Conheça Deborah Levy, autora de sua ‘Autobiografia Viva’ em três ficções


Nascida na África do Sul de pai lituano e mãe inglesa, a escritora fala do trauma da separação e como superou sua angústia

Por Giovana Proença

Uma Autobiografia Viva. A trilogia da escritora sul-africana Deborah Levy, composta por Coisas Que Não Quero Saber, O Custo de Vida e Bens Imobiliários, desafia as noções tradicionais de gêneros literários. A inovação de Levy, responsável pela alcunha de seus livros, é explicada pela autora, que afirma não se entusiasmar com uma literatura empoeirada, “que vive apenas olhando para trás”.

Levy prefere captar momentos de mudança, perto dos seus 50 anos, período da vida de uma mulher que não sente ser normalmente retratado na literatura. A obra chega em bom momento ao Brasil, pela Autêntica Contemporânea, uma vez que o interesse pela escrita autobiográfica está em alta. Isso se deve, em parte, ao Prêmio Nobel de Annie Ernaux, escritora que também faz da própria vida matéria literária.

A sul-africana Deborah Levy tem sua Trilogia lançada no País Foto: Editora Autêntica
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Em sua trilogia, Deborah Levy narra da infância na África do Sul, dividida pelo apartheid, a uma residência literária na França, passando por fatos dolorosos como o fim do casamento e a morte da mãe. A autora define o seu projeto literário como a procura de uma vida plena para as suas personagens. Ao fim da trilogia, resta a sensação de que essa mesma busca norteia a sua trajetória. Sobre a Autobiografia Viva, Déborah Levy respondeu – por chamada de vídeo – às perguntas do Aliás.

Como surgiu a ideia de escrever a sua ‘Autobiografia Viva? '

O primeiro livro, Coisas Que Não Quero Saber, não começou como uma autobiografia viva. Não havia como simplesmente eu me sentar e escrever isso. Quando comecei a escrever o livro, estava querendo mudar a minha vida. Era um momento específico da minha escrita, em que eu tentava criar uma mistura de filosofia, narrativa de viagem, memórias e política. Resolvi chamar o resultado de Autobiografia Viva. Não gosto de uma escrita empoeirada, que vive apenas olhando para trás, então eu criei isso. Há um senso comum de que, quando você escreve, sabe exatamente o que está fazendo. Mas, às vezes, você apenas começa a escrever sobre algo que te interessa, como alguma coisa que viu na rua. Eu leio muito os meus antigos diários. A escrita é como os livros que mantemos conosco, mas ainda não lemos.

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O primeiro livro (’Coisas Que Não Quero Saber’) é uma resposta ao ensaio de George Orwell ‘Por Que Escrevo?’ Como o ensaio marcou sua trilogia?

O pequeno ensaio de George Orwell esteve em minha estante desde sempre e eu postergava a leitura. A linguagem de Orwell causa um estranhamento, com todo o seu entusiasmo. Gosto de propósitos políticos e pensei que esse era um bom ponto de partida. Algo muito pessoal começou a sair na tela de meu computador. Fiquei chocada e pensei “O que é isso que estou escrevendo?”. Comecei a entender que eu estava interessada nesse escrito, o que é muito importante. Se o escritor não está interessado, o leitor também não ficará interessado. Eu estava fazendo algo novo para mim e estava encontrando uma nova voz, escrevendo em primeira pessoa. Escrevi sobre uma parte singular da minha vida, com uma temática de impulsos históricos, que me levou de volta à minha infância na África do Sul. O egoísmo me deu a oportunidade de rir com a Deborah de 15 anos, que escrevia apenas uma palavra e tentava trabalhar em algo, nos cafés de Londres. Coloquei tudo isso no papel.

A autobiografia é um gênero que tem conquistado destaque, principalmente com o Nobel de Annie Ernaux. Para você, quais são os maiores desafios da escrita autobiográfica?

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O maior desafio da autobiografia é conjugar outras matérias com a própria vida, escrever sobre outras pessoas e sobre o mundo. É uma forma que, enquanto você trabalha, percebe que pode fazer isso de uma maneira realista, poética, política e divertida. Quando Ernaux começou a escrever sobre a vida das mulheres da classe trabalhadora francesa, isso não era considerado uma temática importante. Perguntavam: “Por que as experiências dela têm algum valor?”. Isso é matéria política. Por que algumas ideias têm valor e outras não? Ou ainda, por que algumas vidas têm mais valor do que outras? Annie Ernaux foi muito corajosa por escrever os seus livros de maneira tão bela e bem direcionada. Fiquei feliz quando ela ganhou o Nobel. Meu coração se encheu de alegria.

Annie Ernaux, Nobel de Literatura de 2022 Foto: Francesca Mantovani/Editions Gallimard

A sua ficção tem um forte teor feminista. O que na sua experiência como mulher escritora mais está presente nos seus livros?

