baucis perdem suas terras, por capricho divino, numa inundação, mas são imortalizados, em troca, pela transformação num par de árvores.

O que interessa a Mazzari é torção trágica que Goethe dá ao modelo: o projeto demiúrgico de Fausto nada oferece em troca do assassinato do casal e da destruição de seu mundo arcaico, a não ser, talvez, a esperança no futuro de uma humanidade livre. À luz de desenvolvimentos históricos mais recentes, é difícil atualizar uma leitura otimista da obra sem prejudicar nossa própria leitura do mundo real. Se Fausto foi lido no passado como personificação da perfectibilidade da espécie humana – ou seja, de um futuro redentor da trajetória por vezes trágica e cruel da espécie – é preciso admitir que essa perspectiva não tem muito a dizer ao mundo atual.

É motivado em parte por esse problema que Mazzari opera sua engenhosa leitura do episódio de Filemon e Baucis como uma “fórmula ético-estética” para a destrutibilidade inerente ao mundo moderno. Uma tal “fórmula”, na linha interpretativa avançada pelo crítico, não seguiria os preceitos poéticos das formas mais tradicionais da alegoria e do símbolo, nas quais a imagem poética está mobilizada na direção de um significado visado previamente pelo autor, mas sim num nível de sublimação “matemático”, no qual o poeta compõe uma figura aparentemente alegórica ou simbólica que pode, pela sua pregnância universal, incidir para além do horizonte histórico no qual fora gestada – como um teorema que se aplica indistintamente a casos conhecidos ou não por quem o formula. Assim, a sina de Filemon e Baucis poderá apontar tanto para a cena ovidiana como para os genocídios perpetrados na colonização da América, ou até para para o Holocausto (como já se disse sobre o sentido premonitório da obra de Kafka) e para a devastação de biomas e populações originárias. Resta saber quem, a esta altura, ainda seria capaz de redimir Fausto.

A DUPLA NOITE DAS TÍLIAS AUTOR: MARCUS VINICIUS MAZZARI EDITORA: 34 264 PÁGS., R$ 53*ANDRÉ JOBIM MARTINS É HISTORIADOR E TRADUTOR

Sergio Buarque de Holanda escreveu certa vez que “cada época recria as obras de arte segundo sistemas de gosto que lhe são próprios e familiares”. “É graças a essa maravilhosa recriação”, continua, “que Homero e Cervantes podem ser e são nossos contemporâneos”. Observação de sentido quase idêntico foi feita alguns anos depois por Erich Auerbach. Notando como o romantismo atribuiu à obra máxima de Cervantes uma nostalgia (romântica) que não estar nas intenções do autor, o filólogo escreveu num estudo sobre o Dom Quixote que “tais interpretações e hiperinterpretações de um texto são frutíferas” porque, nelas, “um livro solta-se da intenção de seu autor” e “apresenta a cada época que nele acha prazer um novo rosto”.

A consciência de que a atualização das obras literárias se dá conforme as solicitações espirituais e disposições de leitura da época de quem lê – e não aquelas de quem escreve – é consequência natural da sensibilidade histórica desenvolvida no Ocidente a partir do final do século 18. Há boas razões para supor, no entanto, que tanto Sergio Buarque quanto Auerbach se valeram, na formulação de seus insights, das reflexões críticas de Goethe, para quem a literatura não se limitava a depositar num texto os sentimentos e formas de ver de uma pessoa, mas poderia ser apropriada pelos leitores, que encontrariam nas obras elementos que os próprios autores não teriam sido capazes sequer de imaginar. É significativo, nesse sentido, que o grande poeta tenha deixado aos cuidados de amigos a publicação póstuma da segunda parte de sua obra máxima – o Fausto. Assim, pode-se dizer que tal obra foi feita para todas as épocas, menos, num sentido estrito, para a sua própria. Essa atualidade “quase inimaginável” da tragédia goethiana levou Marcus Vinicius Mazzari ao desafio de produzir, no encalço de uma legião de comentadores, uma nova interpretação da peça.

A tarefa do germanista da USP em A Dupla Noite das Tílias (Ed. 34, 2019) é difícil, pois o texto comentado encerra nada menos do que um painel quase inesgotável de motivos e figuras compostos a partir da visão extraordinariamente lúcida que Goethe articulou das transformações históricas e sociais que presenciou ao longo de sua vida. 60 anos decorreram entre o início do trabalho do poeta em torno do doutor pactário até que o desse por terminado, pouco antes de morrer. Auxiliado pelo demônio Mefistófeles, Fausto testemunha (e em certos casos influencia) acontecimentos como a invenção da máquina a vapor, a introdução do papel-moeda, a rotinização das navegações intercontinentais, a devastação da natureza e até o surgimento do socialismo – poucos dos temas centrais da modernidade escaparam a essa peça de Goethe.

