Ele foi forçado a lutar na 2ª. Guerra do lado errado – mas depois fez de tudo para que aquele pesadelo jamais se repetisse. Em luxuosa edição da Carambaia, Às Vezes dá Vontade de Chorar Feito reproduz as cadernetas com as notas de um soldado do exército nazista que se tornaria um dos mais veementes pacifistas do pós-guerra: o escritor alemão Heinrich Böll (1917-1985).
Mesmo na Alemanha, esse material estava inédito em livro até pouco tempo – foi publicado apenas em 2017, com organização de René Böll, filho do autor. No prefácio, ele conta que o pai “jamais considerou publicar seus diários de guerra, pois eram para ele um documento da história biográfica e, por conseguinte, em seu testamento ele os excluiu de uma publicação”. René conta, porém, que a família optou por descumprir o desejo porque queria “preservar esses diários como um documento para a posteridade, torná-los disponíveis num mundo ainda dominado por guerras”.
E a beleza plástica da edição brasileira apresenta um contraste abrupto com a crueza e brutalidade de seu conteúdo. Com fascinante projeto gráfico de Laura Lotufo, ela reproduz, página por página, os fac-símiles das cadernetas, abarcando o período entre 1943 e 1945 – os diários do começo da guerra foram perdidos.
E foi justamente na época coberta pelas cadernetas que sua participação no conflito tornou-se mais efetiva. Se antes ele servira essencialmente na Alemanha e na França ocupada, em 1943 Böll foi transferido para o front russo, onde sofreu ferimentos. Após enfrentar o Exército Vermelho, ele combateu também na Europa Ocidental, caindo prisioneiro em 1945, para ser libertado depois do fim da guerra.
Uma experiência assim marca e modifica qualquer pessoa. No caso específico de Böll, deve-se ainda levar em conta que a produção literária que o tornaria célebre veio depois do conflito, pois ele matriculou-se na Universidade de Colônia aos 21 anos, em abril de 1939.
Böll mandou um conto para uma revista e começou a trabalhar em um romance, porém, cinco meses depois, em 1º. de setembro do mesmo ano, a Alemanha invadiu a Polônia – e, em outubro, a dois meses de seu 22º aniversário, o jovem foi convocado para lutar na Wehrmacht. Guerra, casamento, nascimento de filho, morte de mãe: os eventos que definiriam a pessoa pública e privada do escritor ocorreram todos nesse período.
Afinal, estamos falando de um intelectual ativo na esfera política, um pacifista veemente que esteve na mira dos conservadores e no centro de controvérsias de imprensa e que, embora homem de fé, chegou a deixar a Igreja Católica. Ele ofereceu guarida a dissidentes do regime soviético como Aleksandr Soljenítsyn, e dá nome a uma fundação criada em 1996. Ligada ao Partido Verde alemão, e com um escritório no Brasil desde o ano 2000 a Fundação Heinrich Böll luta por causas ambientais, a partir da perspectiva de equidade de gênero e de raça.
Vencedor, em 1972, do Nobel, segundo a comissão de premiação, “por sua escrita que, através de sua combinação de ampla perspectiva de seu tempo e uma habilidade sensível de caracterização, contribuiu para uma renovação da literatura alemã”, Böll teve várias de suas obras traduzidas para o português. Contudo, títulos como Fim de Uma Viagem, Casa sem Dono e O Anjo Silencioso encontram-se fora de catálogo, e devem ser buscados em sebos ou bibliotecas. O que dá para comprar em livraria são o infantil Lição de Pesca e o romance A Honra Perdida de Katharina Blum, que a Carambaia lançou em 2019, e foi adaptado para as telas em 1975, com direção de Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta.
