Como 'O Segundo Sexo', de Simone de Beauvoir, foi recebido com raiva em sua época


Os premiados com o Nobel Albert Camus e François Mauriac, além do Papa, reagiram ao livro da filósofa, que ganha nova edição

Por Gilles Lapouge

Mulheres gostam muito de O Segundo Sexo. Muitos homens também. Não foi sempre o caso. Quando este grande livro apareceu, em 1949, foi recebido com gritos de indignação. As mentes mais refinadas se afundaram na vulgaridade. O grande escritor François Mauriac fez-se grosseiro: “A partir de agora”, ele disse, “eu vou saber tudo sobre a vagina da diretora da revista Les Temps Modernes" (Simone de Beauvoir, na época). Albert Camus: “Este livro desonra o homem francês”. No Le Monde, Yves Florenne: “Aqui estamos ocupados com um tema quente: o sexo de Madame de Beauvoir”. Os comunistas, puritanos enfurecidos como sempre, decretam no L'Humanité: “Madame de Beauvoir é uma pobre garota neurótica”. O papa, menos licencioso do que todos esses distintos espíritos, contentou-se em proibir os fiéis de ler O Segundo Sexo.

A filósofa e escritora francesaSimone de Beauvoir Foto: Gallimard

Em 2019 ninguém se atreveria a falar deste monumento em termos tão cruéis. Não podemos desaprová-lo. Não podemos negar o poder, a seriedade, a estatura. Na época, em 1950, algumas “feministas” já haviam adivinhado sua importância, mas muitas mulheres a rejeitaram. Seus argumentos: “Simone de Beauvoir vivia com um homem, Sartre, personagem duvidoso. Além disso, ela tinha um amante, o americano Nelson Algren. Pode ser até que ela fosse lésbica!”

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Além disso, ela conta que a ideia deste livro foi soprada para ela por um homem, aquele Jean-Paul Sartre. Eis a cena: Simone de Beauvoir conta a Sartre um dia que se sente livre. Sua condição de mulher não era um drama para ela. Sartre responde: “Minha querida, você não foi criada da mesma forma que um menino. É preciso olhar mais de perto”. E Simone de Beauvoir conclui: “Eu olhei e tive uma revelação”.

Que caminho foi percorrido desde esta metade do outro século! É claro que, entre feministas, discutimos as teses de Beauvoir, mas com respeito, sabemos que ela escreveu um grande livro e uma arma formidável para a causa das mulheres. Kate Millett, Susan Sontag, Betty Friedan ou Judith Butler queixaram-se de suas análises. Para algumas, O Segundo Sexo é o livro essencial do feminismo, ao lado de Um Quarto Só Seu, da grande Virginia Woolf.

No início, algumas mulheres entenderam as teses de Beauvoir ao contrário. Por exemplo, esta fórmula chocou: “As mulheres devem retomar a posse sobre seu destino, não na qualidade de mulher, mas como um homem como qualquer outro. Ela é o outro, um homem”.

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Belo programa proposto à mulher: tornar-se um homem? Claro, é o oposto que é verdadeiro. O livro inteiro ilumina essa fórmula. “A mulher”, escreve Beauvoir um pouco adiante, “se diferencia em relação ao homem, não a este em relação a ela. Ela é o secundário frente ao essencial. Ele é o sujeito. Ele é o absoluto. Ela é a outra.”

O que surpreende é que, nos primeiros momentos, foram os homens que pressentiram a radicalidade da obra e da ambição de Beauvoir. É provável que o “estilo de sarjeta”, para o qual lamentavelmente tombaram espíritos tão elegantes quanto Camus ou Mauriac, se explique dessa forma: um arrepio de terror ante a revolução psicológica, sociológica e histórica que Beauvoir inaugurou. “Foi essa horda de cães machos que melhor compreendeu este livro, sua grandeza: embora até aqueles que amavam o livro jamais tenham pressentido seu conteúdo explosivo, seu devastador poder destrutivo e construtivo, são seus inimigos, os quais em seu ódio e insensatez, sentiam que Beauvoir escrevera um livro que dominaria os anos vindouros”.