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Meus livros são sobre como os meus personagens – todos eles – olham para o que eles querem e para o que os impede de ter o que querem. São sobre esses questionamentos. Se você se perguntar essas coisas, terá boas anotações. Acho que a ficção é sobre fazer perguntas interessantes, expandi-las e aprofundá-las. Permito que as minhas personagens femininas vivam plenamente em todos os aspectos da vida. Possibilito, como escritora, que elas vivam todas as dimensões de seu poder, de sua tristeza, de sua inteligência e também de sua estupidez. Ninguém é completamente inteligente, estúpido, poderoso ou vulnerável. Vamos apenas deixar essas personagens viverem do modo como vivemos, sem a necessidade de fazê-las sair e conquistar tudo, de sempre terem pensamentos brilhantes ou problemas para chorar. Nós temos todas essas coisas juntas, elas coexistem. Isso é uma vida. Só quero personagens femininas que vivam plenamente em meus livros, assim como todos os meus personagens. É muito tentador criar um personagem perfeito quando se trata de algum grupo minoritário. Queremos que eles prevaleçam, que vençam. Não queremos vê-los derrotados. Por isso temos de ter vidas plenamente vividas. Temos de ter o ser humano como um todo; afinal, nós coexistimos em tantas dimensões. Meu projeto literário são vidas plenas, com inteligência e estupidez, beleza, força e o oposto disso tudo. Parece fácil. Mas não é, quando você escreve.

O deslocamento entre vários lugares marca a trilogia. Como você enxerga essa maior integração global para a literatura e para o escritor de hoje?

O ponto de escrever, para mim, é alcançar o mundo com a minha escrita. Não quero apenas falar para o povo da minha própria ilha. Sinto que o trabalho do tradutor é inestimável. Eu não seria nada sem os meus tradutores. Eles me deram uma nova língua para dialogar. Os meus livros são amplamente traduzidos para cerca de 20 idiomas. Este é o verdadeiro prazer da minha vida. Viajar para encontrar os leitores e ver a tradução do meu trabalho ao redor do mundo me deixa feliz. Ver o sol, os animais, novas comidas, novas receitas. Essas coisas são muito importantes para mim.

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O tempo de publicação entre os três livros tem relação com uma reconsideração dos momentos da sua vida retratados na ‘Autobiografia Viva’?

Quando terminei Coisas Que Não Quero Saber, tinha estabelecido a voz do livro. O mais importante para mim é a voz da narradora, que é muito parecida comigo, mas não exatamente eu, porque escrever é um artifício. Nós criamos a estrutura e a atmosfera. Escrevi o segundo livro, O Custo de Vida, quando o meu casamento acabou. Todos os livros giram em torno de momentos de mudança. Estava entre os meus 40 e tantos e os 60 anos. Essas partes da vida de uma mulher não são retratadas normalmente na literatura. São partes turbulentas e muito interessantes de uma vida. Pareceu político encontrar humor, alegria e amizades dentro disso.

Quais são as maiores influências da sua escrita? De que modo os autores citados ao longo dos três livros colaboram para o seu projeto literário?

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Eu admiro os livros de James Baldwin. São romances e ensaios em que ele realmente fala com o olho, em primeira pessoa, mas em que o “nós” consegue coexistir. Baldwin faz uma crítica afiada ao racismo e à sua geração. Ele tem humor, raiva, mas também é poético. Algumas vezes ele grita, outras ele sussurra. É uma escrita plenamente viva. Ele é uma grande influência para mim.

Coisas Que Não Quero Saber (volume 1)

Autora: Deborah Levy

Trad.: Rogério Bettoni e Celina Portocarrero

Editora: Autêntica Contemporânea

104 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

*

O Custo de Vida (volume 2)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

120 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

*

Bens Imobiliários (volume 3)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

192 págs., R$ 59,80; R$ 41,90 o e-book

Uma Autobiografia Viva. A trilogia da escritora sul-africana Deborah Levy, composta por Coisas Que Não Quero Saber, O Custo de Vida e Bens Imobiliários, desafia as noções tradicionais de gêneros literários. A inovação de Levy, responsável pela alcunha de seus livros, é explicada pela autora, que afirma não se entusiasmar com uma literatura empoeirada, “que vive apenas olhando para trás”.

Levy prefere captar momentos de mudança, perto dos seus 50 anos, período da vida de uma mulher que não sente ser normalmente retratado na literatura. A obra chega em bom momento ao Brasil, pela Autêntica Contemporânea, uma vez que o interesse pela escrita autobiográfica está em alta. Isso se deve, em parte, ao Prêmio Nobel de Annie Ernaux, escritora que também faz da própria vida matéria literária.

A sul-africana Deborah Levy tem sua Trilogia lançada no País Foto: Editora Autêntica

Em sua trilogia, Deborah Levy narra da infância na África do Sul, dividida pelo apartheid, a uma residência literária na França, passando por fatos dolorosos como o fim do casamento e a morte da mãe. A autora define o seu projeto literário como a procura de uma vida plena para as suas personagens. Ao fim da trilogia, resta a sensação de que essa mesma busca norteia a sua trajetória. Sobre a Autobiografia Viva, Déborah Levy respondeu – por chamada de vídeo – às perguntas do Aliás.

Como surgiu a ideia de escrever a sua ‘Autobiografia Viva? '

O primeiro livro, Coisas Que Não Quero Saber, não começou como uma autobiografia viva. Não havia como simplesmente eu me sentar e escrever isso. Quando comecei a escrever o livro, estava querendo mudar a minha vida. Era um momento específico da minha escrita, em que eu tentava criar uma mistura de filosofia, narrativa de viagem, memórias e política. Resolvi chamar o resultado de Autobiografia Viva. Não gosto de uma escrita empoeirada, que vive apenas olhando para trás, então eu criei isso. Há um senso comum de que, quando você escreve, sabe exatamente o que está fazendo. Mas, às vezes, você apenas começa a escrever sobre algo que te interessa, como alguma coisa que viu na rua. Eu leio muito os meus antigos diários. A escrita é como os livros que mantemos conosco, mas ainda não lemos.