E quem quiser conhecer o estilo do escritor não encontrará seu melhor exemplo neste lançamento. Não apenas porque o Böll que se tornou conhecido moldaria sua escrita depois da guerra, mas pela própria natureza da obra. Trata-se realmente de anotações de cadernetas, fragmentárias, dispersas. Como o autor nem sempre respeita a cronologia, a edição até sugere saltos entre páginas (quase como em O Jogo de Amarelinha, de Cortázar) para quem quiser acompanhar os eventos em sua ordem temporal. Reproduzem-se alguns trechos de suas cartas do front e de relatórios da Wehrmacht; há ainda caprichados prefácio, posfácio e uma cuidadosa cronologia que, de alguma forma, procuram costurar em um fio uma narrativa por natureza disruptiva.
Assim, há páginas que podem consistir quase que exclusivamente em exclamações de fervor religioso, ou na repetição apaixonada do nome da esposa, Anne-Marie (que não exclui, contudo, diversas menções a mulheres russas e polonesas, e mesmo o sonho com uma húngara). Vez por outra, uma frase completa: “A terra russa, escura, sorve muito sangue do tenente Spiess”.
E relatos de batalha. Como em Jassy, na Romênia, em maio de 1944, onde ele foi ferido: “Estou vendo a infantaria russa bem perto de nós… Três tanques russos surgem do nada em cima de mim”. Ele é atingido: “Sou ferido. Estou caído com o ombro sangrando e o coração receoso, até os tanques atrás de mim se distanciarem, ao passo que a infantaria russa se aproxima cada vez mais… Então eu saio embalado… e minha jaqueta debaixo do braço – para trás… tropeço, corro, tropeço...”
Heinrich Böll
Não chega a surpreender que, nas mãos de um membro das tropas do pior regime totalitário de que se tem notícia, não haja denúncias do nazismo ou do genocídio judeu – seria produzir e carregar provas contra si mesmo. De qualquer forma, é digno de nota não haver também a mais leve referência antissemita (ele registra uma “conversa com uma judia”, sem qualquer juízo de valor). E Böll até consegue mencionar o “tratamento medonho” que dois “kapos” (prisioneiros de guerra que colaboram com os nazistas) dispensam a uma jovem russa.
As menções a Hitler são pontuais e escassas – o que não deixa de ser digno de nota no súdito de um regime marcado pelo culto à personalidade do Führer. Registra-se seu aniversário de Hitler em 1944, sem comentários; o atentado fracassado contra o ditador, no mesmo ano (uma carta do front relata que “fomos dominados por uma excitação extraordinária; sentamo-nos ao pé do rádio a noite inteira e discutimos ansiosos”); e, por fim, sua morte: “Deus tenha compaixão dele”.
Böll narra seus sonhos, às vezes reflexo, às vezes evasão do pesadelo que ele vivencia nas horas de vigília: em meio a relatos de sangue, sujeira e miséria, ele pode sonhar, por exemplo, “com os insistentes licores Kabänen da Tilde e os bolos da Gertrud e compra de cigarros”. Suas principais angústias parecem ser o bem estar dos entes queridos e as próprias carências de gêneros alimentares, bebidas alcoólicas e tabaco.
Não devemos nos esquecer ainda que a narração de Böll começa em 1943 – portanto, depois da derrota nazista em Stalingrado, e da virada da maré da guerra. Em dezembro deste ano, ele ainda escreve que “talvez pudesse após a guerra viver com Anne-Marie aqui no Leste uma existência colonial, assistindo aos cânticos das crianças alemãs”. A derrocada, contudo, é inevitável e, seis meses depois, o autor já confessa sua “pouca esperança na Alemanha”.
Há ainda listas de filmes assistidos e livros lidos e, dentre eles, destaca-se Dostoievski, com Um Jogador e O Idiota. Em carta do front, o alemão afirma que “ele é o rei, o rei cristão de todos os pobres, sofredores e amantes”. Embora estivesse trocando tiros com o exército russo (e fosse ferido em combate), Böll jamais pensou em “cancelar” Dostoievski ou os escritores daquele país.
ÀS VEZES DÁ VONTADE DE CHORAR…
HEINRICH BÖLL
EDITORA: CARAMBAIA
336 páginas. R$ 249,90