Como Shusaku Endo e Georges Bernanos retrataram a perversidade


Recém-lançados, os romances 'Escândalo', do autor japonês, e 'Senhor Ouine', do francês, são guiados pelo tema da perversão

Por Martim Vasques da Cunha

Quando o ex-secretário especial de Cultura Roberto Alvim lançou, há algumas semanas, um vídeo carregado de inspiração nazista, seja no conteúdo do seu discurso (com partes plagiadas de uma fala de Joseph Goebbels), seja na sua estética kitsch (com direito ao uso equivocado da música de Richard Wagner), a maioria da sociedade brasileira logo se revoltou nas redes sociais. E por um único motivo: a abjeta peça de propaganda estatal despertou um inato e saudável fundo de moralidade no cidadão que o avisou, em sua consciência, de que aquilo era, antes de tudo, perverso.

O tema da perversidade também guia dois grandes romances publicados aqui nos últimos meses de 2019: Escândalo, do japonês Shusaku Endo (Tusquets, R$59,90, 248 págs.), e Senhor Ouine, do francês Georges Bernanos (É Realizações, R$69,90, 286 págs). 

O escritor japonês Shusaku Endo e o francês Georges Bernanos Foto: Tusquets/É Realizações
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O primeiro é, como o próprio autor explicita no meio da sua trama, a “oração de um velho”. No caso, um escritor católico célebre (como era Endo quando redigiu o livro nos anos 1980), Suguro, que se vê em uma situação inusitada: alguém começa a espalhar nos meios intelectuais de Tóquio que há um sósia seu, frequentador de locais pouco recomendados para um sujeito que sempre respeitou a moral e os bons costumes em sua obra.

Já o segundo romance é a derradeira meditação de Bernanos sobre um assunto que sempre o obcecou desde o lançamento do seu primeiro grande livro, o hoje clássico Diário de um Pároco de Aldeia (1936): o da “paróquia morta” – a pequena comunidade que, por causa da mesquinhez dos seus habitantes, corta todos os laços com o amor pelo transcendente e se dissolve por dentro, optando por uma sutil maldade que infesta, igual à poeira do cotidiano, todas as fissuras da alma humana.

Senhor Ouine foi escrito na década de 1940, durante a catástrofe global que foi a 2.ª Guerra Mundial, enquanto o autor francês morava no Brasil, exilado de tudo e de todos em um sítio em Barbacena (Minas Gerais), e publicado postumamente em 1948. Quando lançado na França, os críticos não souberam lidar com a forma dramática do romance, um conjunto heterogêneo de impressões, sensações e atmosferas que pouco explicava a sua trama central. Os leitores não conseguiam captar o que fazia o personagem-título, e qual seria o seu papel na hierarquia social do vilarejo de Fenouille, imersa na sua inércia típica daquela região arcaica do norte da França.

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O mistério sobre Ouine se resolve somente nas últimas páginas do livro, escritas naquela prosa vulcânica e sensual de Bernanos, alusiva ao extremo, mas ao mesmo tempo capaz de provocar uma intuição que aponta para uma verdade aparentemente incomunicável sobre as nuances e os perigos da vida do espírito. O professor enigmático não é um pedagogo que está na pequena cidade por acaso. Ele é, nas palavras do crítico literário Pierre Robert-Leclerq, um “pederasta da alma”. Ao seduzir as mulheres, os jovens e os homens daquela “paróquia morta” – não pelos motivos eróticos ordinários, mas sim pelo sequestro do eros da alma que nos faz encontrar com o transcendente –, Ouine inocula neles aquilo que Edgar Allan Poe chamava de “o demônio da perversidade”. O único que percebe isso é o pobre padre da vila que, em um discurso emocionante à beira da cova de um rapaz assassinado, avisa a quem quiser ouvir ali que Deus é apenas um vazio – e que a cidadezinha de Fenoiulle não passa de um cemitério que representa, na verdade, o fim do Ocidente tal como o conhecíamos.

Shusaku Endo não tem a ambição literária de retratar o “Crepúsculo dos Deuses” na sua cidade ultramoderna de Tóquio. Ele pretende dramatizar uma outra espécie de perversidade: a que nasce nos nossos corações. O seu Suguro pode ser considerado como um alter-ego de Endo; contudo, deve-se ir além disso: trata-se de fato de um duplo, um doppelganger, que vive tudo aquilo que a sombra do seu inconsciente sufocou durante anos. Não à toa que, na época da concepção do romance, Endo lia vorazmente a obra do psiquiatra suíço C.G. Jung, cuja abordagem inusitada sobre os nossos demônios interiores nos leva ao confronto necessário com uma violência sagrada que será resolvido somente numa experiência religiosa a qual nos ajudará a dominar esses impulsos.

