Concorrendo ao Oscar, Hirokazu Kore-eda fala sobre sua carreira


Diretor japonês ganhou Palma de Ouro em Cannes por 'Assunto de Família', que concorre ao Oscar de filme em língua estrangeira

Por Motoko Rich
Atualização:

TÓQUIO - Como condiz com um diretor cujos filmes mostram a desordem da vida familiar japonesa, o escritório de Hirokazu Kore-eda está repleto de pilhas de papéis, livros, fotografias, videocassetes e CDs. Mas são as dezenas de bonecos de Frankenstein pendurados ao redor da sala que realmente captam seu ponto de vista emocional. “Eu amo Frankenstein”, diz Kore-eda. “Ele simplesmente é tão melancólico.” Kore-eda, de 56 anos, cujo trabalho mais recente, Assunto de Família, recebeu uma indicação ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira e tem sido sucesso de bilheteria no Japão, especializou-se em histórias sobre pessoas que passam por uma tristeza quase insuportável.

O diretor japonês Hirokazu Kore-eda Foto: Noriko Hayashi/The New York Times

Em Assunto de Família, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, um grupo de párias que vivem juntos como uma família resgata uma menina de seus pais abusivos e a insere em seu clã dedicado a pequenos roubos. Por um tempo, essa gangue parece mais autenticamente conectada do que algumas famílias que compartilham um DNA. Mas – alerta de spoiler – dúvidas éticas no final do filme levam a uma ruptura devastadora.

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Kore-eda diz que seus filmes representam uma crítica implícita ao Japão atual. Eles abordam temas de isolamento e invisibilidade social, bem como o entorpecimento das almas, que pode vir junto do sucesso profissional.

Ninguém Pode Saber, um de seus filmes mais conhecidos internacionalmente antes de Assunto de Família, é a história de quatro crianças abandonadas pela mãe em um pequeno apartamento em Tóquio. Em Pais e Filhos, que ganhou o Prêmio do Júri em Cannes em 2013, dois casais ficam sabendo que seus filhos de 6 anos foram trocados no hospital, levando a decisões agonizantes que expõem as divisões de classe entre as suas famílias e os deixa psicologicamente devastados. “Não retrato pessoas nem faço filmes nos quais os espectadores podem encontrar esperanças facilmente”, disse Kore-eda, durante uma entrevista em seu estúdio no bairro de Shibuya. “Algumas pessoas querem ver personagens que crescem e se tornam mais fortes ao longo de um filme. Mas eu não quero fazer esse tipo de filme.” 

A visão de Kore-eda está totalmente em desacordo com a dos líderes do Japão. Com a economia desfrutando de expansão modesta após décadas de estagnação, o primeiro-ministro Shinzo Abe, em um discurso na reunião anual do Fórum Econômico Mundial em Davos, no mês passado, anunciou um “esperado ciclo de feedback positivo” e alardeou que o Japão tem “uma economia impulsionada pela esperança.”

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Essa retórica rósea desmente os desafios demográficos que o Japão enfrenta, com uma população em declínio e em rápido envelhecimento e com escassez de mão de obra. Também ignora a insegurança que muitos japoneses sentem por trabalhar sob contrato ou em meio período, com limitadas chances de progresso. Pouco mais de 1 em cada 6 pessoas vive na pobreza. E aqueles que ocupam empregos de tempo integral são frequentemente forçados a trabalhar por tantas horas que alguns deles morrem pelo excesso. Contra esse pano de fundo, Kore-eda diagnosticou uma sociedade onde os laços locais estão debilitados e o nacionalismo em ascensão, particularmente sob o governo de direita de Abe. Então, logo depois que ele ganhou a Palma de Ouro, o ministro da educação do país convidou Kore-eda para uma reunião de congratulação, e o diretor hesitou.

“Eu não entendi o que eles estavam querendo provar ao me parabenizar”, disse Kore-eda. “Eu não acho que está certo que governo e cineastas aproximem-se tanto.”

Assunto de Família foi feito em parte com financiamento do governo, e algumas pessoas nas mídias sociais criticaram o diretor por ser antijaponês ou hipócrita. “Você pegou o dinheiro e depois disse que queria manter distância” do governo, escreveu um blogueiro. “Que desculpa conveniente.” No Twitter, Tsuneyasu Takeda, um comentarista conservador, acusou Kore-eda de ser um “diretor que assalta lojas.”