Mas, alguns anos depois, as palavras de Beauvoir já foram elevadas ao seu verdadeiro lugar. O livro é comentado de Cingapura a Los Angeles, de Harvard à Sorbonne e Moçambique. Ei-lo elevado à categoria de “pedra angular” do feminismo dos anos 1960. E então iluminará o feminismo em todas as suas síncopes, nas suas mortes e ressurreições.

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A verdade é que este livro trata duramente de uma “vaca sagrada” do pensamento universal: uma “natureza feminina” com a qual Beuvoir nada pode fazer. Este é o “sacrilégio” do segundo sexo. Beauvoir abole essa “natureza feminina” examinando a biologia, as teorias de Freud, o marxismo, a história social, e sobretudo a história, feita inteiramente por homens e contada por eles. A conclusão cai como um cutelo: “A alienação das mulheres não é biológica, mas cultural. Não é a inferioridade das mulheres que determinou sua insignificância histórica. É a sua insignificância histórica que as tornou inferiores”. E é assim que uma sentença é inicialmente mal interpretada e depois admirada e citada livremente: “Não se nasce mulher: torna-se".

Deve-se entender que Beauvoir lançou então uma formidável máquina de guerra contra o “essencialismo”, que reduziu a mulher à sua “essência” e deixou à parte sua situação, sua história, sua posição social, sua educação, seus mitos, sua linguagem. Beauvoir não acreditava em uma natureza feminina. Para ela, a feminilidade é construída por sua relação com o tempo, a história e a sociedade. Eis aí uma ilustração da teoria existencialista professada por Sartre e por Beauvoir: “O humano não é uma essência. É antes de tudo uma existência (...) A existência precede a essência”.

A revisão subsequente de Beauvoir de todas as ocorrências em que a mulher privada de sua feminilidade é meticulosa. Nós podemos apenas fornecer um ou dois exemplos. Por exemplo, a figura mitológica da mulher, ou “o eterno feminino”, com as expressões possíveis e quase obrigatórias, como a mãe, a freira, a filha da pátria, a pecadora etc...

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É assim que lhe é negado e torna-se imutável um ideal imposto que renega a individualidade, a singularidade, as condições impostas pelo casamento, a maternidade, vida doméstica, profissão, etc. Através dos meandros da sociedade, educação, tradição, e por culpa de sua “suposta”, essência, a mulher está condenada a cultivar algumas características: narcisismo, misticismo, submissão absoluta.

A tarefa da mulher de hoje, diz Beauvoir, portanto, seria sua reintrodução na história, no social, no econômico. Há inúmeros exemplos: até mesmo a linguagem é tanto causa como consequência de uma condição alienada. Pensemos na educação em casa como na escola: sempre se ensinou às meninas uma linguagem depurada, desinfetada, elegante, sem “palavrões”, sem qualquer coisa que contamine, ou tenha uma nódoa. Na sexualidade, os efeitos da linguagem são numerosos. Nas cerimônias sexuais “Enquanto o homem entesa, a mulher molha-se”.

Não deveríamos temer, pergunta Beauvoir, que as trocas de mulheres/homens esmorecessem? Ela responde que, longe de estabelecer um estado neutro em que o homem e a mulher se confundiriam, no qual um seria o outro, ela acha que chegaríamos não a uma figura assexuada, mas a uma coexistência dos opostos em que finalmente, em suas diferenças e liberdades finalmente reveladas, homens e mulheres floresceriam.

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“Entre os sexos nascerão novas relações carnais e afetivas das quais não temos ideia”. Simone de Beauvoir, naquele ano de 1949, não seria otimista demais? Algumas pessoas pensam assim e rejeitam essa filosofia, essas análises e esses programas. Outros dirão que o homem e a mulher progrediram desde 1949, estão no caminho certo, mas a estrada é longa e a caminhada é lenta, isso demora, isso leva tempo.