Em Escândalo, a sombra junguiana se manifesta no modo como Suguro lida com o lado obscuro da vida erótica, por meio do mergulho no mundo do sadomasoquismo e da tortura sexual. Neste ponto, os romances de Endo e Bernanos se encontram em uma convergência assustadora, pois o eros que molda o comportamento humano é virado pelo avesso de tal maneira que não há outra forma de viver exceto se aceitarmos o “demônio da perversidade” como o eixo moral definitivo dessas “paróquias mortas” que existem por aí, sejam Fenouille, Berlim, Tóquio ou Brasília.

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Porém, Endo e Bernanos evitam este equívoco. Não porque são escritores católicos, preocupados com a salvação da alma, mas sim porque são, antes de tudo, verdadeiros escritores, cuja matéria prima deles sempre será o mysterium tremendum que é o ser humano. E, sendo artistas, eles sabem que somos simultaneamente monstros e anjos, capazes de vivermos no mais alto dos céus e no mais horroroso dos infernos.

Neste ponto, os dois romancistas se unem com um parceiro improvável para as suas respectivas concepções católicas de mundo, mas inevitável quando se medita sobre as seduções desta “pederastia da alma”. Estamos falando, é claro, de Charles Baudelaire que, em seu As Flores do Mal (recentemente traduzido de forma brilhante por Júlio Castañon Guimarães em uma reedição da Penguin/Companhia das Letras), descreve com requintes de perfeição estética o encontro com o “demônio da destruição” que se agita dentro de nós, sempre perto, sem parar, flutuando ao nosso redor como um ar impalpável, a nos obrigar a engoli-lo e a senti-lo no nosso pulmão, a queimar e a nos preencher de “um desejo culpado e infindável”.

O Suguro de Shusaku Endo e o Senhor Ouine de George Bernanos são, cada um a seu modo, vítima e carrasco desta engrenagem macabra. No caso do francês, o que temos é a existência mergulhada em um desconhecimento completo do que ocorre com as nossas paixões – e mais: com as rivalidades que alimentamos entre nossos semelhantes. Por isso mesmo, elas se tornam as verdadeiras administradoras de uma sociedade que só pode nos levar, em última instância, aos plágios descarados de Goebbels e ao som manipulado de Wagner.

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É o oposto simétrico do que se passa no romance de Endo; ao se ver de maneira medonha, Suguro não tem outra saída exceto vislumbrar por uma revelação que vai na contramão do fascínio descrito por Baudelaire – e que se harmoniza mais com o William Shakespeare da peça A Tempestade, em especial com o personagem náufrago Próspero que, ao descrever com horror para um dos seus cativos, o demônio Caliban, disse algo que também seria sobre si mesmo: “Este objeto das trevas que reconheço como meu” (This thing of darkness that I acknowleged as mine).

A aceitação deste escândalo da perversidade como algo do qual não temos escapatória é a única saída para não mergulharmos para sempre no lodo da “paróquia morta”. Ele está sempre ciente do nosso grande amor pela beleza da arte – e, por isso, se disfarça tanto nas sedutoras formas femininas como na pureza da inocência prestes a ser corrompida; e, ao mesmo tempo, nos leva ao olhar do Deus distante para nos abandonar, exauridos e ofegantes, naquelas planícies do tédio, profundas e desertas. 

Como um remédio difícil de engolir para que a cura da moléstia seja permanente, as obras de Georges Bernanos e Shusaku Endo abrem as feridas diante dos nossos olhos cheios de perturbação. Elas nos impedem que alimentemos a máquina do Estado, prenhe do sangue da destruição e do perverso, prestes a sufocar a consciência inata de cada de nós diante das imagens, das músicas – e dos vídeos – que desejam assassinar as nossas almas.