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Kore-eda disse a um entrevistador do jornal japonês Mainichi Shimbun que estava agradecido pelo dinheiro público, mas o via como um subsídio dos contribuintes e não como uma concessão de qualquer administração em particular.

“Se você pensa na cultura como algo que transcende o Estado”, ele disse, “então você compreende que as dotações culturais nem sempre coincidem com os interesses do Estado.”

Filho de um soldado que serviu no exército japonês Kwantung durante a 2.ª Guerra Mundial no Estado fantoche de Manchukuo na China, Kore-eda cresceu em sintonia com os caprichos de classe dentro de sua própria família. Seu pai, que foi prisioneiro de guerra soviético na Sibéria, saltava de emprego em emprego, uma anomalia na era pós-guerra do emprego vitalício. 

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Sua mãe, que crescera em uma família rica, acabou sustentando seus filhos enquanto o marido não conseguia encontrar ou manter um emprego. Ela trabalhava em uma fábrica de reciclagem e em uma fábrica de bolos. Kore-eda disse que suas duas irmãs mais velhas o alertaram para não falar sobre o histórico de trabalho de sua mãe, por vergonha.

Ela passou o amor pelos filmes ao seu filho, assistindo faroestes ocidentais, estrelados pelas suas favoritas, Vivien Leigh e Joan Fontaine, na televisão com ele depois da escola. Mas foi o pai de Kore-eda quem finalmente apoiou sua decisão de seguir carreira como artista. Sua mãe pediu que ele encontrasse um emprego mais estável.

Masahiro Yamada, um sociólogo da Universidade de Chuo que escreveu sobre os filmes de Kore-eda, disse que Assunto de Família é uma crítica da visão tradicional da família japonesa, onde apenas relações de sangue podem ser confiáveis. “Há muitas famílias cujos membros não se comunicam nem interagem bem”, disse Yamada. “Mas os membros da família simulados no filme cuidam um do outro mais do que algumas famílias verdadeiras.”

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À sua maneira, os filmes de Kore-eda oferecem fragmentos de otimismo, assim como momentos de humor travesso. Mas ele ainda tem esperança para o seu país? Ele fez uma longa pausa. “Eu não abandonei a esperança”, disse ele. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

TÓQUIO - Como condiz com um diretor cujos filmes mostram a desordem da vida familiar japonesa, o escritório de Hirokazu Kore-eda está repleto de pilhas de papéis, livros, fotografias, videocassetes e CDs. Mas são as dezenas de bonecos de Frankenstein pendurados ao redor da sala que realmente captam seu ponto de vista emocional. “Eu amo Frankenstein”, diz Kore-eda. “Ele simplesmente é tão melancólico.” Kore-eda, de 56 anos, cujo trabalho mais recente, Assunto de Família, recebeu uma indicação ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira e tem sido sucesso de bilheteria no Japão, especializou-se em histórias sobre pessoas que passam por uma tristeza quase insuportável.

O diretor japonês Hirokazu Kore-eda Foto: Noriko Hayashi/The New York Times

Em Assunto de Família, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, um grupo de párias que vivem juntos como uma família resgata uma menina de seus pais abusivos e a insere em seu clã dedicado a pequenos roubos. Por um tempo, essa gangue parece mais autenticamente conectada do que algumas famílias que compartilham um DNA. Mas – alerta de spoiler – dúvidas éticas no final do filme levam a uma ruptura devastadora.

Kore-eda diz que seus filmes representam uma crítica implícita ao Japão atual. Eles abordam temas de isolamento e invisibilidade social, bem como o entorpecimento das almas, que pode vir junto do sucesso profissional.

Ninguém Pode Saber, um de seus filmes mais conhecidos internacionalmente antes de Assunto de Família, é a história de quatro crianças abandonadas pela mãe em um pequeno apartamento em Tóquio. Em Pais e Filhos, que ganhou o Prêmio do Júri em Cannes em 2013, dois casais ficam sabendo que seus filhos de 6 anos foram trocados no hospital, levando a decisões agonizantes que expõem as divisões de classe entre as suas famílias e os deixa psicologicamente devastados. “Não retrato pessoas nem faço filmes nos quais os espectadores podem encontrar esperanças facilmente”, disse Kore-eda, durante uma entrevista em seu estúdio no bairro de Shibuya. “Algumas pessoas querem ver personagens que crescem e se tornam mais fortes ao longo de um filme. Mas eu não quero fazer esse tipo de filme.” 