O primeiro livro (’Coisas Que Não Quero Saber’) é uma resposta ao ensaio de George Orwell ‘Por Que Escrevo?’ Como o ensaio marcou sua trilogia?

O pequeno ensaio de George Orwell esteve em minha estante desde sempre e eu postergava a leitura. A linguagem de Orwell causa um estranhamento, com todo o seu entusiasmo. Gosto de propósitos políticos e pensei que esse era um bom ponto de partida. Algo muito pessoal começou a sair na tela de meu computador. Fiquei chocada e pensei “O que é isso que estou escrevendo?”. Comecei a entender que eu estava interessada nesse escrito, o que é muito importante. Se o escritor não está interessado, o leitor também não ficará interessado. Eu estava fazendo algo novo para mim e estava encontrando uma nova voz, escrevendo em primeira pessoa. Escrevi sobre uma parte singular da minha vida, com uma temática de impulsos históricos, que me levou de volta à minha infância na África do Sul. O egoísmo me deu a oportunidade de rir com a Deborah de 15 anos, que escrevia apenas uma palavra e tentava trabalhar em algo, nos cafés de Londres. Coloquei tudo isso no papel.

A autobiografia é um gênero que tem conquistado destaque, principalmente com o Nobel de Annie Ernaux. Para você, quais são os maiores desafios da escrita autobiográfica?

O maior desafio da autobiografia é conjugar outras matérias com a própria vida, escrever sobre outras pessoas e sobre o mundo. É uma forma que, enquanto você trabalha, percebe que pode fazer isso de uma maneira realista, poética, política e divertida. Quando Ernaux começou a escrever sobre a vida das mulheres da classe trabalhadora francesa, isso não era considerado uma temática importante. Perguntavam: “Por que as experiências dela têm algum valor?”. Isso é matéria política. Por que algumas ideias têm valor e outras não? Ou ainda, por que algumas vidas têm mais valor do que outras? Annie Ernaux foi muito corajosa por escrever os seus livros de maneira tão bela e bem direcionada. Fiquei feliz quando ela ganhou o Nobel. Meu coração se encheu de alegria.

Annie Ernaux, Nobel de Literatura de 2022 Foto: Francesca Mantovani/Editions Gallimard

A sua ficção tem um forte teor feminista. O que na sua experiência como mulher escritora mais está presente nos seus livros?

Meus livros são sobre como os meus personagens – todos eles – olham para o que eles querem e para o que os impede de ter o que querem. São sobre esses questionamentos. Se você se perguntar essas coisas, terá boas anotações. Acho que a ficção é sobre fazer perguntas interessantes, expandi-las e aprofundá-las. Permito que as minhas personagens femininas vivam plenamente em todos os aspectos da vida. Possibilito, como escritora, que elas vivam todas as dimensões de seu poder, de sua tristeza, de sua inteligência e também de sua estupidez. Ninguém é completamente inteligente, estúpido, poderoso ou vulnerável. Vamos apenas deixar essas personagens viverem do modo como vivemos, sem a necessidade de fazê-las sair e conquistar tudo, de sempre terem pensamentos brilhantes ou problemas para chorar. Nós temos todas essas coisas juntas, elas coexistem. Isso é uma vida. Só quero personagens femininas que vivam plenamente em meus livros, assim como todos os meus personagens. É muito tentador criar um personagem perfeito quando se trata de algum grupo minoritário. Queremos que eles prevaleçam, que vençam. Não queremos vê-los derrotados. Por isso temos de ter vidas plenamente vividas. Temos de ter o ser humano como um todo; afinal, nós coexistimos em tantas dimensões. Meu projeto literário são vidas plenas, com inteligência e estupidez, beleza, força e o oposto disso tudo. Parece fácil. Mas não é, quando você escreve.

O deslocamento entre vários lugares marca a trilogia. Como você enxerga essa maior integração global para a literatura e para o escritor de hoje?

O ponto de escrever, para mim, é alcançar o mundo com a minha escrita. Não quero apenas falar para o povo da minha própria ilha. Sinto que o trabalho do tradutor é inestimável. Eu não seria nada sem os meus tradutores. Eles me deram uma nova língua para dialogar. Os meus livros são amplamente traduzidos para cerca de 20 idiomas. Este é o verdadeiro prazer da minha vida. Viajar para encontrar os leitores e ver a tradução do meu trabalho ao redor do mundo me deixa feliz. Ver o sol, os animais, novas comidas, novas receitas. Essas coisas são muito importantes para mim.

O tempo de publicação entre os três livros tem relação com uma reconsideração dos momentos da sua vida retratados na ‘Autobiografia Viva’?

Quando terminei Coisas Que Não Quero Saber, tinha estabelecido a voz do livro. O mais importante para mim é a voz da narradora, que é muito parecida comigo, mas não exatamente eu, porque escrever é um artifício. Nós criamos a estrutura e a atmosfera. Escrevi o segundo livro, O Custo de Vida, quando o meu casamento acabou. Todos os livros giram em torno de momentos de mudança. Estava entre os meus 40 e tantos e os 60 anos. Essas partes da vida de uma mulher não são retratadas normalmente na literatura. São partes turbulentas e muito interessantes de uma vida. Pareceu político encontrar humor, alegria e amizades dentro disso.