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ESCÂNDALO AUTOR: SHOSAKU ENDO TRADUÇÃO: ALINE STORTO E MARIO VILELA EDITORA: TUSQUETS 256 PÁGINAS R$ 59,90

SENHOR OUINE  AUTOR: GEORGES BERNANOS TRADUÇÃO: ALVARO LINS EDITORA: É REALIZAÇÕES 288 PÁGINAS R$ 69,90 *MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DE ‘A TIRANIA DOS ESPECIALISTAS’ (EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2019)

Quando o ex-secretário especial de Cultura Roberto Alvim lançou, há algumas semanas, um vídeo carregado de inspiração nazista, seja no conteúdo do seu discurso (com partes plagiadas de uma fala de Joseph Goebbels), seja na sua estética kitsch (com direito ao uso equivocado da música de Richard Wagner), a maioria da sociedade brasileira logo se revoltou nas redes sociais. E por um único motivo: a abjeta peça de propaganda estatal despertou um inato e saudável fundo de moralidade no cidadão que o avisou, em sua consciência, de que aquilo era, antes de tudo, perverso.

O tema da perversidade também guia dois grandes romances publicados aqui nos últimos meses de 2019: Escândalo, do japonês Shusaku Endo (Tusquets, R$59,90, 248 págs.), e Senhor Ouine, do francês Georges Bernanos (É Realizações, R$69,90, 286 págs). 

O escritor japonês Shusaku Endo e o francês Georges Bernanos Foto: Tusquets/É Realizações

O primeiro é, como o próprio autor explicita no meio da sua trama, a “oração de um velho”. No caso, um escritor católico célebre (como era Endo quando redigiu o livro nos anos 1980), Suguro, que se vê em uma situação inusitada: alguém começa a espalhar nos meios intelectuais de Tóquio que há um sósia seu, frequentador de locais pouco recomendados para um sujeito que sempre respeitou a moral e os bons costumes em sua obra.

Já o segundo romance é a derradeira meditação de Bernanos sobre um assunto que sempre o obcecou desde o lançamento do seu primeiro grande livro, o hoje clássico Diário de um Pároco de Aldeia (1936): o da “paróquia morta” – a pequena comunidade que, por causa da mesquinhez dos seus habitantes, corta todos os laços com o amor pelo transcendente e se dissolve por dentro, optando por uma sutil maldade que infesta, igual à poeira do cotidiano, todas as fissuras da alma humana.

Senhor Ouine foi escrito na década de 1940, durante a catástrofe global que foi a 2.ª Guerra Mundial, enquanto o autor francês morava no Brasil, exilado de tudo e de todos em um sítio em Barbacena (Minas Gerais), e publicado postumamente em 1948. Quando lançado na França, os críticos não souberam lidar com a forma dramática do romance, um conjunto heterogêneo de impressões, sensações e atmosferas que pouco explicava a sua trama central. Os leitores não conseguiam captar o que fazia o personagem-título, e qual seria o seu papel na hierarquia social do vilarejo de Fenouille, imersa na sua inércia típica daquela região arcaica do norte da França.

O mistério sobre Ouine se resolve somente nas últimas páginas do livro, escritas naquela prosa vulcânica e sensual de Bernanos, alusiva ao extremo, mas ao mesmo tempo capaz de provocar uma intuição que aponta para uma verdade aparentemente incomunicável sobre as nuances e os perigos da vida do espírito. O professor enigmático não é um pedagogo que está na pequena cidade por acaso. Ele é, nas palavras do crítico literário Pierre Robert-Leclerq, um “pederasta da alma”. Ao seduzir as mulheres, os jovens e os homens daquela “paróquia morta” – não pelos motivos eróticos ordinários, mas sim pelo sequestro do eros da alma que nos faz encontrar com o transcendente –, Ouine inocula neles aquilo que Edgar Allan Poe chamava de “o demônio da perversidade”. O único que percebe isso é o pobre padre da vila que, em um discurso emocionante à beira da cova de um rapaz assassinado, avisa a quem quiser ouvir ali que Deus é apenas um vazio – e que a cidadezinha de Fenoiulle não passa de um cemitério que representa, na verdade, o fim do Ocidente tal como o conhecíamos.

Shusaku Endo não tem a ambição literária de retratar o “Crepúsculo dos Deuses” na sua cidade ultramoderna de Tóquio. Ele pretende dramatizar uma outra espécie de perversidade: a que nasce nos nossos corações. O seu Suguro pode ser considerado como um alter-ego de Endo; contudo, deve-se ir além disso: trata-se de fato de um duplo, um doppelganger, que vive tudo aquilo que a sombra do seu inconsciente sufocou durante anos. Não à toa que, na época da concepção do romance, Endo lia vorazmente a obra do psiquiatra suíço C.G. Jung, cuja abordagem inusitada sobre os nossos demônios interiores nos leva ao confronto necessário com uma violência sagrada que será resolvido somente numa experiência religiosa a qual nos ajudará a dominar esses impulsos.