A visão de Kore-eda está totalmente em desacordo com a dos líderes do Japão. Com a economia desfrutando de expansão modesta após décadas de estagnação, o primeiro-ministro Shinzo Abe, em um discurso na reunião anual do Fórum Econômico Mundial em Davos, no mês passado, anunciou um “esperado ciclo de feedback positivo” e alardeou que o Japão tem “uma economia impulsionada pela esperança.”

Essa retórica rósea desmente os desafios demográficos que o Japão enfrenta, com uma população em declínio e em rápido envelhecimento e com escassez de mão de obra. Também ignora a insegurança que muitos japoneses sentem por trabalhar sob contrato ou em meio período, com limitadas chances de progresso. Pouco mais de 1 em cada 6 pessoas vive na pobreza. E aqueles que ocupam empregos de tempo integral são frequentemente forçados a trabalhar por tantas horas que alguns deles morrem pelo excesso. Contra esse pano de fundo, Kore-eda diagnosticou uma sociedade onde os laços locais estão debilitados e o nacionalismo em ascensão, particularmente sob o governo de direita de Abe. Então, logo depois que ele ganhou a Palma de Ouro, o ministro da educação do país convidou Kore-eda para uma reunião de congratulação, e o diretor hesitou.

“Eu não entendi o que eles estavam querendo provar ao me parabenizar”, disse Kore-eda. “Eu não acho que está certo que governo e cineastas aproximem-se tanto.”

Assunto de Família foi feito em parte com financiamento do governo, e algumas pessoas nas mídias sociais criticaram o diretor por ser antijaponês ou hipócrita. “Você pegou o dinheiro e depois disse que queria manter distância” do governo, escreveu um blogueiro. “Que desculpa conveniente.” No Twitter, Tsuneyasu Takeda, um comentarista conservador, acusou Kore-eda de ser um “diretor que assalta lojas.”

Kore-eda disse a um entrevistador do jornal japonês Mainichi Shimbun que estava agradecido pelo dinheiro público, mas o via como um subsídio dos contribuintes e não como uma concessão de qualquer administração em particular.

“Se você pensa na cultura como algo que transcende o Estado”, ele disse, “então você compreende que as dotações culturais nem sempre coincidem com os interesses do Estado.”

Filho de um soldado que serviu no exército japonês Kwantung durante a 2.ª Guerra Mundial no Estado fantoche de Manchukuo na China, Kore-eda cresceu em sintonia com os caprichos de classe dentro de sua própria família. Seu pai, que foi prisioneiro de guerra soviético na Sibéria, saltava de emprego em emprego, uma anomalia na era pós-guerra do emprego vitalício. 

Sua mãe, que crescera em uma família rica, acabou sustentando seus filhos enquanto o marido não conseguia encontrar ou manter um emprego. Ela trabalhava em uma fábrica de reciclagem e em uma fábrica de bolos. Kore-eda disse que suas duas irmãs mais velhas o alertaram para não falar sobre o histórico de trabalho de sua mãe, por vergonha.

Ela passou o amor pelos filmes ao seu filho, assistindo faroestes ocidentais, estrelados pelas suas favoritas, Vivien Leigh e Joan Fontaine, na televisão com ele depois da escola. Mas foi o pai de Kore-eda quem finalmente apoiou sua decisão de seguir carreira como artista. Sua mãe pediu que ele encontrasse um emprego mais estável.

Masahiro Yamada, um sociólogo da Universidade de Chuo que escreveu sobre os filmes de Kore-eda, disse que Assunto de Família é uma crítica da visão tradicional da família japonesa, onde apenas relações de sangue podem ser confiáveis. “Há muitas famílias cujos membros não se comunicam nem interagem bem”, disse Yamada. “Mas os membros da família simulados no filme cuidam um do outro mais do que algumas famílias verdadeiras.”

