Damon Galgut: “A promessa de uma nova África do Sul foi tristemente abandonada”


Em entrevista ao Estadão, escritor sul-africano e vencedor do Booker Prize 2021 fala de sua obra e das transformações na sociedade

Por Faustino Rodrigues
Atualização:

Em agosto, A Promessa, de Damon Galgut, chegou às livrarias do Brasil. A obra, que deu ao autor sul-africano o Booker Prize 2021, conta a história dos Swart, uma família de brancos na África do Sul. A saga se inicia na década do 1980, no momento em que o país caminha para o fim do apartheid. Em seu leito de morte, Rachel exige que o seu marido lhe faça uma promessa que, a partir de então, tecerá o fio da narrativa, chegando até o ano de 2018 e acompanhando outros três funerais ao longo das décadas.

Entre os Swart há os cristãos reformados e judeus. O artifício criado por Galgut permite a contextualização da promessa, conferindo-lhe uma dimensão outra, para além daquela de uma simples fala, do dito – a palavra juramento, remetendo a juízo, sequer é mencionada pelo autor, que opta pelo tom quase religioso evidente no ato de prometer. O peso de sua não realização se faz presente ao longo da trajetória de seus integrantes, independentemente do caminho seguido em suas vidas.

Como metáfora, o livro compõe o universo sul-africano de uma sociedade que, em suas últimas décadas, viveu a esperança de dias melhores. Ao permitir, no papel, direitos iguais para brancos e negros, tornou-se uma sociedade promissora, abrindo-se para o mundo como uma terra repleta de compromissos com a igualdade.

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A Guarda de Honra da África do Sul em ocasião da celebração de 20 anos do fim do apartheid Foto: AP

O latifúndio da fazenda dos Swart, nos arredores de Pretória, é o cenário de todas as transformações sofridas e promessas não cumpridas. Embora corroído com o tempo, é um microcosmo da África do Sul. Tal promessa consistia basicamente em permitir que Salome, a empregada negra da família, que os serve há décadas, vivendo em um casebre nas terras dos Swart, tivesse direito de propriedade sobre a parte que lhe tocava. No apartheid, isso era proibido e se impunha como o grande obstáculo para o cumprimento do prometido. Todavia, com o fim oficial do regime, em 1994, os empecilhos institucionais supostamente não mais existiriam. Portanto, em tese, nada impediria a herança de Salome.

O drama todo, adquirindo contornos de tragédia, circunscreve os personagens em seus respectivos cotidianos. Galgut tenta demonstrar como elementos aparentemente banais fundamentam uma forma de ser de cada um deles, a ponto de servir como justificativa simples para o não cumprimento da promessa. Por trás disso, está o questionamento sobre como conciliar os dramas pessoais com uma capacidade de atender ao outro. Algo nada irrelevante em uma sociedade tradicionalmente segregacionista.

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Novamente, uma metáfora muito bem colocada em seu texto. Salome, a empregada negra, praticamente não fala durante todo o livro. Mesmo assim, ocupa um lugar central. São pequenas pistas que o autor dá dessa configuração assumida pela sociedade sul-africana, como, por exemplo, a resposta do motorista da família ao ser questionado por alguém sobre o que acha de seus patrões, se eles seriam bons patrões: “Eu não estou pensando neles, senhor. Eu só estou fazendo, não pensando”.

O escritor Damon Galgut, que recebeu o prêmio Booker Prize 2021 por seu romance 'A PRomessa' Foto: TOM NICHOLSON / REUTERS

Definitivamente, os brancos impuseram essa condição aos negros, de “apenas fazer”, sem pensar. Como desenvolver alteridade e a capacidade de ver o outro? No enredo isso só se torna possível ante o isolamento de toda uma vida sustentada segundo as premissas do apartheid. Tal personificação se dá com Amor, a caçula dos Swart, a verdadeira cobradora da promessa, que se fecha a todo o restante da família, trabalhando como enfermeira em hospitais. Só retorna à sua antiga casa para enterrar alguém que sustentava esse passado.

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Diante desse contexto, o cumprimento da promessa apenas se torna possível na medida em que todo o passado é praticamente destruído. E, neste caso, tem-se um paradoxo, pois trata-se de uma promessa construída nesse passado, em decorrência desse passado, mas que depende de sua destruição para ser efetivada. O livro reporta metaforicamente a uma espécie de maldição, ao mesmo tempo em que sinaliza para as dificuldades de resolução de inúmeros dos conflitos decorrentes da condição à qual se encontrava uma sociedade tão segregacionista.

