Como o homem esqueceu o mais valioso tesouro, o silêncio


O historiador francês Alain Corbin conta a genealogia do universo das emoções coletivas ligadas à ‘História do Silêncio

Por Elias Thomé Saliba
Atualização:
Cena com Stephanie Cumming no filme 'Shirley: Visões da Realidade' (2013) recria tela do pintor americano Edward Hopper Foto: JERZY PALACZ

Muitos imaginam que aquele ritual do “minuto de silêncio”, hoje quase diário em face do luto de tantas mortes causadas pela pandemia, originou-se ou da sugestão de um jornalista australiano para o dia do armistício em 1919 ou, quando, em 1912, deputados portugueses receberam a notícia da morte do Barão do Rio Branco. Tudo muito longe da verdade, pois o “minuto do silêncio” é a transposição de uma prática religiosa ancestral para fora da esfera sagrada: é preciso recuar séculos para entender este ritual, pois ele é um pálido resquício de um amplo universo mental do silêncio que praticamente desapareceu. Tarefa difícil, pois o olhar do historiador precisa triangular entre as práticas, as paisagens sonoras e as representações do silêncio. Estas últimas são tão fortes que se tornaram onipresentes e partes da realidade. Depois, onde encontrar as fontes deste mundo acústico, intrinsecamente refratário ao registro escrito? Atualmente é difícil fazer silêncio, já que a sociedade nos impõe uma compulsória submissão aos ruídos, dificilmente perceptível, já que nossa própria personalidade sensível foi profundamente modificada. O essencial da mudança reside na hipermediatização, na compulsória obrigação de conexão digital permanente e no incessante fluxo de palavras e imagens que se impõe ao indivíduo, conduzindo-o a ter medo do silêncio. “A palavra impede o silêncio de falar”, escreveu Ionesco. Porque o silêncio não é simplesmente a ausência de ruído. Quase esquecemos o que ele é. As pistas sonoras mudaram de natureza, tornaram-se mais fracas e perderam o seu antigo significado religioso e instrospectivo. O medo, e mesmo o pavor, causado pelo silêncio se intensificou. Entre muitas reflexões surpreendentes esta é a grande contribuição de Alain Corbin, em História do Silêncio - do Renascimento aos Nossos Dias, uma inspiradíssima genealogia do universo das emoções coletivas ligadas ao silêncio.DEUS 

A história começa com a sondagem da representação do silêncio de Deus, que provém de tempos bem mais antigos, mas ainda persiste no Renascimento, apesar do intenso processo de dessacralização. Foi esta representação que coincidiu com as práticas do silêncio nas igrejas, nos monastérios – ambientes nos quais o silêncio era um caminho para encontrar-se consigo mesmo e encontrar alguma conexão com Deus. Saboreava-se a profundidade e as qualidades do silêncio, visto como a pré-condição para a contemplação, meditação e oração. Após o Renascimento e durante o século 17, acrescentaram-se outras práticas, que, por sinal, coincidiram com a ascensão da subjetividade e do próprio romance como gênero: o silêncio, cada vez mais dessacralizado, era essencial para o devaneio e a imaginação. Até mesmo para os artistas: Corbin mobiliza uma série de exemplos, de Claesz a Caravaggio, para os quais pintar era um discurso silencioso. As naturezas-mortas foram, neste sentido, metáforas plásticas que exprimiam à sua maneira o silêncio de um luto antecipado, com as figuras em estado de repouso e tranquilidade, enfatizando a inconsistência e a nulidade das criaturas diante da finitude. “A pintura é poesia muda”, escreveu Lessing, a propósito da Montanha com a Tempestade se Aproximando, de Rembrandt, quando, antes do trovão e do relâmpago, a tempestade se anuncia por um “espessamento do silêncio”. Claro que a paisagem sonora também marcou tal mudança de cenário na virada para a modernidade. A cidade antiga ou a aldeia rural ainda conheciam o silêncio quase completo, que aumentava a sensibilidade auditiva dos seus habitantes, tornando mais intensas as sonoridades do trovão e da chuva, dos insetos ou mamíferos, dos homens e mulheres envolvidos no trabalho, dos sinos das igrejas e capelas. Como observou Huizinga, no outono do mundo medieval o contraste entre o silêncio e o ruído, entre a luz e as trevas, assim como entre o verão e o inverno, acentuava-se muito mais fortemente do que em nossos dias.COSTUMES