À sua maneira, os filmes de Kore-eda oferecem fragmentos de otimismo, assim como momentos de humor travesso. Mas ele ainda tem esperança para o seu país? Ele fez uma longa pausa. “Eu não abandonei a esperança”, disse ele. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

TÓQUIO - Como condiz com um diretor cujos filmes mostram a desordem da vida familiar japonesa, o escritório de Hirokazu Kore-eda está repleto de pilhas de papéis, livros, fotografias, videocassetes e CDs. Mas são as dezenas de bonecos de Frankenstein pendurados ao redor da sala que realmente captam seu ponto de vista emocional. “Eu amo Frankenstein”, diz Kore-eda. “Ele simplesmente é tão melancólico.” Kore-eda, de 56 anos, cujo trabalho mais recente, Assunto de Família, recebeu uma indicação ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira e tem sido sucesso de bilheteria no Japão, especializou-se em histórias sobre pessoas que passam por uma tristeza quase insuportável.

O diretor japonês Hirokazu Kore-eda Foto: Noriko Hayashi/The New York Times

Em Assunto de Família, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, um grupo de párias que vivem juntos como uma família resgata uma menina de seus pais abusivos e a insere em seu clã dedicado a pequenos roubos. Por um tempo, essa gangue parece mais autenticamente conectada do que algumas famílias que compartilham um DNA. Mas – alerta de spoiler – dúvidas éticas no final do filme levam a uma ruptura devastadora.

Kore-eda diz que seus filmes representam uma crítica implícita ao Japão atual. Eles abordam temas de isolamento e invisibilidade social, bem como o entorpecimento das almas, que pode vir junto do sucesso profissional.

Ninguém Pode Saber, um de seus filmes mais conhecidos internacionalmente antes de Assunto de Família, é a história de quatro crianças abandonadas pela mãe em um pequeno apartamento em Tóquio. Em Pais e Filhos, que ganhou o Prêmio do Júri em Cannes em 2013, dois casais ficam sabendo que seus filhos de 6 anos foram trocados no hospital, levando a decisões agonizantes que expõem as divisões de classe entre as suas famílias e os deixa psicologicamente devastados. “Não retrato pessoas nem faço filmes nos quais os espectadores podem encontrar esperanças facilmente”, disse Kore-eda, durante uma entrevista em seu estúdio no bairro de Shibuya. “Algumas pessoas querem ver personagens que crescem e se tornam mais fortes ao longo de um filme. Mas eu não quero fazer esse tipo de filme.” 

A visão de Kore-eda está totalmente em desacordo com a dos líderes do Japão. Com a economia desfrutando de expansão modesta após décadas de estagnação, o primeiro-ministro Shinzo Abe, em um discurso na reunião anual do Fórum Econômico Mundial em Davos, no mês passado, anunciou um “esperado ciclo de feedback positivo” e alardeou que o Japão tem “uma economia impulsionada pela esperança.”

Essa retórica rósea desmente os desafios demográficos que o Japão enfrenta, com uma população em declínio e em rápido envelhecimento e com escassez de mão de obra. Também ignora a insegurança que muitos japoneses sentem por trabalhar sob contrato ou em meio período, com limitadas chances de progresso. Pouco mais de 1 em cada 6 pessoas vive na pobreza. E aqueles que ocupam empregos de tempo integral são frequentemente forçados a trabalhar por tantas horas que alguns deles morrem pelo excesso. Contra esse pano de fundo, Kore-eda diagnosticou uma sociedade onde os laços locais estão debilitados e o nacionalismo em ascensão, particularmente sob o governo de direita de Abe. Então, logo depois que ele ganhou a Palma de Ouro, o ministro da educação do país convidou Kore-eda para uma reunião de congratulação, e o diretor hesitou.

“Eu não entendi o que eles estavam querendo provar ao me parabenizar”, disse Kore-eda. “Eu não acho que está certo que governo e cineastas aproximem-se tanto.”

Assunto de Família foi feito em parte com financiamento do governo, e algumas pessoas nas mídias sociais criticaram o diretor por ser antijaponês ou hipócrita. “Você pegou o dinheiro e depois disse que queria manter distância” do governo, escreveu um blogueiro. “Que desculpa conveniente.” No Twitter, Tsuneyasu Takeda, um comentarista conservador, acusou Kore-eda de ser um “diretor que assalta lojas.”