Em Escândalo, a sombra junguiana se manifesta no modo como Suguro lida com o lado obscuro da vida erótica, por meio do mergulho no mundo do sadomasoquismo e da tortura sexual. Neste ponto, os romances de Endo e Bernanos se encontram em uma convergência assustadora, pois o eros que molda o comportamento humano é virado pelo avesso de tal maneira que não há outra forma de viver exceto se aceitarmos o “demônio da perversidade” como o eixo moral definitivo dessas “paróquias mortas” que existem por aí, sejam Fenouille, Berlim, Tóquio ou Brasília.

Porém, Endo e Bernanos evitam este equívoco. Não porque são escritores católicos, preocupados com a salvação da alma, mas sim porque são, antes de tudo, verdadeiros escritores, cuja matéria prima deles sempre será o mysterium tremendum que é o ser humano. E, sendo artistas, eles sabem que somos simultaneamente monstros e anjos, capazes de vivermos no mais alto dos céus e no mais horroroso dos infernos.

Neste ponto, os dois romancistas se unem com um parceiro improvável para as suas respectivas concepções católicas de mundo, mas inevitável quando se medita sobre as seduções desta “pederastia da alma”. Estamos falando, é claro, de Charles Baudelaire que, em seu As Flores do Mal (recentemente traduzido de forma brilhante por Júlio Castañon Guimarães em uma reedição da Penguin/Companhia das Letras), descreve com requintes de perfeição estética o encontro com o “demônio da destruição” que se agita dentro de nós, sempre perto, sem parar, flutuando ao nosso redor como um ar impalpável, a nos obrigar a engoli-lo e a senti-lo no nosso pulmão, a queimar e a nos preencher de “um desejo culpado e infindável”.

O Suguro de Shusaku Endo e o Senhor Ouine de George Bernanos são, cada um a seu modo, vítima e carrasco desta engrenagem macabra. No caso do francês, o que temos é a existência mergulhada em um desconhecimento completo do que ocorre com as nossas paixões – e mais: com as rivalidades que alimentamos entre nossos semelhantes. Por isso mesmo, elas se tornam as verdadeiras administradoras de uma sociedade que só pode nos levar, em última instância, aos plágios descarados de Goebbels e ao som manipulado de Wagner.

É o oposto simétrico do que se passa no romance de Endo; ao se ver de maneira medonha, Suguro não tem outra saída exceto vislumbrar por uma revelação que vai na contramão do fascínio descrito por Baudelaire – e que se harmoniza mais com o William Shakespeare da peça A Tempestade, em especial com o personagem náufrago Próspero que, ao descrever com horror para um dos seus cativos, o demônio Caliban, disse algo que também seria sobre si mesmo: “Este objeto das trevas que reconheço como meu” (This thing of darkness that I acknowleged as mine).

A aceitação deste escândalo da perversidade como algo do qual não temos escapatória é a única saída para não mergulharmos para sempre no lodo da “paróquia morta”. Ele está sempre ciente do nosso grande amor pela beleza da arte – e, por isso, se disfarça tanto nas sedutoras formas femininas como na pureza da inocência prestes a ser corrompida; e, ao mesmo tempo, nos leva ao olhar do Deus distante para nos abandonar, exauridos e ofegantes, naquelas planícies do tédio, profundas e desertas. 

Como um remédio difícil de engolir para que a cura da moléstia seja permanente, as obras de Georges Bernanos e Shusaku Endo abrem as feridas diante dos nossos olhos cheios de perturbação. Elas nos impedem que alimentemos a máquina do Estado, prenhe do sangue da destruição e do perverso, prestes a sufocar a consciência inata de cada de nós diante das imagens, das músicas – e dos vídeos – que desejam assassinar as nossas almas.