Quais são as maiores influências da sua escrita? De que modo os autores citados ao longo dos três livros colaboram para o seu projeto literário?

Eu admiro os livros de James Baldwin. São romances e ensaios em que ele realmente fala com o olho, em primeira pessoa, mas em que o “nós” consegue coexistir. Baldwin faz uma crítica afiada ao racismo e à sua geração. Ele tem humor, raiva, mas também é poético. Algumas vezes ele grita, outras ele sussurra. É uma escrita plenamente viva. Ele é uma grande influência para mim.

Coisas Que Não Quero Saber (volume 1)

Autora: Deborah Levy

Trad.: Rogério Bettoni e Celina Portocarrero

Editora: Autêntica Contemporânea

104 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

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O Custo de Vida (volume 2)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

120 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

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Bens Imobiliários (volume 3)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

192 págs., R$ 59,80; R$ 41,90 o e-book

Uma Autobiografia Viva. A trilogia da escritora sul-africana Deborah Levy, composta por Coisas Que Não Quero Saber, O Custo de Vida e Bens Imobiliários, desafia as noções tradicionais de gêneros literários. A inovação de Levy, responsável pela alcunha de seus livros, é explicada pela autora, que afirma não se entusiasmar com uma literatura empoeirada, “que vive apenas olhando para trás”.

Levy prefere captar momentos de mudança, perto dos seus 50 anos, período da vida de uma mulher que não sente ser normalmente retratado na literatura. A obra chega em bom momento ao Brasil, pela Autêntica Contemporânea, uma vez que o interesse pela escrita autobiográfica está em alta. Isso se deve, em parte, ao Prêmio Nobel de Annie Ernaux, escritora que também faz da própria vida matéria literária.

A sul-africana Deborah Levy tem sua Trilogia lançada no País Foto: Editora Autêntica

Em sua trilogia, Deborah Levy narra da infância na África do Sul, dividida pelo apartheid, a uma residência literária na França, passando por fatos dolorosos como o fim do casamento e a morte da mãe. A autora define o seu projeto literário como a procura de uma vida plena para as suas personagens. Ao fim da trilogia, resta a sensação de que essa mesma busca norteia a sua trajetória. Sobre a Autobiografia Viva, Déborah Levy respondeu – por chamada de vídeo – às perguntas do Aliás.

Como surgiu a ideia de escrever a sua ‘Autobiografia Viva? '

O primeiro livro, Coisas Que Não Quero Saber, não começou como uma autobiografia viva. Não havia como simplesmente eu me sentar e escrever isso. Quando comecei a escrever o livro, estava querendo mudar a minha vida. Era um momento específico da minha escrita, em que eu tentava criar uma mistura de filosofia, narrativa de viagem, memórias e política. Resolvi chamar o resultado de Autobiografia Viva. Não gosto de uma escrita empoeirada, que vive apenas olhando para trás, então eu criei isso. Há um senso comum de que, quando você escreve, sabe exatamente o que está fazendo. Mas, às vezes, você apenas começa a escrever sobre algo que te interessa, como alguma coisa que viu na rua. Eu leio muito os meus antigos diários. A escrita é como os livros que mantemos conosco, mas ainda não lemos.

O primeiro livro (’Coisas Que Não Quero Saber’) é uma resposta ao ensaio de George Orwell ‘Por Que Escrevo?’ Como o ensaio marcou sua trilogia?

O pequeno ensaio de George Orwell esteve em minha estante desde sempre e eu postergava a leitura. A linguagem de Orwell causa um estranhamento, com todo o seu entusiasmo. Gosto de propósitos políticos e pensei que esse era um bom ponto de partida. Algo muito pessoal começou a sair na tela de meu computador. Fiquei chocada e pensei “O que é isso que estou escrevendo?”. Comecei a entender que eu estava interessada nesse escrito, o que é muito importante. Se o escritor não está interessado, o leitor também não ficará interessado. Eu estava fazendo algo novo para mim e estava encontrando uma nova voz, escrevendo em primeira pessoa. Escrevi sobre uma parte singular da minha vida, com uma temática de impulsos históricos, que me levou de volta à minha infância na África do Sul. O egoísmo me deu a oportunidade de rir com a Deborah de 15 anos, que escrevia apenas uma palavra e tentava trabalhar em algo, nos cafés de Londres. Coloquei tudo isso no papel.

A autobiografia é um gênero que tem conquistado destaque, principalmente com o Nobel de Annie Ernaux. Para você, quais são os maiores desafios da escrita autobiográfica?

O maior desafio da autobiografia é conjugar outras matérias com a própria vida, escrever sobre outras pessoas e sobre o mundo. É uma forma que, enquanto você trabalha, percebe que pode fazer isso de uma maneira realista, poética, política e divertida. Quando Ernaux começou a escrever sobre a vida das mulheres da classe trabalhadora francesa, isso não era considerado uma temática importante. Perguntavam: “Por que as experiências dela têm algum valor?”. Isso é matéria política. Por que algumas ideias têm valor e outras não? Ou ainda, por que algumas vidas têm mais valor do que outras? Annie Ernaux foi muito corajosa por escrever os seus livros de maneira tão bela e bem direcionada. Fiquei feliz quando ela ganhou o Nobel. Meu coração se encheu de alegria.