continua após a publicidade

A civilização dos costumes, que se desenvolveu ao menos a partir do Renascimento, traduzia-se pelo peso crescente das injunções do silêncio ligadas a uma interiorização das normas. Depois vieram as práticas de imposição do silêncio nas instituições. Nas prisões e sistemas penitenciários criados no século 19; nas escolas, que se tornaram canônicas a partir da época napoleônica; e no exército, que ordenava o “silêncio das fileiras” através da obediência aos apitos e aos tambores que ritmavam os momentos de silêncio e de fala. Já o saber calar-se, ser discreto e prudente, transformou-se no próprio fundamento da esfera privada, em plena ascensão a partir do final do século 18. A intimidade dos lugares, da alcova, do quarto e sua mobília, como a da casa, estava profundamente ligada ao silêncio. Contudo, antes da revolução oitocentista do conforto doméstico, os cômodos eram completamente destituídos de propósitos ou funções específicas e a vida continuava mais coletiva e publicamente exposta do que hoje. Relatos de época, compilados por Corbin, mostram sanitários domésticos com vários assentos para facilitar a conversação – e muitas gravuras descrevem casais na cama ou no banho em atitudes despreocupadas, enquanto seus atendentes serviam ou amigos sentavam-se próximos, sem nenhuma preocupação com a privacidade. Os gregos representavam o silêncio por meio do deus Harpócrates, sempre com um dedo sobre a boca. Esta figura marcou profundamente os numerosos tratados do século 17 que se dedicaram às táticas do silêncio, como o do jesuíta Baltasar Gracián, que definiu: “O soberano mais sábio é o que sabe calar-se, pois o silêncio é o único que propicia o bom governo que é o agir sem verborreia, e trocar o falar pelo fazer”. A surpreendente atualidade do conselho de Gracián fica por conta do leitor. Corbin ainda reserva um bonito capítulo dedicado aos silêncios do amor e do ódio, explorando, sob forma de experimentos narrativos inspirados em Proust ou em poemas de Hugo e Leconte de Lisle, o fato de que no relacionamento amoroso há mais silêncio do que palavra e os amantes constituem, no fundo, dois conjurados do silêncio: transmitem pelos olhos o que eles têm no coração e se envolvem numa longa conversa amorosa, não compreendida pelos demais, pois os olhos dos apaixonados dizem as únicas palavras que importam. “Os amantes caminhavam/falavam, interrompiam-se e, durante os silêncios/Suas bocas calavam-se, suas almas cochichavam”, como tão bem poetizou Victor Hugo.MODERNIDADE

 Já com o surgimento das grandes metrópoles do século 20 a nossa paisagem auditiva transformou-se numa enorme e variada lixeira. As metrópoles modernas dissiparam, por completo, uma cultura de referências estáveis e contínuas. Ganhamos muitas coisas importantes, mas certamente perdemos muitas outras – uma das quais foi, com certeza, esta peculiar sensibilidade humana à intensidade do som e ao ruído. O mais grave é que não nos apercebemos de ter perdido coisa alguma, porque há muito tempo concedemos à audição apenas um papel auxiliar. Esta espécie de surdez crônica incorporou-se de tal forma na vida cotidiana que desapareceu até mesmo de nossa consciência. É paradoxal, mas a capacidade contida no ato de ouvir, por ser muito mais involuntária, atinge-nos de forma muito mais intensa. Derrick de Kerckhove, sucessor intelectual de McLuhan, propôs o exercício simples de fecharmos os olhos e imaginarmos o mundo a nossa volta. Iríamos nos surpreender com o incontável número de sons, ruídos e, até, de conversas que conseguiríamos captar simultaneamente. Depois, ele sugere que todos abram os olhos e tentem continuar o mesmo exercício da escuta. Será muito difícil, senão mesmo impossível, obter a mesma acuidade, pois nossas funções sensoriais são seletivas – para uma resposta eficiente a energia humana só pode dedicar-se a uma situação, já que nossos olhos consomem grande parte da nossa força mental. Monges tibetanos e poetas – como Verlaine ou Claudel – também recomendavam fechar os olhos, tanto como técnica de meditação quanto de tradução lírica do estímulo sinestésico. Tudo para enfrentar esta insidiosa tirania do olhar, amplamente disseminada pelo surgimento das megalópoles modernas e agravada pelo impacto do universo digital. O mais grave é que quando uma sociedade inteira sofre uma perda de audição, não sobra ninguém para contar o drama sofrido. Até um dia no qual, talvez surpresos, venhamos a redescobrir o valor do silêncio, muito além daquele minuto ritual, nossa derradeira homenagem à perda e ao luto.