Mulheres gostam muito de O Segundo Sexo. Muitos homens também. Não foi sempre o caso. Quando este grande livro apareceu, em 1949, foi recebido com gritos de indignação. As mentes mais refinadas se afundaram na vulgaridade. O grande escritor François Mauriac fez-se grosseiro: “A partir de agora”, ele disse, “eu vou saber tudo sobre a vagina da diretora da revista Les Temps Modernes" (Simone de Beauvoir, na época). Albert Camus: “Este livro desonra o homem francês”. No Le Monde, Yves Florenne: “Aqui estamos ocupados com um tema quente: o sexo de Madame de Beauvoir”. Os comunistas, puritanos enfurecidos como sempre, decretam no L'Humanité: “Madame de Beauvoir é uma pobre garota neurótica”. O papa, menos licencioso do que todos esses distintos espíritos, contentou-se em proibir os fiéis de ler O Segundo Sexo.

A filósofa e escritora francesaSimone de Beauvoir Foto: Gallimard

Em 2019 ninguém se atreveria a falar deste monumento em termos tão cruéis. Não podemos desaprová-lo. Não podemos negar o poder, a seriedade, a estatura. Na época, em 1950, algumas “feministas” já haviam adivinhado sua importância, mas muitas mulheres a rejeitaram. Seus argumentos: “Simone de Beauvoir vivia com um homem, Sartre, personagem duvidoso. Além disso, ela tinha um amante, o americano Nelson Algren. Pode ser até que ela fosse lésbica!”

Além disso, ela conta que a ideia deste livro foi soprada para ela por um homem, aquele Jean-Paul Sartre. Eis a cena: Simone de Beauvoir conta a Sartre um dia que se sente livre. Sua condição de mulher não era um drama para ela. Sartre responde: “Minha querida, você não foi criada da mesma forma que um menino. É preciso olhar mais de perto”. E Simone de Beauvoir conclui: “Eu olhei e tive uma revelação”.

Que caminho foi percorrido desde esta metade do outro século! É claro que, entre feministas, discutimos as teses de Beauvoir, mas com respeito, sabemos que ela escreveu um grande livro e uma arma formidável para a causa das mulheres. Kate Millett, Susan Sontag, Betty Friedan ou Judith Butler queixaram-se de suas análises. Para algumas, O Segundo Sexo é o livro essencial do feminismo, ao lado de Um Quarto Só Seu, da grande Virginia Woolf.

No início, algumas mulheres entenderam as teses de Beauvoir ao contrário. Por exemplo, esta fórmula chocou: “As mulheres devem retomar a posse sobre seu destino, não na qualidade de mulher, mas como um homem como qualquer outro. Ela é o outro, um homem”.

Belo programa proposto à mulher: tornar-se um homem? Claro, é o oposto que é verdadeiro. O livro inteiro ilumina essa fórmula. “A mulher”, escreve Beauvoir um pouco adiante, “se diferencia em relação ao homem, não a este em relação a ela. Ela é o secundário frente ao essencial. Ele é o sujeito. Ele é o absoluto. Ela é a outra.”

O que surpreende é que, nos primeiros momentos, foram os homens que pressentiram a radicalidade da obra e da ambição de Beauvoir. É provável que o “estilo de sarjeta”, para o qual lamentavelmente tombaram espíritos tão elegantes quanto Camus ou Mauriac, se explique dessa forma: um arrepio de terror ante a revolução psicológica, sociológica e histórica que Beauvoir inaugurou. “Foi essa horda de cães machos que melhor compreendeu este livro, sua grandeza: embora até aqueles que amavam o livro jamais tenham pressentido seu conteúdo explosivo, seu devastador poder destrutivo e construtivo, são seus inimigos, os quais em seu ódio e insensatez, sentiam que Beauvoir escrevera um livro que dominaria os anos vindouros”.