ESCÂNDALO AUTOR: SHOSAKU ENDO TRADUÇÃO: ALINE STORTO E MARIO VILELA EDITORA: TUSQUETS 256 PÁGINAS R$ 59,90

SENHOR OUINE  AUTOR: GEORGES BERNANOS TRADUÇÃO: ALVARO LINS EDITORA: É REALIZAÇÕES 288 PÁGINAS R$ 69,90 *MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DE ‘A TIRANIA DOS ESPECIALISTAS’ (EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2019)

Quando o ex-secretário especial de Cultura Roberto Alvim lançou, há algumas semanas, um vídeo carregado de inspiração nazista, seja no conteúdo do seu discurso (com partes plagiadas de uma fala de Joseph Goebbels), seja na sua estética kitsch (com direito ao uso equivocado da música de Richard Wagner), a maioria da sociedade brasileira logo se revoltou nas redes sociais. E por um único motivo: a abjeta peça de propaganda estatal despertou um inato e saudável fundo de moralidade no cidadão que o avisou, em sua consciência, de que aquilo era, antes de tudo, perverso.

O tema da perversidade também guia dois grandes romances publicados aqui nos últimos meses de 2019: Escândalo, do japonês Shusaku Endo (Tusquets, R$59,90, 248 págs.), e Senhor Ouine, do francês Georges Bernanos (É Realizações, R$69,90, 286 págs). 

O escritor japonês Shusaku Endo e o francês Georges Bernanos Foto: Tusquets/É Realizações

O primeiro é, como o próprio autor explicita no meio da sua trama, a “oração de um velho”. No caso, um escritor católico célebre (como era Endo quando redigiu o livro nos anos 1980), Suguro, que se vê em uma situação inusitada: alguém começa a espalhar nos meios intelectuais de Tóquio que há um sósia seu, frequentador de locais pouco recomendados para um sujeito que sempre respeitou a moral e os bons costumes em sua obra.

Já o segundo romance é a derradeira meditação de Bernanos sobre um assunto que sempre o obcecou desde o lançamento do seu primeiro grande livro, o hoje clássico Diário de um Pároco de Aldeia (1936): o da “paróquia morta” – a pequena comunidade que, por causa da mesquinhez dos seus habitantes, corta todos os laços com o amor pelo transcendente e se dissolve por dentro, optando por uma sutil maldade que infesta, igual à poeira do cotidiano, todas as fissuras da alma humana.

Senhor Ouine foi escrito na década de 1940, durante a catástrofe global que foi a 2.ª Guerra Mundial, enquanto o autor francês morava no Brasil, exilado de tudo e de todos em um sítio em Barbacena (Minas Gerais), e publicado postumamente em 1948. Quando lançado na França, os críticos não souberam lidar com a forma dramática do romance, um conjunto heterogêneo de impressões, sensações e atmosferas que pouco explicava a sua trama central. Os leitores não conseguiam captar o que fazia o personagem-título, e qual seria o seu papel na hierarquia social do vilarejo de Fenouille, imersa na sua inércia típica daquela região arcaica do norte da França.

O mistério sobre Ouine se resolve somente nas últimas páginas do livro, escritas naquela prosa vulcânica e sensual de Bernanos, alusiva ao extremo, mas ao mesmo tempo capaz de provocar uma intuição que aponta para uma verdade aparentemente incomunicável sobre as nuances e os perigos da vida do espírito. O professor enigmático não é um pedagogo que está na pequena cidade por acaso. Ele é, nas palavras do crítico literário Pierre Robert-Leclerq, um “pederasta da alma”. Ao seduzir as mulheres, os jovens e os homens daquela “paróquia morta” – não pelos motivos eróticos ordinários, mas sim pelo sequestro do eros da alma que nos faz encontrar com o transcendente –, Ouine inocula neles aquilo que Edgar Allan Poe chamava de “o demônio da perversidade”. O único que percebe isso é o pobre padre da vila que, em um discurso emocionante à beira da cova de um rapaz assassinado, avisa a quem quiser ouvir ali que Deus é apenas um vazio – e que a cidadezinha de Fenoiulle não passa de um cemitério que representa, na verdade, o fim do Ocidente tal como o conhecíamos.

Shusaku Endo não tem a ambição literária de retratar o “Crepúsculo dos Deuses” na sua cidade ultramoderna de Tóquio. Ele pretende dramatizar uma outra espécie de perversidade: a que nasce nos nossos corações. O seu Suguro pode ser considerado como um alter-ego de Endo; contudo, deve-se ir além disso: trata-se de fato de um duplo, um doppelganger, que vive tudo aquilo que a sombra do seu inconsciente sufocou durante anos. Não à toa que, na época da concepção do romance, Endo lia vorazmente a obra do psiquiatra suíço C.G. Jung, cuja abordagem inusitada sobre os nossos demônios interiores nos leva ao confronto necessário com uma violência sagrada que será resolvido somente numa experiência religiosa a qual nos ajudará a dominar esses impulsos.