Cena com Stephanie Cumming no filme 'Shirley: Visões da Realidade' (2013) recria tela do pintor americano Edward Hopper Foto: JERZY PALACZ

Muitos imaginam que aquele ritual do “minuto de silêncio”, hoje quase diário em face do luto de tantas mortes causadas pela pandemia, originou-se ou da sugestão de um jornalista australiano para o dia do armistício em 1919 ou, quando, em 1912, deputados portugueses receberam a notícia da morte do Barão do Rio Branco. Tudo muito longe da verdade, pois o “minuto do silêncio” é a transposição de uma prática religiosa ancestral para fora da esfera sagrada: é preciso recuar séculos para entender este ritual, pois ele é um pálido resquício de um amplo universo mental do silêncio que praticamente desapareceu. Tarefa difícil, pois o olhar do historiador precisa triangular entre as práticas, as paisagens sonoras e as representações do silêncio. Estas últimas são tão fortes que se tornaram onipresentes e partes da realidade. Depois, onde encontrar as fontes deste mundo acústico, intrinsecamente refratário ao registro escrito? Atualmente é difícil fazer silêncio, já que a sociedade nos impõe uma compulsória submissão aos ruídos, dificilmente perceptível, já que nossa própria personalidade sensível foi profundamente modificada. O essencial da mudança reside na hipermediatização, na compulsória obrigação de conexão digital permanente e no incessante fluxo de palavras e imagens que se impõe ao indivíduo, conduzindo-o a ter medo do silêncio. “A palavra impede o silêncio de falar”, escreveu Ionesco. Porque o silêncio não é simplesmente a ausência de ruído. Quase esquecemos o que ele é. As pistas sonoras mudaram de natureza, tornaram-se mais fracas e perderam o seu antigo significado religioso e instrospectivo. O medo, e mesmo o pavor, causado pelo silêncio se intensificou. Entre muitas reflexões surpreendentes esta é a grande contribuição de Alain Corbin, em História do Silêncio - do Renascimento aos Nossos Dias, uma inspiradíssima genealogia do universo das emoções coletivas ligadas ao silêncio.DEUS 

A história começa com a sondagem da representação do silêncio de Deus, que provém de tempos bem mais antigos, mas ainda persiste no Renascimento, apesar do intenso processo de dessacralização. Foi esta representação que coincidiu com as práticas do silêncio nas igrejas, nos monastérios – ambientes nos quais o silêncio era um caminho para encontrar-se consigo mesmo e encontrar alguma conexão com Deus. Saboreava-se a profundidade e as qualidades do silêncio, visto como a pré-condição para a contemplação, meditação e oração. Após o Renascimento e durante o século 17, acrescentaram-se outras práticas, que, por sinal, coincidiram com a ascensão da subjetividade e do próprio romance como gênero: o silêncio, cada vez mais dessacralizado, era essencial para o devaneio e a imaginação. Até mesmo para os artistas: Corbin mobiliza uma série de exemplos, de Claesz a Caravaggio, para os quais pintar era um discurso silencioso. As naturezas-mortas foram, neste sentido, metáforas plásticas que exprimiam à sua maneira o silêncio de um luto antecipado, com as figuras em estado de repouso e tranquilidade, enfatizando a inconsistência e a nulidade das criaturas diante da finitude. “A pintura é poesia muda”, escreveu Lessing, a propósito da Montanha com a Tempestade se Aproximando, de Rembrandt, quando, antes do trovão e do relâmpago, a tempestade se anuncia por um “espessamento do silêncio”. Claro que a paisagem sonora também marcou tal mudança de cenário na virada para a modernidade. A cidade antiga ou a aldeia rural ainda conheciam o silêncio quase completo, que aumentava a sensibilidade auditiva dos seus habitantes, tornando mais intensas as sonoridades do trovão e da chuva, dos insetos ou mamíferos, dos homens e mulheres envolvidos no trabalho, dos sinos das igrejas e capelas. Como observou Huizinga, no outono do mundo medieval o contraste entre o silêncio e o ruído, entre a luz e as trevas, assim como entre o verão e o inverno, acentuava-se muito mais fortemente do que em nossos dias.COSTUMES