Mas, alguns anos depois, as palavras de Beauvoir já foram elevadas ao seu verdadeiro lugar. O livro é comentado de Cingapura a Los Angeles, de Harvard à Sorbonne e Moçambique. Ei-lo elevado à categoria de “pedra angular” do feminismo dos anos 1960. E então iluminará o feminismo em todas as suas síncopes, nas suas mortes e ressurreições.

A verdade é que este livro trata duramente de uma “vaca sagrada” do pensamento universal: uma “natureza feminina” com a qual Beuvoir nada pode fazer. Este é o “sacrilégio” do segundo sexo. Beauvoir abole essa “natureza feminina” examinando a biologia, as teorias de Freud, o marxismo, a história social, e sobretudo a história, feita inteiramente por homens e contada por eles. A conclusão cai como um cutelo: “A alienação das mulheres não é biológica, mas cultural. Não é a inferioridade das mulheres que determinou sua insignificância histórica. É a sua insignificância histórica que as tornou inferiores”. E é assim que uma sentença é inicialmente mal interpretada e depois admirada e citada livremente: “Não se nasce mulher: torna-se".

Deve-se entender que Beauvoir lançou então uma formidável máquina de guerra contra o “essencialismo”, que reduziu a mulher à sua “essência” e deixou à parte sua situação, sua história, sua posição social, sua educação, seus mitos, sua linguagem. Beauvoir não acreditava em uma natureza feminina. Para ela, a feminilidade é construída por sua relação com o tempo, a história e a sociedade. Eis aí uma ilustração da teoria existencialista professada por Sartre e por Beauvoir: “O humano não é uma essência. É antes de tudo uma existência (...) A existência precede a essência”.

A revisão subsequente de Beauvoir de todas as ocorrências em que a mulher privada de sua feminilidade é meticulosa. Nós podemos apenas fornecer um ou dois exemplos. Por exemplo, a figura mitológica da mulher, ou “o eterno feminino”, com as expressões possíveis e quase obrigatórias, como a mãe, a freira, a filha da pátria, a pecadora etc...

É assim que lhe é negado e torna-se imutável um ideal imposto que renega a individualidade, a singularidade, as condições impostas pelo casamento, a maternidade, vida doméstica, profissão, etc. Através dos meandros da sociedade, educação, tradição, e por culpa de sua “suposta”, essência, a mulher está condenada a cultivar algumas características: narcisismo, misticismo, submissão absoluta.

A tarefa da mulher de hoje, diz Beauvoir, portanto, seria sua reintrodução na história, no social, no econômico. Há inúmeros exemplos: até mesmo a linguagem é tanto causa como consequência de uma condição alienada. Pensemos na educação em casa como na escola: sempre se ensinou às meninas uma linguagem depurada, desinfetada, elegante, sem “palavrões”, sem qualquer coisa que contamine, ou tenha uma nódoa. Na sexualidade, os efeitos da linguagem são numerosos. Nas cerimônias sexuais “Enquanto o homem entesa, a mulher molha-se”.

Não deveríamos temer, pergunta Beauvoir, que as trocas de mulheres/homens esmorecessem? Ela responde que, longe de estabelecer um estado neutro em que o homem e a mulher se confundiriam, no qual um seria o outro, ela acha que chegaríamos não a uma figura assexuada, mas a uma coexistência dos opostos em que finalmente, em suas diferenças e liberdades finalmente reveladas, homens e mulheres floresceriam.

“Entre os sexos nascerão novas relações carnais e afetivas das quais não temos ideia”. Simone de Beauvoir, naquele ano de 1949, não seria otimista demais? Algumas pessoas pensam assim e rejeitam essa filosofia, essas análises e esses programas. Outros dirão que o homem e a mulher progrediram desde 1949, estão no caminho certo, mas a estrada é longa e a caminhada é lenta, isso demora, isso leva tempo.