Annie Ernaux, Nobel de Literatura de 2022 Foto: Francesca Mantovani/Editions Gallimard

A sua ficção tem um forte teor feminista. O que na sua experiência como mulher escritora mais está presente nos seus livros?

Meus livros são sobre como os meus personagens – todos eles – olham para o que eles querem e para o que os impede de ter o que querem. São sobre esses questionamentos. Se você se perguntar essas coisas, terá boas anotações. Acho que a ficção é sobre fazer perguntas interessantes, expandi-las e aprofundá-las. Permito que as minhas personagens femininas vivam plenamente em todos os aspectos da vida. Possibilito, como escritora, que elas vivam todas as dimensões de seu poder, de sua tristeza, de sua inteligência e também de sua estupidez. Ninguém é completamente inteligente, estúpido, poderoso ou vulnerável. Vamos apenas deixar essas personagens viverem do modo como vivemos, sem a necessidade de fazê-las sair e conquistar tudo, de sempre terem pensamentos brilhantes ou problemas para chorar. Nós temos todas essas coisas juntas, elas coexistem. Isso é uma vida. Só quero personagens femininas que vivam plenamente em meus livros, assim como todos os meus personagens. É muito tentador criar um personagem perfeito quando se trata de algum grupo minoritário. Queremos que eles prevaleçam, que vençam. Não queremos vê-los derrotados. Por isso temos de ter vidas plenamente vividas. Temos de ter o ser humano como um todo; afinal, nós coexistimos em tantas dimensões. Meu projeto literário são vidas plenas, com inteligência e estupidez, beleza, força e o oposto disso tudo. Parece fácil. Mas não é, quando você escreve.

O deslocamento entre vários lugares marca a trilogia. Como você enxerga essa maior integração global para a literatura e para o escritor de hoje?

O ponto de escrever, para mim, é alcançar o mundo com a minha escrita. Não quero apenas falar para o povo da minha própria ilha. Sinto que o trabalho do tradutor é inestimável. Eu não seria nada sem os meus tradutores. Eles me deram uma nova língua para dialogar. Os meus livros são amplamente traduzidos para cerca de 20 idiomas. Este é o verdadeiro prazer da minha vida. Viajar para encontrar os leitores e ver a tradução do meu trabalho ao redor do mundo me deixa feliz. Ver o sol, os animais, novas comidas, novas receitas. Essas coisas são muito importantes para mim.

O tempo de publicação entre os três livros tem relação com uma reconsideração dos momentos da sua vida retratados na ‘Autobiografia Viva’?

Quando terminei Coisas Que Não Quero Saber, tinha estabelecido a voz do livro. O mais importante para mim é a voz da narradora, que é muito parecida comigo, mas não exatamente eu, porque escrever é um artifício. Nós criamos a estrutura e a atmosfera. Escrevi o segundo livro, O Custo de Vida, quando o meu casamento acabou. Todos os livros giram em torno de momentos de mudança. Estava entre os meus 40 e tantos e os 60 anos. Essas partes da vida de uma mulher não são retratadas normalmente na literatura. São partes turbulentas e muito interessantes de uma vida. Pareceu político encontrar humor, alegria e amizades dentro disso.

Quais são as maiores influências da sua escrita? De que modo os autores citados ao longo dos três livros colaboram para o seu projeto literário?

Eu admiro os livros de James Baldwin. São romances e ensaios em que ele realmente fala com o olho, em primeira pessoa, mas em que o “nós” consegue coexistir. Baldwin faz uma crítica afiada ao racismo e à sua geração. Ele tem humor, raiva, mas também é poético. Algumas vezes ele grita, outras ele sussurra. É uma escrita plenamente viva. Ele é uma grande influência para mim.

Coisas Que Não Quero Saber (volume 1)

Autora: Deborah Levy

Trad.: Rogério Bettoni e Celina Portocarrero

Editora: Autêntica Contemporânea

104 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

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O Custo de Vida (volume 2)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

120 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

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Bens Imobiliários (volume 3)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

192 págs., R$ 59,80; R$ 41,90 o e-book

Uma Autobiografia Viva. A trilogia da escritora sul-africana Deborah Levy, composta por Coisas Que Não Quero Saber, O Custo de Vida e Bens Imobiliários, desafia as noções tradicionais de gêneros literários. A inovação de Levy, responsável pela alcunha de seus livros, é explicada pela autora, que afirma não se entusiasmar com uma literatura empoeirada, “que vive apenas olhando para trás”.

Levy prefere captar momentos de mudança, perto dos seus 50 anos, período da vida de uma mulher que não sente ser normalmente retratado na literatura. A obra chega em bom momento ao Brasil, pela Autêntica Contemporânea, uma vez que o interesse pela escrita autobiográfica está em alta. Isso se deve, em parte, ao Prêmio Nobel de Annie Ernaux, escritora que também faz da própria vida matéria literária.