A civilização dos costumes, que se desenvolveu ao menos a partir do Renascimento, traduzia-se pelo peso crescente das injunções do silêncio ligadas a uma interiorização das normas. Depois vieram as práticas de imposição do silêncio nas instituições. Nas prisões e sistemas penitenciários criados no século 19; nas escolas, que se tornaram canônicas a partir da época napoleônica; e no exército, que ordenava o “silêncio das fileiras” através da obediência aos apitos e aos tambores que ritmavam os momentos de silêncio e de fala. Já o saber calar-se, ser discreto e prudente, transformou-se no próprio fundamento da esfera privada, em plena ascensão a partir do final do século 18. A intimidade dos lugares, da alcova, do quarto e sua mobília, como a da casa, estava profundamente ligada ao silêncio. Contudo, antes da revolução oitocentista do conforto doméstico, os cômodos eram completamente destituídos de propósitos ou funções específicas e a vida continuava mais coletiva e publicamente exposta do que hoje. Relatos de época, compilados por Corbin, mostram sanitários domésticos com vários assentos para facilitar a conversação – e muitas gravuras descrevem casais na cama ou no banho em atitudes despreocupadas, enquanto seus atendentes serviam ou amigos sentavam-se próximos, sem nenhuma preocupação com a privacidade. Os gregos representavam o silêncio por meio do deus Harpócrates, sempre com um dedo sobre a boca. Esta figura marcou profundamente os numerosos tratados do século 17 que se dedicaram às táticas do silêncio, como o do jesuíta Baltasar Gracián, que definiu: “O soberano mais sábio é o que sabe calar-se, pois o silêncio é o único que propicia o bom governo que é o agir sem verborreia, e trocar o falar pelo fazer”. A surpreendente atualidade do conselho de Gracián fica por conta do leitor. Corbin ainda reserva um bonito capítulo dedicado aos silêncios do amor e do ódio, explorando, sob forma de experimentos narrativos inspirados em Proust ou em poemas de Hugo e Leconte de Lisle, o fato de que no relacionamento amoroso há mais silêncio do que palavra e os amantes constituem, no fundo, dois conjurados do silêncio: transmitem pelos olhos o que eles têm no coração e se envolvem numa longa conversa amorosa, não compreendida pelos demais, pois os olhos dos apaixonados dizem as únicas palavras que importam. “Os amantes caminhavam/falavam, interrompiam-se e, durante os silêncios/Suas bocas calavam-se, suas almas cochichavam”, como tão bem poetizou Victor Hugo.MODERNIDADE

 Já com o surgimento das grandes metrópoles do século 20 a nossa paisagem auditiva transformou-se numa enorme e variada lixeira. As metrópoles modernas dissiparam, por completo, uma cultura de referências estáveis e contínuas. Ganhamos muitas coisas importantes, mas certamente perdemos muitas outras – uma das quais foi, com certeza, esta peculiar sensibilidade humana à intensidade do som e ao ruído. O mais grave é que não nos apercebemos de ter perdido coisa alguma, porque há muito tempo concedemos à audição apenas um papel auxiliar. Esta espécie de surdez crônica incorporou-se de tal forma na vida cotidiana que desapareceu até mesmo de nossa consciência. É paradoxal, mas a capacidade contida no ato de ouvir, por ser muito mais involuntária, atinge-nos de forma muito mais intensa. Derrick de Kerckhove, sucessor intelectual de McLuhan, propôs o exercício simples de fecharmos os olhos e imaginarmos o mundo a nossa volta. Iríamos nos surpreender com o incontável número de sons, ruídos e, até, de conversas que conseguiríamos captar simultaneamente. Depois, ele sugere que todos abram os olhos e tentem continuar o mesmo exercício da escuta. Será muito difícil, senão mesmo impossível, obter a mesma acuidade, pois nossas funções sensoriais são seletivas – para uma resposta eficiente a energia humana só pode dedicar-se a uma situação, já que nossos olhos consomem grande parte da nossa força mental. Monges tibetanos e poetas – como Verlaine ou Claudel – também recomendavam fechar os olhos, tanto como técnica de meditação quanto de tradução lírica do estímulo sinestésico. Tudo para enfrentar esta insidiosa tirania do olhar, amplamente disseminada pelo surgimento das megalópoles modernas e agravada pelo impacto do universo digital. O mais grave é que quando uma sociedade inteira sofre uma perda de audição, não sobra ninguém para contar o drama sofrido. Até um dia no qual, talvez surpresos, venhamos a redescobrir o valor do silêncio, muito além daquele minuto ritual, nossa derradeira homenagem à perda e ao luto.

