No posfácio O Bicentenário de um Clássico: Poesia do Maravilhoso em Versão Original, o professor de Teoria Literária da FFLCH-USP Marcus Mazzari assim discorre sobre os Contos Maravilhosos, Infantis e Domésticos, 1812-1815, que os irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859) compilaram a partir da coletividade popular: “Quando os jovens irmãos Jacob e Wilhelm Grimm trazem a público, em dezembro de 1812, um volume com narrativas recolhidas na tradição oral, não podiam imaginar que estava nascendo uma das obras mais significativas não só da literatura, mas também de toda a cultura alemã. (...) Presentes em praticamente todos os países do mundo, as narrativas dos irmãos Grimm ocupam hoje o primeiro lugar entre os livros alemães mais traduzidos, à frente do tão difundido Manifesto Comunista, de Marx e Engels, e sua importância para a constituição da identidade cultural alemã permite uma comparação até mesmo com a Bíblia, de Lutero, ou com o Fausto, de Goethe.”
As histórias de Chapeuzinho Vermelho, Branca de Neve, A Bela Adormecida, Rapunzel, O Gato de Botas, A Gata Borralheira e Barba-azul já se tornaram parte prévia do baú de nossa memória. No ensaio Sobre a Essência do Conto Maravilhoso (1819), Wilhelm Grimm parte do rico imaginário das crianças, em meio ao qual despontam animais dotados de aptidões humanas, fadas, ogros e duendes, para alcançar o âmbito doméstico e oral que propicia a transmissão das histórias de geração em geração: “Contos maravilhosos infantis são narrados para que em sua luz suave e pura os primeiros pensamentos e forças do coração despertem; como sua singela poesia e sua íntima verdade podem alegrar e instruir todo e qualquer ser humano, os contos permanecem e são transmitidos adiante no círculo familiar, passando a ser chamados de contos maravilhosos domésticos.”
Assim como ocorre com as narrativas do dinamarquês Hans Christian Andersen (1805-1875) – de quem a Editora 34 lançou O Patinho Feio e Outras Estórias –, as histórias coletadas pelos irmãos Grimm voltam-se, primeira e supostamente, para as crianças. Entretanto, a leitura atenta das narrativas revela uma sofisticadíssima compreensão da condição humana em seus múltiplos e contraditórios conflitos constitutivos, que envolvem egoísmo e altruísmo, fraternidade e disputas encarniçadas até mesmo entre pais e filhos. Autores com forte verve psicológica como o russo Fiodor Dostoievski, o alemão Friedrich Nietzsche e o brasileiro Joaquim Maria Machado de Assis entreveriam profundos laivos das tensões que transpassam suas personagens e análises ao longo dos contos trazidos a lume pelos irmãos Grimm.
Como as histórias citadas no início deste texto são de amplo conhecimento do público, vale a pena mencionar duas narrativas que desvelam a pujança social, psicológica e até mesmo transcendental dos contos. São elas: O Alfaiate que Ficou Rico Rapidamente e Madrinha Morte.
Em O Alfaiate que Ficou Rico Rapidamente, um alfaiate ardiloso vai lançando mão de todos os percalços que presencia (isto é, espiona) para, por meio de manobras tão maquiavélicas quanto extorsivas, angariar cada vez mais moedas de ouro. Tudo tem início quando o alfaiate descobre que a cunhada trai o irmão incauto com um religioso. A partir daí, o alfaiate transforma seu conhecimento em chantagem, de modo a provocar a ira da cunhada adúltera, dos vizinhos e do vilarejo como um todo – ninguém consegue entender (ou pior, ninguém consegue aceitar) o fato de que o alfaiate não só sai das arapucas que os invejosos lhe armam como consegue revertê-las a seu favor. (Após ler tal conto para o filho, é como se o pai perguntasse à criança com a ambiguidade em riste: “Já fez sua boa ação hoje, meu filho? Que bom... Agora você pode viver de verdade.”)
O parágrafo inicial de Madrinha Morte, por sua vez, como que subverte o Livro de Jó. No livro bíblico, Deus e Satanás, em um diálogo tão tenso quanto potencialmente profano, pretendem disputar a alma e a fé de Jó, o servo mais fiel do Criador. No conto apresentado pelos irmãos Grimm, um pai pauperizado e em desespero nega a Deus o batismo de seu filho com o seguinte anátema: “Eu não o quero como padrinho, você dá tudo aos ricos e deixa os pobres passando fome.” Quando a Morte, uma das metamorfoses do Diabo, se oferece como madrinha, o pai consente e sentencia com uma sabedoria tão apóstata quanto niilista: “Isso me agrada, pois você não faz distinção, leva embora tanto os ricos quanto os pobres.” *FLÁVIO RICARDO VASSOLER É AUTOR DE ‘DOSTOIEVSKI E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO CONTEÚDO’ (EDITORA HEDRA