Mulheres gostam muito de O Segundo Sexo. Muitos homens também. Não foi sempre o caso. Quando este grande livro apareceu, em 1949, foi recebido com gritos de indignação. As mentes mais refinadas se afundaram na vulgaridade. O grande escritor François Mauriac fez-se grosseiro: “A partir de agora”, ele disse, “eu vou saber tudo sobre a vagina da diretora da revista Les Temps Modernes" (Simone de Beauvoir, na época). Albert Camus: “Este livro desonra o homem francês”. No Le Monde, Yves Florenne: “Aqui estamos ocupados com um tema quente: o sexo de Madame de Beauvoir”. Os comunistas, puritanos enfurecidos como sempre, decretam no L'Humanité: “Madame de Beauvoir é uma pobre garota neurótica”. O papa, menos licencioso do que todos esses distintos espíritos, contentou-se em proibir os fiéis de ler O Segundo Sexo.

A filósofa e escritora francesaSimone de Beauvoir Foto: Gallimard

Em 2019 ninguém se atreveria a falar deste monumento em termos tão cruéis. Não podemos desaprová-lo. Não podemos negar o poder, a seriedade, a estatura. Na época, em 1950, algumas “feministas” já haviam adivinhado sua importância, mas muitas mulheres a rejeitaram. Seus argumentos: “Simone de Beauvoir vivia com um homem, Sartre, personagem duvidoso. Além disso, ela tinha um amante, o americano Nelson Algren. Pode ser até que ela fosse lésbica!”

Além disso, ela conta que a ideia deste livro foi soprada para ela por um homem, aquele Jean-Paul Sartre. Eis a cena: Simone de Beauvoir conta a Sartre um dia que se sente livre. Sua condição de mulher não era um drama para ela. Sartre responde: “Minha querida, você não foi criada da mesma forma que um menino. É preciso olhar mais de perto”. E Simone de Beauvoir conclui: “Eu olhei e tive uma revelação”.

Que caminho foi percorrido desde esta metade do outro século! É claro que, entre feministas, discutimos as teses de Beauvoir, mas com respeito, sabemos que ela escreveu um grande livro e uma arma formidável para a causa das mulheres. Kate Millett, Susan Sontag, Betty Friedan ou Judith Butler queixaram-se de suas análises. Para algumas, O Segundo Sexo é o livro essencial do feminismo, ao lado de Um Quarto Só Seu, da grande Virginia Woolf.

No início, algumas mulheres entenderam as teses de Beauvoir ao contrário. Por exemplo, esta fórmula chocou: “As mulheres devem retomar a posse sobre seu destino, não na qualidade de mulher, mas como um homem como qualquer outro. Ela é o outro, um homem”.

Belo programa proposto à mulher: tornar-se um homem? Claro, é o oposto que é verdadeiro. O livro inteiro ilumina essa fórmula. “A mulher”, escreve Beauvoir um pouco adiante, “se diferencia em relação ao homem, não a este em relação a ela. Ela é o secundário frente ao essencial. Ele é o sujeito. Ele é o absoluto. Ela é a outra.”

O que surpreende é que, nos primeiros momentos, foram os homens que pressentiram a radicalidade da obra e da ambição de Beauvoir. É provável que o “estilo de sarjeta”, para o qual lamentavelmente tombaram espíritos tão elegantes quanto Camus ou Mauriac, se explique dessa forma: um arrepio de terror ante a revolução psicológica, sociológica e histórica que Beauvoir inaugurou. “Foi essa horda de cães machos que melhor compreendeu este livro, sua grandeza: embora até aqueles que amavam o livro jamais tenham pressentido seu conteúdo explosivo, seu devastador poder destrutivo e construtivo, são seus inimigos, os quais em seu ódio e insensatez, sentiam que Beauvoir escrevera um livro que dominaria os anos vindouros”.