Goethe em obra de Andy Warhol Foto: Andy Warhol

Diante da riqueza potencialmente desnorteante da obra, Mazzari opta, acertadamente, por centrar sua análise no episódio singular do qual deriva o título de seu livro. Começa o último ato da tragédia e Fausto, alçado por façanhas militares (obtidas, naturalmente, por meios demoníacos) a governante da região costeira de um grande império, empenha a força (e eventualmente as vidas) de um exército de operários na construção de um sistema de diques e aterros que conquistarão ao mar, para usufruto humano, vastas e novas terras. O despótico empreendedor se sente ainda incomodado pelo último resquício das formas de vida tradicionais a subsistir na vizinhança de seu palácio: a idílica cabana do casal de anciãos Filemon e Baucis. Fausto, que ainda não conseguiu convencer os vizinhos das vantagens de ocupar as terras por ele criadas, deixa aos cuidados de Mefistófeles a tarefa de remover os dois de lá, a fim de poder construir um alto mirante, de onde a infinita extensão de suas terras possa ser admirada. De volta do encontro previsivelmente violento com os dois anciãos, Mefisto responde à pergunta de Fausto sobre os detalhes da expedição com um eufemismo cínico que lembra o jargão miliciano bem conhecido do Brasil atual: “Perdão! Não ocorreu de maneira amistosa”.

A imagem que dá corpo à intensidade dramática do destino do casal é a canção de Linceu, vigia do palácio, que começa elogiando a beleza da paisagem idílica em torno da cabana, mas logo passa à expressão do horror diante da “dupla noite das tílias”, ou seja, dos escuros troncos das duas árvores milenares que ardem junto à cabana e aos anciãos assassinados. O episódio evoca uma cena clássica: em certo passo das Metamorfoses, Ovídio narra como os pastores Filemon e Baucis perdem suas terras, por capricho divino, numa inundação, mas são imortalizados, em troca, pela transformação num par de árvores.

O que interessa a Mazzari é torção trágica que Goethe dá ao modelo: o projeto demiúrgico de Fausto nada oferece em troca do assassinato do casal e da destruição de seu mundo arcaico, a não ser, talvez, a esperança no futuro de uma humanidade livre. À luz de desenvolvimentos históricos mais recentes, é difícil atualizar uma leitura otimista da obra sem prejudicar nossa própria leitura do mundo real. Se Fausto foi lido no passado como personificação da perfectibilidade da espécie humana – ou seja, de um futuro redentor da trajetória por vezes trágica e cruel da espécie – é preciso admitir que essa perspectiva não tem muito a dizer ao mundo atual.

É motivado em parte por esse problema que Mazzari opera sua engenhosa leitura do episódio de Filemon e Baucis como uma “fórmula ético-estética” para a destrutibilidade inerente ao mundo moderno. Uma tal “fórmula”, na linha interpretativa avançada pelo crítico, não seguiria os preceitos poéticos das formas mais tradicionais da alegoria e do símbolo, nas quais a imagem poética está mobilizada na direção de um significado visado previamente pelo autor, mas sim num nível de sublimação “matemático”, no qual o poeta compõe uma figura aparentemente alegórica ou simbólica que pode, pela sua pregnância universal, incidir para além do horizonte histórico no qual fora gestada – como um teorema que se aplica indistintamente a casos conhecidos ou não por quem o formula. Assim, a sina de Filemon e Baucis poderá apontar tanto para a cena ovidiana como para os genocídios perpetrados na colonização da América, ou até para para o Holocausto (como já se disse sobre o sentido premonitório da obra de Kafka) e para a devastação de biomas e populações originárias. Resta saber quem, a esta altura, ainda seria capaz de redimir Fausto.

A DUPLA NOITE DAS TÍLIAS AUTOR: MARCUS VINICIUS MAZZARI EDITORA: 34 264 PÁGS., R$ 53*ANDRÉ JOBIM MARTINS É HISTORIADOR E TRADUTOR

Sergio Buarque de Holanda escreveu certa vez que “cada época recria as obras de arte segundo sistemas de gosto que lhe são próprios e familiares”. “É graças a essa maravilhosa recriação”, continua, “que Homero e Cervantes podem ser e são nossos contemporâneos”. Observação de sentido quase idêntico foi feita alguns anos depois por Erich Auerbach. Notando como o romantismo atribuiu à obra máxima de Cervantes uma nostalgia (romântica) que não estar nas intenções do autor, o filólogo escreveu num estudo sobre o Dom Quixote que “tais interpretações e hiperinterpretações de um texto são frutíferas” porque, nelas, “um livro solta-se da intenção de seu autor” e “apresenta a cada época que nele acha prazer um novo rosto”.

A consciência de que a atualização das obras literárias se dá conforme as solicitações espirituais e disposições de leitura da época de quem lê – e não aquelas de quem escreve – é consequência natural da sensibilidade histórica desenvolvida no Ocidente a partir do final do século 18. Há boas razões para supor, no entanto, que tanto Sergio Buarque quanto Auerbach se valeram, na formulação de seus insights, das reflexões críticas de Goethe, para quem a literatura não se limitava a depositar num texto os sentimentos e formas de ver de uma pessoa, mas poderia ser apropriada pelos leitores, que encontrariam nas obras elementos que os próprios autores não teriam sido capazes sequer de imaginar. É significativo, nesse sentido, que o grande poeta tenha deixado aos cuidados de amigos a publicação póstuma da segunda parte de sua obra máxima – o Fausto. Assim, pode-se dizer que tal obra foi feita para todas as épocas, menos, num sentido estrito, para a sua própria. Essa atualidade “quase inimaginável” da tragédia goethiana levou Marcus Vinicius Mazzari ao desafio de produzir, no encalço de uma legião de comentadores, uma nova interpretação da peça.