A sul-africana Deborah Levy tem sua Trilogia lançada no País Foto: Editora Autêntica

Em sua trilogia, Deborah Levy narra da infância na África do Sul, dividida pelo apartheid, a uma residência literária na França, passando por fatos dolorosos como o fim do casamento e a morte da mãe. A autora define o seu projeto literário como a procura de uma vida plena para as suas personagens. Ao fim da trilogia, resta a sensação de que essa mesma busca norteia a sua trajetória. Sobre a Autobiografia Viva, Déborah Levy respondeu – por chamada de vídeo – às perguntas do Aliás.

Como surgiu a ideia de escrever a sua ‘Autobiografia Viva? '

O primeiro livro, Coisas Que Não Quero Saber, não começou como uma autobiografia viva. Não havia como simplesmente eu me sentar e escrever isso. Quando comecei a escrever o livro, estava querendo mudar a minha vida. Era um momento específico da minha escrita, em que eu tentava criar uma mistura de filosofia, narrativa de viagem, memórias e política. Resolvi chamar o resultado de Autobiografia Viva. Não gosto de uma escrita empoeirada, que vive apenas olhando para trás, então eu criei isso. Há um senso comum de que, quando você escreve, sabe exatamente o que está fazendo. Mas, às vezes, você apenas começa a escrever sobre algo que te interessa, como alguma coisa que viu na rua. Eu leio muito os meus antigos diários. A escrita é como os livros que mantemos conosco, mas ainda não lemos.

O primeiro livro (’Coisas Que Não Quero Saber’) é uma resposta ao ensaio de George Orwell ‘Por Que Escrevo?’ Como o ensaio marcou sua trilogia?

O pequeno ensaio de George Orwell esteve em minha estante desde sempre e eu postergava a leitura. A linguagem de Orwell causa um estranhamento, com todo o seu entusiasmo. Gosto de propósitos políticos e pensei que esse era um bom ponto de partida. Algo muito pessoal começou a sair na tela de meu computador. Fiquei chocada e pensei “O que é isso que estou escrevendo?”. Comecei a entender que eu estava interessada nesse escrito, o que é muito importante. Se o escritor não está interessado, o leitor também não ficará interessado. Eu estava fazendo algo novo para mim e estava encontrando uma nova voz, escrevendo em primeira pessoa. Escrevi sobre uma parte singular da minha vida, com uma temática de impulsos históricos, que me levou de volta à minha infância na África do Sul. O egoísmo me deu a oportunidade de rir com a Deborah de 15 anos, que escrevia apenas uma palavra e tentava trabalhar em algo, nos cafés de Londres. Coloquei tudo isso no papel.

A autobiografia é um gênero que tem conquistado destaque, principalmente com o Nobel de Annie Ernaux. Para você, quais são os maiores desafios da escrita autobiográfica?

O maior desafio da autobiografia é conjugar outras matérias com a própria vida, escrever sobre outras pessoas e sobre o mundo. É uma forma que, enquanto você trabalha, percebe que pode fazer isso de uma maneira realista, poética, política e divertida. Quando Ernaux começou a escrever sobre a vida das mulheres da classe trabalhadora francesa, isso não era considerado uma temática importante. Perguntavam: “Por que as experiências dela têm algum valor?”. Isso é matéria política. Por que algumas ideias têm valor e outras não? Ou ainda, por que algumas vidas têm mais valor do que outras? Annie Ernaux foi muito corajosa por escrever os seus livros de maneira tão bela e bem direcionada. Fiquei feliz quando ela ganhou o Nobel. Meu coração se encheu de alegria.

Annie Ernaux, Nobel de Literatura de 2022 Foto: Francesca Mantovani/Editions Gallimard

A sua ficção tem um forte teor feminista. O que na sua experiência como mulher escritora mais está presente nos seus livros?

Meus livros são sobre como os meus personagens – todos eles – olham para o que eles querem e para o que os impede de ter o que querem. São sobre esses questionamentos. Se você se perguntar essas coisas, terá boas anotações. Acho que a ficção é sobre fazer perguntas interessantes, expandi-las e aprofundá-las. Permito que as minhas personagens femininas vivam plenamente em todos os aspectos da vida. Possibilito, como escritora, que elas vivam todas as dimensões de seu poder, de sua tristeza, de sua inteligência e também de sua estupidez. Ninguém é completamente inteligente, estúpido, poderoso ou vulnerável. Vamos apenas deixar essas personagens viverem do modo como vivemos, sem a necessidade de fazê-las sair e conquistar tudo, de sempre terem pensamentos brilhantes ou problemas para chorar. Nós temos todas essas coisas juntas, elas coexistem. Isso é uma vida. Só quero personagens femininas que vivam plenamente em meus livros, assim como todos os meus personagens. É muito tentador criar um personagem perfeito quando se trata de algum grupo minoritário. Queremos que eles prevaleçam, que vençam. Não queremos vê-los derrotados. Por isso temos de ter vidas plenamente vividas. Temos de ter o ser humano como um todo; afinal, nós coexistimos em tantas dimensões. Meu projeto literário são vidas plenas, com inteligência e estupidez, beleza, força e o oposto disso tudo. Parece fácil. Mas não é, quando você escreve.

O deslocamento entre vários lugares marca a trilogia. Como você enxerga essa maior integração global para a literatura e para o escritor de hoje?