Mas, alguns anos depois, as palavras de Beauvoir já foram elevadas ao seu verdadeiro lugar. O livro é comentado de Cingapura a Los Angeles, de Harvard à Sorbonne e Moçambique. Ei-lo elevado à categoria de “pedra angular” do feminismo dos anos 1960. E então iluminará o feminismo em todas as suas síncopes, nas suas mortes e ressurreições.

A verdade é que este livro trata duramente de uma “vaca sagrada” do pensamento universal: uma “natureza feminina” com a qual Beuvoir nada pode fazer. Este é o “sacrilégio” do segundo sexo. Beauvoir abole essa “natureza feminina” examinando a biologia, as teorias de Freud, o marxismo, a história social, e sobretudo a história, feita inteiramente por homens e contada por eles. A conclusão cai como um cutelo: “A alienação das mulheres não é biológica, mas cultural. Não é a inferioridade das mulheres que determinou sua insignificância histórica. É a sua insignificância histórica que as tornou inferiores”. E é assim que uma sentença é inicialmente mal interpretada e depois admirada e citada livremente: “Não se nasce mulher: torna-se".

Deve-se entender que Beauvoir lançou então uma formidável máquina de guerra contra o “essencialismo”, que reduziu a mulher à sua “essência” e deixou à parte sua situação, sua história, sua posição social, sua educação, seus mitos, sua linguagem. Beauvoir não acreditava em uma natureza feminina. Para ela, a feminilidade é construída por sua relação com o tempo, a história e a sociedade. Eis aí uma ilustração da teoria existencialista professada por Sartre e por Beauvoir: “O humano não é uma essência. É antes de tudo uma existência (...) A existência precede a essência”.

A revisão subsequente de Beauvoir de todas as ocorrências em que a mulher privada de sua feminilidade é meticulosa. Nós podemos apenas fornecer um ou dois exemplos. Por exemplo, a figura mitológica da mulher, ou “o eterno feminino”, com as expressões possíveis e quase obrigatórias, como a mãe, a freira, a filha da pátria, a pecadora etc...

É assim que lhe é negado e torna-se imutável um ideal imposto que renega a individualidade, a singularidade, as condições impostas pelo casamento, a maternidade, vida doméstica, profissão, etc. Através dos meandros da sociedade, educação, tradição, e por culpa de sua “suposta”, essência, a mulher está condenada a cultivar algumas características: narcisismo, misticismo, submissão absoluta.

A tarefa da mulher de hoje, diz Beauvoir, portanto, seria sua reintrodução na história, no social, no econômico. Há inúmeros exemplos: até mesmo a linguagem é tanto causa como consequência de uma condição alienada. Pensemos na educação em casa como na escola: sempre se ensinou às meninas uma linguagem depurada, desinfetada, elegante, sem “palavrões”, sem qualquer coisa que contamine, ou tenha uma nódoa. Na sexualidade, os efeitos da linguagem são numerosos. Nas cerimônias sexuais “Enquanto o homem entesa, a mulher molha-se”.

Não deveríamos temer, pergunta Beauvoir, que as trocas de mulheres/homens esmorecessem? Ela responde que, longe de estabelecer um estado neutro em que o homem e a mulher se confundiriam, no qual um seria o outro, ela acha que chegaríamos não a uma figura assexuada, mas a uma coexistência dos opostos em que finalmente, em suas diferenças e liberdades finalmente reveladas, homens e mulheres floresceriam.

“Entre os sexos nascerão novas relações carnais e afetivas das quais não temos ideia”. Simone de Beauvoir, naquele ano de 1949, não seria otimista demais? Algumas pessoas pensam assim e rejeitam essa filosofia, essas análises e esses programas. Outros dirão que o homem e a mulher progrediram desde 1949, estão no caminho certo, mas a estrada é longa e a caminhada é lenta, isso demora, isso leva tempo.

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