Cena com Stephanie Cumming no filme 'Shirley: Visões da Realidade' (2013) recria tela do pintor americano Edward Hopper Foto: JERZY PALACZ

Muitos imaginam que aquele ritual do “minuto de silêncio”, hoje quase diário em face do luto de tantas mortes causadas pela pandemia, originou-se ou da sugestão de um jornalista australiano para o dia do armistício em 1919 ou, quando, em 1912, deputados portugueses receberam a notícia da morte do Barão do Rio Branco. Tudo muito longe da verdade, pois o “minuto do silêncio” é a transposição de uma prática religiosa ancestral para fora da esfera sagrada: é preciso recuar séculos para entender este ritual, pois ele é um pálido resquício de um amplo universo mental do silêncio que praticamente desapareceu. Tarefa difícil, pois o olhar do historiador precisa triangular entre as práticas, as paisagens sonoras e as representações do silêncio. Estas últimas são tão fortes que se tornaram onipresentes e partes da realidade. Depois, onde encontrar as fontes deste mundo acústico, intrinsecamente refratário ao registro escrito? Atualmente é difícil fazer silêncio, já que a sociedade nos impõe uma compulsória submissão aos ruídos, dificilmente perceptível, já que nossa própria personalidade sensível foi profundamente modificada. O essencial da mudança reside na hipermediatização, na compulsória obrigação de conexão digital permanente e no incessante fluxo de palavras e imagens que se impõe ao indivíduo, conduzindo-o a ter medo do silêncio. “A palavra impede o silêncio de falar”, escreveu Ionesco. Porque o silêncio não é simplesmente a ausência de ruído. Quase esquecemos o que ele é. As pistas sonoras mudaram de natureza, tornaram-se mais fracas e perderam o seu antigo significado religioso e instrospectivo. O medo, e mesmo o pavor, causado pelo silêncio se intensificou. Entre muitas reflexões surpreendentes esta é a grande contribuição de Alain Corbin, em História do Silêncio - do Renascimento aos Nossos Dias, uma inspiradíssima genealogia do universo das emoções coletivas ligadas ao silêncio.DEUS 

A história começa com a sondagem da representação do silêncio de Deus, que provém de tempos bem mais antigos, mas ainda persiste no Renascimento, apesar do intenso processo de dessacralização. Foi esta representação que coincidiu com as práticas do silêncio nas igrejas, nos monastérios – ambientes nos quais o silêncio era um caminho para encontrar-se consigo mesmo e encontrar alguma conexão com Deus. Saboreava-se a profundidade e as qualidades do silêncio, visto como a pré-condição para a contemplação, meditação e oração. Após o Renascimento e durante o século 17, acrescentaram-se outras práticas, que, por sinal, coincidiram com a ascensão da subjetividade e do próprio romance como gênero: o silêncio, cada vez mais dessacralizado, era essencial para o devaneio e a imaginação. Até mesmo para os artistas: Corbin mobiliza uma série de exemplos, de Claesz a Caravaggio, para os quais pintar era um discurso silencioso. As naturezas-mortas foram, neste sentido, metáforas plásticas que exprimiam à sua maneira o silêncio de um luto antecipado, com as figuras em estado de repouso e tranquilidade, enfatizando a inconsistência e a nulidade das criaturas diante da finitude. “A pintura é poesia muda”, escreveu Lessing, a propósito da Montanha com a Tempestade se Aproximando, de Rembrandt, quando, antes do trovão e do relâmpago, a tempestade se anuncia por um “espessamento do silêncio”. Claro que a paisagem sonora também marcou tal mudança de cenário na virada para a modernidade. A cidade antiga ou a aldeia rural ainda conheciam o silêncio quase completo, que aumentava a sensibilidade auditiva dos seus habitantes, tornando mais intensas as sonoridades do trovão e da chuva, dos insetos ou mamíferos, dos homens e mulheres envolvidos no trabalho, dos sinos das igrejas e capelas. Como observou Huizinga, no outono do mundo medieval o contraste entre o silêncio e o ruído, entre a luz e as trevas, assim como entre o verão e o inverno, acentuava-se muito mais fortemente do que em nossos dias.COSTUMES