Em Escândalo, a sombra junguiana se manifesta no modo como Suguro lida com o lado obscuro da vida erótica, por meio do mergulho no mundo do sadomasoquismo e da tortura sexual. Neste ponto, os romances de Endo e Bernanos se encontram em uma convergência assustadora, pois o eros que molda o comportamento humano é virado pelo avesso de tal maneira que não há outra forma de viver exceto se aceitarmos o “demônio da perversidade” como o eixo moral definitivo dessas “paróquias mortas” que existem por aí, sejam Fenouille, Berlim, Tóquio ou Brasília.

Porém, Endo e Bernanos evitam este equívoco. Não porque são escritores católicos, preocupados com a salvação da alma, mas sim porque são, antes de tudo, verdadeiros escritores, cuja matéria prima deles sempre será o mysterium tremendum que é o ser humano. E, sendo artistas, eles sabem que somos simultaneamente monstros e anjos, capazes de vivermos no mais alto dos céus e no mais horroroso dos infernos.

Neste ponto, os dois romancistas se unem com um parceiro improvável para as suas respectivas concepções católicas de mundo, mas inevitável quando se medita sobre as seduções desta “pederastia da alma”. Estamos falando, é claro, de Charles Baudelaire que, em seu As Flores do Mal (recentemente traduzido de forma brilhante por Júlio Castañon Guimarães em uma reedição da Penguin/Companhia das Letras), descreve com requintes de perfeição estética o encontro com o “demônio da destruição” que se agita dentro de nós, sempre perto, sem parar, flutuando ao nosso redor como um ar impalpável, a nos obrigar a engoli-lo e a senti-lo no nosso pulmão, a queimar e a nos preencher de “um desejo culpado e infindável”.

O Suguro de Shusaku Endo e o Senhor Ouine de George Bernanos são, cada um a seu modo, vítima e carrasco desta engrenagem macabra. No caso do francês, o que temos é a existência mergulhada em um desconhecimento completo do que ocorre com as nossas paixões – e mais: com as rivalidades que alimentamos entre nossos semelhantes. Por isso mesmo, elas se tornam as verdadeiras administradoras de uma sociedade que só pode nos levar, em última instância, aos plágios descarados de Goebbels e ao som manipulado de Wagner.

É o oposto simétrico do que se passa no romance de Endo; ao se ver de maneira medonha, Suguro não tem outra saída exceto vislumbrar por uma revelação que vai na contramão do fascínio descrito por Baudelaire – e que se harmoniza mais com o William Shakespeare da peça A Tempestade, em especial com o personagem náufrago Próspero que, ao descrever com horror para um dos seus cativos, o demônio Caliban, disse algo que também seria sobre si mesmo: “Este objeto das trevas que reconheço como meu” (This thing of darkness that I acknowleged as mine).

A aceitação deste escândalo da perversidade como algo do qual não temos escapatória é a única saída para não mergulharmos para sempre no lodo da “paróquia morta”. Ele está sempre ciente do nosso grande amor pela beleza da arte – e, por isso, se disfarça tanto nas sedutoras formas femininas como na pureza da inocência prestes a ser corrompida; e, ao mesmo tempo, nos leva ao olhar do Deus distante para nos abandonar, exauridos e ofegantes, naquelas planícies do tédio, profundas e desertas. 

Como um remédio difícil de engolir para que a cura da moléstia seja permanente, as obras de Georges Bernanos e Shusaku Endo abrem as feridas diante dos nossos olhos cheios de perturbação. Elas nos impedem que alimentemos a máquina do Estado, prenhe do sangue da destruição e do perverso, prestes a sufocar a consciência inata de cada de nós diante das imagens, das músicas – e dos vídeos – que desejam assassinar as nossas almas.

ESCÂNDALO AUTOR: SHOSAKU ENDO TRADUÇÃO: ALINE STORTO E MARIO VILELA EDITORA: TUSQUETS 256 PÁGINAS R$ 59,90

SENHOR OUINE  AUTOR: GEORGES BERNANOS TRADUÇÃO: ALVARO LINS EDITORA: É REALIZAÇÕES 288 PÁGINAS R$ 69,90 *MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DE ‘A TIRANIA DOS ESPECIALISTAS’ (EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2019)

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