O ponto de escrever, para mim, é alcançar o mundo com a minha escrita. Não quero apenas falar para o povo da minha própria ilha. Sinto que o trabalho do tradutor é inestimável. Eu não seria nada sem os meus tradutores. Eles me deram uma nova língua para dialogar. Os meus livros são amplamente traduzidos para cerca de 20 idiomas. Este é o verdadeiro prazer da minha vida. Viajar para encontrar os leitores e ver a tradução do meu trabalho ao redor do mundo me deixa feliz. Ver o sol, os animais, novas comidas, novas receitas. Essas coisas são muito importantes para mim.

O tempo de publicação entre os três livros tem relação com uma reconsideração dos momentos da sua vida retratados na ‘Autobiografia Viva’?

Quando terminei Coisas Que Não Quero Saber, tinha estabelecido a voz do livro. O mais importante para mim é a voz da narradora, que é muito parecida comigo, mas não exatamente eu, porque escrever é um artifício. Nós criamos a estrutura e a atmosfera. Escrevi o segundo livro, O Custo de Vida, quando o meu casamento acabou. Todos os livros giram em torno de momentos de mudança. Estava entre os meus 40 e tantos e os 60 anos. Essas partes da vida de uma mulher não são retratadas normalmente na literatura. São partes turbulentas e muito interessantes de uma vida. Pareceu político encontrar humor, alegria e amizades dentro disso.

Quais são as maiores influências da sua escrita? De que modo os autores citados ao longo dos três livros colaboram para o seu projeto literário?

Eu admiro os livros de James Baldwin. São romances e ensaios em que ele realmente fala com o olho, em primeira pessoa, mas em que o “nós” consegue coexistir. Baldwin faz uma crítica afiada ao racismo e à sua geração. Ele tem humor, raiva, mas também é poético. Algumas vezes ele grita, outras ele sussurra. É uma escrita plenamente viva. Ele é uma grande influência para mim.

Coisas Que Não Quero Saber (volume 1)

Autora: Deborah Levy

Trad.: Rogério Bettoni e Celina Portocarrero

Editora: Autêntica Contemporânea

104 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

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O Custo de Vida (volume 2)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

120 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

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Bens Imobiliários (volume 3)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

192 págs., R$ 59,80; R$ 41,90 o e-book

Uma Autobiografia Viva. A trilogia da escritora sul-africana Deborah Levy, composta por Coisas Que Não Quero Saber, O Custo de Vida e Bens Imobiliários, desafia as noções tradicionais de gêneros literários. A inovação de Levy, responsável pela alcunha de seus livros, é explicada pela autora, que afirma não se entusiasmar com uma literatura empoeirada, “que vive apenas olhando para trás”.

Levy prefere captar momentos de mudança, perto dos seus 50 anos, período da vida de uma mulher que não sente ser normalmente retratado na literatura. A obra chega em bom momento ao Brasil, pela Autêntica Contemporânea, uma vez que o interesse pela escrita autobiográfica está em alta. Isso se deve, em parte, ao Prêmio Nobel de Annie Ernaux, escritora que também faz da própria vida matéria literária.

A sul-africana Deborah Levy tem sua Trilogia lançada no País Foto: Editora Autêntica

Em sua trilogia, Deborah Levy narra da infância na África do Sul, dividida pelo apartheid, a uma residência literária na França, passando por fatos dolorosos como o fim do casamento e a morte da mãe. A autora define o seu projeto literário como a procura de uma vida plena para as suas personagens. Ao fim da trilogia, resta a sensação de que essa mesma busca norteia a sua trajetória. Sobre a Autobiografia Viva, Déborah Levy respondeu – por chamada de vídeo – às perguntas do Aliás.

Como surgiu a ideia de escrever a sua ‘Autobiografia Viva? '

O primeiro livro, Coisas Que Não Quero Saber, não começou como uma autobiografia viva. Não havia como simplesmente eu me sentar e escrever isso. Quando comecei a escrever o livro, estava querendo mudar a minha vida. Era um momento específico da minha escrita, em que eu tentava criar uma mistura de filosofia, narrativa de viagem, memórias e política. Resolvi chamar o resultado de Autobiografia Viva. Não gosto de uma escrita empoeirada, que vive apenas olhando para trás, então eu criei isso. Há um senso comum de que, quando você escreve, sabe exatamente o que está fazendo. Mas, às vezes, você apenas começa a escrever sobre algo que te interessa, como alguma coisa que viu na rua. Eu leio muito os meus antigos diários. A escrita é como os livros que mantemos conosco, mas ainda não lemos.

O primeiro livro (’Coisas Que Não Quero Saber’) é uma resposta ao ensaio de George Orwell ‘Por Que Escrevo?’ Como o ensaio marcou sua trilogia?

O pequeno ensaio de George Orwell esteve em minha estante desde sempre e eu postergava a leitura. A linguagem de Orwell causa um estranhamento, com todo o seu entusiasmo. Gosto de propósitos políticos e pensei que esse era um bom ponto de partida. Algo muito pessoal começou a sair na tela de meu computador. Fiquei chocada e pensei “O que é isso que estou escrevendo?”. Comecei a entender que eu estava interessada nesse escrito, o que é muito importante. Se o escritor não está interessado, o leitor também não ficará interessado. Eu estava fazendo algo novo para mim e estava encontrando uma nova voz, escrevendo em primeira pessoa. Escrevi sobre uma parte singular da minha vida, com uma temática de impulsos históricos, que me levou de volta à minha infância na África do Sul. O egoísmo me deu a oportunidade de rir com a Deborah de 15 anos, que escrevia apenas uma palavra e tentava trabalhar em algo, nos cafés de Londres. Coloquei tudo isso no papel.