A civilização dos costumes, que se desenvolveu ao menos a partir do Renascimento, traduzia-se pelo peso crescente das injunções do silêncio ligadas a uma interiorização das normas. Depois vieram as práticas de imposição do silêncio nas instituições. Nas prisões e sistemas penitenciários criados no século 19; nas escolas, que se tornaram canônicas a partir da época napoleônica; e no exército, que ordenava o “silêncio das fileiras” através da obediência aos apitos e aos tambores que ritmavam os momentos de silêncio e de fala. Já o saber calar-se, ser discreto e prudente, transformou-se no próprio fundamento da esfera privada, em plena ascensão a partir do final do século 18. A intimidade dos lugares, da alcova, do quarto e sua mobília, como a da casa, estava profundamente ligada ao silêncio. Contudo, antes da revolução oitocentista do conforto doméstico, os cômodos eram completamente destituídos de propósitos ou funções específicas e a vida continuava mais coletiva e publicamente exposta do que hoje. Relatos de época, compilados por Corbin, mostram sanitários domésticos com vários assentos para facilitar a conversação – e muitas gravuras descrevem casais na cama ou no banho em atitudes despreocupadas, enquanto seus atendentes serviam ou amigos sentavam-se próximos, sem nenhuma preocupação com a privacidade. Os gregos representavam o silêncio por meio do deus Harpócrates, sempre com um dedo sobre a boca. Esta figura marcou profundamente os numerosos tratados do século 17 que se dedicaram às táticas do silêncio, como o do jesuíta Baltasar Gracián, que definiu: “O soberano mais sábio é o que sabe calar-se, pois o silêncio é o único que propicia o bom governo que é o agir sem verborreia, e trocar o falar pelo fazer”. A surpreendente atualidade do conselho de Gracián fica por conta do leitor. Corbin ainda reserva um bonito capítulo dedicado aos silêncios do amor e do ódio, explorando, sob forma de experimentos narrativos inspirados em Proust ou em poemas de Hugo e Leconte de Lisle, o fato de que no relacionamento amoroso há mais silêncio do que palavra e os amantes constituem, no fundo, dois conjurados do silêncio: transmitem pelos olhos o que eles têm no coração e se envolvem numa longa conversa amorosa, não compreendida pelos demais, pois os olhos dos apaixonados dizem as únicas palavras que importam. “Os amantes caminhavam/falavam, interrompiam-se e, durante os silêncios/Suas bocas calavam-se, suas almas cochichavam”, como tão bem poetizou Victor Hugo.MODERNIDADE

 Já com o surgimento das grandes metrópoles do século 20 a nossa paisagem auditiva transformou-se numa enorme e variada lixeira. As metrópoles modernas dissiparam, por completo, uma cultura de referências estáveis e contínuas. Ganhamos muitas coisas importantes, mas certamente perdemos muitas outras – uma das quais foi, com certeza, esta peculiar sensibilidade humana à intensidade do som e ao ruído. O mais grave é que não nos apercebemos de ter perdido coisa alguma, porque há muito tempo concedemos à audição apenas um papel auxiliar. Esta espécie de surdez crônica incorporou-se de tal forma na vida cotidiana que desapareceu até mesmo de nossa consciência. É paradoxal, mas a capacidade contida no ato de ouvir, por ser muito mais involuntária, atinge-nos de forma muito mais intensa. Derrick de Kerckhove, sucessor intelectual de McLuhan, propôs o exercício simples de fecharmos os olhos e imaginarmos o mundo a nossa volta. Iríamos nos surpreender com o incontável número de sons, ruídos e, até, de conversas que conseguiríamos captar simultaneamente. Depois, ele sugere que todos abram os olhos e tentem continuar o mesmo exercício da escuta. Será muito difícil, senão mesmo impossível, obter a mesma acuidade, pois nossas funções sensoriais são seletivas – para uma resposta eficiente a energia humana só pode dedicar-se a uma situação, já que nossos olhos consomem grande parte da nossa força mental. Monges tibetanos e poetas – como Verlaine ou Claudel – também recomendavam fechar os olhos, tanto como técnica de meditação quanto de tradução lírica do estímulo sinestésico. Tudo para enfrentar esta insidiosa tirania do olhar, amplamente disseminada pelo surgimento das megalópoles modernas e agravada pelo impacto do universo digital. O mais grave é que quando uma sociedade inteira sofre uma perda de audição, não sobra ninguém para contar o drama sofrido. Até um dia no qual, talvez surpresos, venhamos a redescobrir o valor do silêncio, muito além daquele minuto ritual, nossa derradeira homenagem à perda e ao luto.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.