A tarefa do germanista da USP em A Dupla Noite das Tílias (Ed. 34, 2019) é difícil, pois o texto comentado encerra nada menos do que um painel quase inesgotável de motivos e figuras compostos a partir da visão extraordinariamente lúcida que Goethe articulou das transformações históricas e sociais que presenciou ao longo de sua vida. 60 anos decorreram entre o início do trabalho do poeta em torno do doutor pactário até que o desse por terminado, pouco antes de morrer. Auxiliado pelo demônio Mefistófeles, Fausto testemunha (e em certos casos influencia) acontecimentos como a invenção da máquina a vapor, a introdução do papel-moeda, a rotinização das navegações intercontinentais, a devastação da natureza e até o surgimento do socialismo – poucos dos temas centrais da modernidade escaparam a essa peça de Goethe.

Goethe em obra de Andy Warhol Foto: Andy Warhol

Diante da riqueza potencialmente desnorteante da obra, Mazzari opta, acertadamente, por centrar sua análise no episódio singular do qual deriva o título de seu livro. Começa o último ato da tragédia e Fausto, alçado por façanhas militares (obtidas, naturalmente, por meios demoníacos) a governante da região costeira de um grande império, empenha a força (e eventualmente as vidas) de um exército de operários na construção de um sistema de diques e aterros que conquistarão ao mar, para usufruto humano, vastas e novas terras. O despótico empreendedor se sente ainda incomodado pelo último resquício das formas de vida tradicionais a subsistir na vizinhança de seu palácio: a idílica cabana do casal de anciãos Filemon e Baucis. Fausto, que ainda não conseguiu convencer os vizinhos das vantagens de ocupar as terras por ele criadas, deixa aos cuidados de Mefistófeles a tarefa de remover os dois de lá, a fim de poder construir um alto mirante, de onde a infinita extensão de suas terras possa ser admirada. De volta do encontro previsivelmente violento com os dois anciãos, Mefisto responde à pergunta de Fausto sobre os detalhes da expedição com um eufemismo cínico que lembra o jargão miliciano bem conhecido do Brasil atual: “Perdão! Não ocorreu de maneira amistosa”.

A imagem que dá corpo à intensidade dramática do destino do casal é a canção de Linceu, vigia do palácio, que começa elogiando a beleza da paisagem idílica em torno da cabana, mas logo passa à expressão do horror diante da “dupla noite das tílias”, ou seja, dos escuros troncos das duas árvores milenares que ardem junto à cabana e aos anciãos assassinados. O episódio evoca uma cena clássica: em certo passo das Metamorfoses, Ovídio narra como os pastores Filemon e Baucis perdem suas terras, por capricho divino, numa inundação, mas são imortalizados, em troca, pela transformação num par de árvores.

O que interessa a Mazzari é torção trágica que Goethe dá ao modelo: o projeto demiúrgico de Fausto nada oferece em troca do assassinato do casal e da destruição de seu mundo arcaico, a não ser, talvez, a esperança no futuro de uma humanidade livre. À luz de desenvolvimentos históricos mais recentes, é difícil atualizar uma leitura otimista da obra sem prejudicar nossa própria leitura do mundo real. Se Fausto foi lido no passado como personificação da perfectibilidade da espécie humana – ou seja, de um futuro redentor da trajetória por vezes trágica e cruel da espécie – é preciso admitir que essa perspectiva não tem muito a dizer ao mundo atual.

É motivado em parte por esse problema que Mazzari opera sua engenhosa leitura do episódio de Filemon e Baucis como uma “fórmula ético-estética” para a destrutibilidade inerente ao mundo moderno. Uma tal “fórmula”, na linha interpretativa avançada pelo crítico, não seguiria os preceitos poéticos das formas mais tradicionais da alegoria e do símbolo, nas quais a imagem poética está mobilizada na direção de um significado visado previamente pelo autor, mas sim num nível de sublimação “matemático”, no qual o poeta compõe uma figura aparentemente alegórica ou simbólica que pode, pela sua pregnância universal, incidir para além do horizonte histórico no qual fora gestada – como um teorema que se aplica indistintamente a casos conhecidos ou não por quem o formula. Assim, a sina de Filemon e Baucis poderá apontar tanto para a cena ovidiana como para os genocídios perpetrados na colonização da América, ou até para para o Holocausto (como já se disse sobre o sentido premonitório da obra de Kafka) e para a devastação de biomas e populações originárias. Resta saber quem, a esta altura, ainda seria capaz de redimir Fausto.

A DUPLA NOITE DAS TÍLIAS AUTOR: MARCUS VINICIUS MAZZARI EDITORA: 34 264 PÁGS., R$ 53*ANDRÉ JOBIM MARTINS É HISTORIADOR E TRADUTOR

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