A autobiografia é um gênero que tem conquistado destaque, principalmente com o Nobel de Annie Ernaux. Para você, quais são os maiores desafios da escrita autobiográfica?

O maior desafio da autobiografia é conjugar outras matérias com a própria vida, escrever sobre outras pessoas e sobre o mundo. É uma forma que, enquanto você trabalha, percebe que pode fazer isso de uma maneira realista, poética, política e divertida. Quando Ernaux começou a escrever sobre a vida das mulheres da classe trabalhadora francesa, isso não era considerado uma temática importante. Perguntavam: “Por que as experiências dela têm algum valor?”. Isso é matéria política. Por que algumas ideias têm valor e outras não? Ou ainda, por que algumas vidas têm mais valor do que outras? Annie Ernaux foi muito corajosa por escrever os seus livros de maneira tão bela e bem direcionada. Fiquei feliz quando ela ganhou o Nobel. Meu coração se encheu de alegria.

Annie Ernaux, Nobel de Literatura de 2022 Foto: Francesca Mantovani/Editions Gallimard

A sua ficção tem um forte teor feminista. O que na sua experiência como mulher escritora mais está presente nos seus livros?

Meus livros são sobre como os meus personagens – todos eles – olham para o que eles querem e para o que os impede de ter o que querem. São sobre esses questionamentos. Se você se perguntar essas coisas, terá boas anotações. Acho que a ficção é sobre fazer perguntas interessantes, expandi-las e aprofundá-las. Permito que as minhas personagens femininas vivam plenamente em todos os aspectos da vida. Possibilito, como escritora, que elas vivam todas as dimensões de seu poder, de sua tristeza, de sua inteligência e também de sua estupidez. Ninguém é completamente inteligente, estúpido, poderoso ou vulnerável. Vamos apenas deixar essas personagens viverem do modo como vivemos, sem a necessidade de fazê-las sair e conquistar tudo, de sempre terem pensamentos brilhantes ou problemas para chorar. Nós temos todas essas coisas juntas, elas coexistem. Isso é uma vida. Só quero personagens femininas que vivam plenamente em meus livros, assim como todos os meus personagens. É muito tentador criar um personagem perfeito quando se trata de algum grupo minoritário. Queremos que eles prevaleçam, que vençam. Não queremos vê-los derrotados. Por isso temos de ter vidas plenamente vividas. Temos de ter o ser humano como um todo; afinal, nós coexistimos em tantas dimensões. Meu projeto literário são vidas plenas, com inteligência e estupidez, beleza, força e o oposto disso tudo. Parece fácil. Mas não é, quando você escreve.

O deslocamento entre vários lugares marca a trilogia. Como você enxerga essa maior integração global para a literatura e para o escritor de hoje?

O ponto de escrever, para mim, é alcançar o mundo com a minha escrita. Não quero apenas falar para o povo da minha própria ilha. Sinto que o trabalho do tradutor é inestimável. Eu não seria nada sem os meus tradutores. Eles me deram uma nova língua para dialogar. Os meus livros são amplamente traduzidos para cerca de 20 idiomas. Este é o verdadeiro prazer da minha vida. Viajar para encontrar os leitores e ver a tradução do meu trabalho ao redor do mundo me deixa feliz. Ver o sol, os animais, novas comidas, novas receitas. Essas coisas são muito importantes para mim.

O tempo de publicação entre os três livros tem relação com uma reconsideração dos momentos da sua vida retratados na ‘Autobiografia Viva’?

Quando terminei Coisas Que Não Quero Saber, tinha estabelecido a voz do livro. O mais importante para mim é a voz da narradora, que é muito parecida comigo, mas não exatamente eu, porque escrever é um artifício. Nós criamos a estrutura e a atmosfera. Escrevi o segundo livro, O Custo de Vida, quando o meu casamento acabou. Todos os livros giram em torno de momentos de mudança. Estava entre os meus 40 e tantos e os 60 anos. Essas partes da vida de uma mulher não são retratadas normalmente na literatura. São partes turbulentas e muito interessantes de uma vida. Pareceu político encontrar humor, alegria e amizades dentro disso.

Quais são as maiores influências da sua escrita? De que modo os autores citados ao longo dos três livros colaboram para o seu projeto literário?

Eu admiro os livros de James Baldwin. São romances e ensaios em que ele realmente fala com o olho, em primeira pessoa, mas em que o “nós” consegue coexistir. Baldwin faz uma crítica afiada ao racismo e à sua geração. Ele tem humor, raiva, mas também é poético. Algumas vezes ele grita, outras ele sussurra. É uma escrita plenamente viva. Ele é uma grande influência para mim.

Coisas Que Não Quero Saber (volume 1)

Autora: Deborah Levy

Trad.: Rogério Bettoni e Celina Portocarrero

Editora: Autêntica Contemporânea

104 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

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O Custo de Vida (volume 2)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

120 págs., R$ 54,90; R$ 38,90 o e-book

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Bens Imobiliários (volume 3)

Autora: Deborah Levy

Tradução: Adriana Lisboa

Editora: Autêntica Contemporânea

192 págs., R$ 59,80; R$ 41,90 o e-book

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