Kore-eda disse a um entrevistador do jornal japonês Mainichi Shimbun que estava agradecido pelo dinheiro público, mas o via como um subsídio dos contribuintes e não como uma concessão de qualquer administração em particular.

“Se você pensa na cultura como algo que transcende o Estado”, ele disse, “então você compreende que as dotações culturais nem sempre coincidem com os interesses do Estado.”

Filho de um soldado que serviu no exército japonês Kwantung durante a 2.ª Guerra Mundial no Estado fantoche de Manchukuo na China, Kore-eda cresceu em sintonia com os caprichos de classe dentro de sua própria família. Seu pai, que foi prisioneiro de guerra soviético na Sibéria, saltava de emprego em emprego, uma anomalia na era pós-guerra do emprego vitalício. 

Sua mãe, que crescera em uma família rica, acabou sustentando seus filhos enquanto o marido não conseguia encontrar ou manter um emprego. Ela trabalhava em uma fábrica de reciclagem e em uma fábrica de bolos. Kore-eda disse que suas duas irmãs mais velhas o alertaram para não falar sobre o histórico de trabalho de sua mãe, por vergonha.

Ela passou o amor pelos filmes ao seu filho, assistindo faroestes ocidentais, estrelados pelas suas favoritas, Vivien Leigh e Joan Fontaine, na televisão com ele depois da escola. Mas foi o pai de Kore-eda quem finalmente apoiou sua decisão de seguir carreira como artista. Sua mãe pediu que ele encontrasse um emprego mais estável.

Masahiro Yamada, um sociólogo da Universidade de Chuo que escreveu sobre os filmes de Kore-eda, disse que Assunto de Família é uma crítica da visão tradicional da família japonesa, onde apenas relações de sangue podem ser confiáveis. “Há muitas famílias cujos membros não se comunicam nem interagem bem”, disse Yamada. “Mas os membros da família simulados no filme cuidam um do outro mais do que algumas famílias verdadeiras.”

À sua maneira, os filmes de Kore-eda oferecem fragmentos de otimismo, assim como momentos de humor travesso. Mas ele ainda tem esperança para o seu país? Ele fez uma longa pausa. “Eu não abandonei a esperança”, disse ele. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

TÓQUIO - Como condiz com um diretor cujos filmes mostram a desordem da vida familiar japonesa, o escritório de Hirokazu Kore-eda está repleto de pilhas de papéis, livros, fotografias, videocassetes e CDs. Mas são as dezenas de bonecos de Frankenstein pendurados ao redor da sala que realmente captam seu ponto de vista emocional. “Eu amo Frankenstein”, diz Kore-eda. “Ele simplesmente é tão melancólico.” Kore-eda, de 56 anos, cujo trabalho mais recente, Assunto de Família, recebeu uma indicação ao Oscar de melhor filme em língua estrangeira e tem sido sucesso de bilheteria no Japão, especializou-se em histórias sobre pessoas que passam por uma tristeza quase insuportável.

O diretor japonês Hirokazu Kore-eda Foto: Noriko Hayashi/The New York Times

Em Assunto de Família, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes, um grupo de párias que vivem juntos como uma família resgata uma menina de seus pais abusivos e a insere em seu clã dedicado a pequenos roubos. Por um tempo, essa gangue parece mais autenticamente conectada do que algumas famílias que compartilham um DNA. Mas – alerta de spoiler – dúvidas éticas no final do filme levam a uma ruptura devastadora.

Kore-eda diz que seus filmes representam uma crítica implícita ao Japão atual. Eles abordam temas de isolamento e invisibilidade social, bem como o entorpecimento das almas, que pode vir junto do sucesso profissional.

Ninguém Pode Saber, um de seus filmes mais conhecidos internacionalmente antes de Assunto de Família, é a história de quatro crianças abandonadas pela mãe em um pequeno apartamento em Tóquio. Em Pais e Filhos, que ganhou o Prêmio do Júri em Cannes em 2013, dois casais ficam sabendo que seus filhos de 6 anos foram trocados no hospital, levando a decisões agonizantes que expõem as divisões de classe entre as suas famílias e os deixa psicologicamente devastados. “Não retrato pessoas nem faço filmes nos quais os espectadores podem encontrar esperanças facilmente”, disse Kore-eda, durante uma entrevista em seu estúdio no bairro de Shibuya. “Algumas pessoas querem ver personagens que crescem e se tornam mais fortes ao longo de um filme. Mas eu não quero fazer esse tipo de filme.” 

