Denis Diderot (1713-1784) foi o verdadeiro autor póstumo. O mais versátil dos pensadores do Iluminismo francês, capaz de redigir tratados sobre fisiologia humana e a arte do romance filosófico, além de empreender o maior feito editorial do século XVIII – a famosa Enciclopédia, concebida com o colega D´Alambert –, ele também deixou uma série de escritos que, por serem ousados até mesmo para a sua época, sedenta de materialismo e hedonismo, foram guardados (ou divulgados de forma restrita) para que fossem lidos somente em um futuro muito distante. Este é o eixo temático da biografia ensaística de Andrew S. Curran, Diderot e A Arte de Pensar Livremente. Professor na Universidade Wesleyan e colaborador de diversas publicações de grande circulação, ele realizou uma pesquisa minuciosa sobre o autor de Jacques, o Fatalista e, com um estilo agradável e fluído, leva-nos a um mundo onde o mote favorito era a conversação entre pessoas extremamente inteligentes, criadoras de obras literárias e filosóficas que mudaram o curso da história europeia.
No meio desse ambiente estimulante, Diderot se destaca por ser aquele que incorporou, tanto na vida como na obra, a verdadeira preocupação filosófica que orientou os escritos iluministas: como lidar com o caos intrínseco à nossa existência? Em um cosmos onde a ordem transcendente foi substituída por uma razão humana que consegue apreender, por meio da linguagem, as sutilezas do nosso conhecimento, o pensamento só tem duas opções: ou render-se à desordem que nos governa ou criar uma nova ordem em que podemos suportar a nossa finitude. Diderot fez a segunda escolha, mas não de um modo sistemático, até porque a sua própria biografia não permitiu isso. Filho de uma família razoavelmente próspera do interior francês, ele iria seguir a carreira clerical se não fosse pela perda progressiva do sentimento religioso. Quando decidiu embarcar no mundo das letras, ainda se considerava um “deísta”. Pouco a pouco, tornou-se um “materialista”, na falta de uma palavra melhor – e, apesar de colaborar com as reflexões atéias de um Barão D´Holbach, nunca permitiu ser catalogado nessa denominação estreita. No início da sua carreira literária, Diderot queria provocar uma Paris petrificada pela Igreja Católica que não tinha uma resposta existencial adequada à grande crise civilizacional surgida no final da Idade Média. Provocar a descrença dos seus leitores era mais um artifício retórico do que propriamente uma crença arraigada no seu íntimo. Ocorre que foi esse tipo de boutade – demonstrada em sua primeira grande polêmica, a Carta aos cegos – que o levou à prisão de Vincennes, em 1749. Apesar dos seus pares terem trabalhado pela sua libertação quase imediata, ainda assim os quatro meses no cárcere levaram Diderot a concluir que talvez ele teria de trabalhar em escritos mais subversivos para desenvolver plenamente o seu pensamento sobre o mundo.
Em paralelo, ele editava a Enciclopédia, que organizava uma nova maneira de perceber como as coisas eram ordenadas. Nesses dezessete tomos de verbetes que demoraram mais de vinte e cinco anos para serem completados (somados a doze volumes só de ilustrações), Diderot moldou nada mais, nada menos a forma como o nosso conhecimento seria estruturado na pedagogia contemporânea. Não é pouca coisa. Além disso, escreveu críticas de arte, ensaios sobre o amor e a sexualidade, e, como se não bastasse, ainda teve tempo para deixar quatro bombas-relógio literárias que explodiriam o modo como entendemos o romance moderno: O Sobrinho de Rameau, O Sonho de D´Alambert, A Religiosa e Jacques, O Fatalista – todos concebidos durante vinte anos e que só vieram à luz mais de um século após a morte do seu autor. Esses escritos causam polêmica até hoje, mesmo entre os maiores defensores do Iluminismo, justamente por sua capacidade de constante dúvida que deixa o leitor atônito sobre o que pensa o próprio Diderot. Daí o motivo de terem sido redigidos em um segredo quase absoluto. Contudo, há um adendo que torna a biografia de Andrew Curran leitura obrigatória. O pesquisador americano ressalta que o pensador francês usou do gênero romance para se questionar (e nos questionar) sobre todas as consequências, cômicas, trágicas e, sobretudo, filosóficas, do que aconteceria conosco se vivêssemos em um mundo onde Deus simplesmente seria uma ausência a ser articulada por uma linguagem extremamente precária.
Este é, talvez, o verdadeiro sentido da expressão “pensar livremente” que está no título do livro de Curran. Obcecado pelo problema da ordem e da desordem, desde o menor detalhe ao grande desígnio do universo, o gigante do Iluminismo nos revela, inadvertidamente, a “cadeia secreta” (para citar o livro de um dos maiores estudiosos do Iluminismo no Brasil, Franklin de Mattos) que nos aprisiona no transcorrer da nossa luta pela liberdade. Só por esclarecer esses paradoxos, a vitória de Diderot ao dominar a conversação póstuma do nosso futuro é um indício de que, muitas vezes, o silêncio é a única estratégia que resta a quem se dedica entender o mundo por meio deste recurso tão frágil chamado “palavra”.
SERVIÇO
Diderot e A Arte de Pensar Livremente
Andrew S. Curran
Todavia
388 páginas
R$ 84,90