A visão de Kore-eda está totalmente em desacordo com a dos líderes do Japão. Com a economia desfrutando de expansão modesta após décadas de estagnação, o primeiro-ministro Shinzo Abe, em um discurso na reunião anual do Fórum Econômico Mundial em Davos, no mês passado, anunciou um “esperado ciclo de feedback positivo” e alardeou que o Japão tem “uma economia impulsionada pela esperança.”

Essa retórica rósea desmente os desafios demográficos que o Japão enfrenta, com uma população em declínio e em rápido envelhecimento e com escassez de mão de obra. Também ignora a insegurança que muitos japoneses sentem por trabalhar sob contrato ou em meio período, com limitadas chances de progresso. Pouco mais de 1 em cada 6 pessoas vive na pobreza. E aqueles que ocupam empregos de tempo integral são frequentemente forçados a trabalhar por tantas horas que alguns deles morrem pelo excesso. Contra esse pano de fundo, Kore-eda diagnosticou uma sociedade onde os laços locais estão debilitados e o nacionalismo em ascensão, particularmente sob o governo de direita de Abe. Então, logo depois que ele ganhou a Palma de Ouro, o ministro da educação do país convidou Kore-eda para uma reunião de congratulação, e o diretor hesitou.

“Eu não entendi o que eles estavam querendo provar ao me parabenizar”, disse Kore-eda. “Eu não acho que está certo que governo e cineastas aproximem-se tanto.”

Assunto de Família foi feito em parte com financiamento do governo, e algumas pessoas nas mídias sociais criticaram o diretor por ser antijaponês ou hipócrita. “Você pegou o dinheiro e depois disse que queria manter distância” do governo, escreveu um blogueiro. “Que desculpa conveniente.” No Twitter, Tsuneyasu Takeda, um comentarista conservador, acusou Kore-eda de ser um “diretor que assalta lojas.”

Kore-eda disse a um entrevistador do jornal japonês Mainichi Shimbun que estava agradecido pelo dinheiro público, mas o via como um subsídio dos contribuintes e não como uma concessão de qualquer administração em particular.

“Se você pensa na cultura como algo que transcende o Estado”, ele disse, “então você compreende que as dotações culturais nem sempre coincidem com os interesses do Estado.”

Filho de um soldado que serviu no exército japonês Kwantung durante a 2.ª Guerra Mundial no Estado fantoche de Manchukuo na China, Kore-eda cresceu em sintonia com os caprichos de classe dentro de sua própria família. Seu pai, que foi prisioneiro de guerra soviético na Sibéria, saltava de emprego em emprego, uma anomalia na era pós-guerra do emprego vitalício. 

Sua mãe, que crescera em uma família rica, acabou sustentando seus filhos enquanto o marido não conseguia encontrar ou manter um emprego. Ela trabalhava em uma fábrica de reciclagem e em uma fábrica de bolos. Kore-eda disse que suas duas irmãs mais velhas o alertaram para não falar sobre o histórico de trabalho de sua mãe, por vergonha.

Ela passou o amor pelos filmes ao seu filho, assistindo faroestes ocidentais, estrelados pelas suas favoritas, Vivien Leigh e Joan Fontaine, na televisão com ele depois da escola. Mas foi o pai de Kore-eda quem finalmente apoiou sua decisão de seguir carreira como artista. Sua mãe pediu que ele encontrasse um emprego mais estável.

Masahiro Yamada, um sociólogo da Universidade de Chuo que escreveu sobre os filmes de Kore-eda, disse que Assunto de Família é uma crítica da visão tradicional da família japonesa, onde apenas relações de sangue podem ser confiáveis. “Há muitas famílias cujos membros não se comunicam nem interagem bem”, disse Yamada. “Mas os membros da família simulados no filme cuidam um do outro mais do que algumas famílias verdadeiras.”

À sua maneira, os filmes de Kore-eda oferecem fragmentos de otimismo, assim como momentos de humor travesso. Mas ele ainda tem esperança para o seu país? Ele fez uma longa pausa. “Eu não abandonei a esperança”, disse ele. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

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