Da maneira como está posto, diante de um narrador onipresente, capaz de transpor os pensamentos de seus personagens, fica evidente a angústia da parte dos brancos com o fim do apartheid. Isso ajuda a explicar o tom de ironia na narrativa, sempre presente, envolvendo o leitor, colocando-o como comprometido com o livro e com a história da África do Sul. Enfim, para Galgut, a despeito de todas as conquistas, a promissora sociedade não veio.

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Um dos maiores escritores do Brasil hoje, Luiz Ruffato disse que “literatura é compromisso”. Pensando na África do Sul, o que o senhor diria sobre isso?

Não sei por que o compromisso tem algo a ver com qualquer nacionalidade em particular. A literatura certamente é um compromisso, no sentido de que você tem que abrir mão de muita vida dita normal para fazer acontecer. E exige muito mais de você do que outras vocações. Se você quer dizer compromisso no sentido político, não é assim que vejo os livros e a escrita.

De seu romance ‘O Bom Médico’ até agora, o que mudou no seu trabalho?

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Espero que cada livro seja diferente do anterior. É importante para mim que minha voz continue evoluindo e se transformando. Em um nível superficial, espero que seja óbvio que O Bom Médico é um livro com um narrador questionável, e seu foco é intensamente estreito. Por sua vez, A Promessa é polifônico, com aparentemente infinitos fios de consciência se alimentando de vários personagens.

Olhando retrospectivamente o seu trabalho, podemos dizer que o senhor está convicto de que a literatura deve causar um desconforto?

Isso é certamente o que eu aspiro em minha própria escrita. Acredito que os livros devem imitar e ecoar as inconsistências e limitações do mundo real, tanto quanto possível, e deixar os leitores com a sensação de que eles devem encontrar soluções para esses problemas, em vez de buscar respostas do escritor.

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Garoto observa um mural com desenho do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela em Johannesburgo, na África do Sul Foto: Dylan Martinez/Reuters

Qual efeito um tipo de narrador polifônico, como o senhor mesmo diz, pode conseguir ao se reportar constantemente ao leitor, tal como vemos em ‘A Promessa’?

Todas as histórias são contadas por alguém para alguém. Não há narrativa neutra. Desejo conscientizar os leitores do fato de que estão ouvindo uma história que uma figura desconhecida, com motivos desconhecidos (ou mutáveis), está contando a eles. A maioria dos romances tenta disfarçar esse fato.

O que há da linguagem do teatro em A Promessa?

O livro segue a estrutura de um drama de quatro atos. Além disso, funciona da mesma forma que uma peça de teatro, com a ação se desenrolando no tempo presente, e nenhuma explicação do que acontece entre os vários atos. Espero que a experiência de lê-lo seja como assistir e ouvir uma peça de teatro ao vivo se desenrolar diante de você.

Tenho a impressão de que ‘A Promessa’ não é um livro especificamente sobre a questão racial, mas sobre uma sociedade segregacionista. Isso mesmo?

Uma sociedade segregada por motivos raciais é uma sociedade onde a “questão” da raça é central para tudo. Para mim, porém, o livro não é sobre política – ou melhor, política é apenas um fio de uma tapeçaria muito maior. O tempo e as mudanças que ele traz para a vida dos indivíduos, assim como para a própria vida da nação: esse é o assunto que me interessa.

Como metáfora, que promessa não foi cumprida no mundo contemporâneo?

Todos os tipos de promessas não são cumpridas. Na África do Sul, a promessa de uma nova sociedade e um novo futuro foi tristemente abandonada. Mas acho que cada personagem, como muitos de nós, pode sentir que sua vida falhou em corresponder ao que inicialmente parecia oferecer.

A certa altura, talvez referindo-se a textos bíblicos, parece que a promessa se torna uma maldição. Nossa sociedade está amaldiçoada?

No mundo que o livro cria, a família certamente parece ter sido amaldiçoada, devido ao fracasso em manter sua palavra. Como aprendemos com os gregos, se você transgredir as leis dos deuses, as Fúrias se vingarão.

No Booker Prize, o que o senhor acha de ter sido comparado a William Faulkner?

Sou um grande admirador de Faulkner, de certos livros em particular. Visitei sua casa no Mississippi em duas ocasiões. Seu espírito pairava sobre a escrita. Estou feliz com a comparação.

Que mensagem gostaria de enviar aos leitores brasileiros?

Eu não envio mensagens. Mas ficaria feliz se alguns dos temas do meu próprio trabalho e do meu país tivessem ressonância no Brasil. Imagino que haja algum entendimento mútuo, já que tanto a África do Sul quanto o Brasil são sociedades pós-coloniais tentando lidar com os detritos confusos da história.

Em agosto, A Promessa, de Damon Galgut, chegou às livrarias do Brasil. A obra, que deu ao autor sul-africano o Booker Prize 2021, conta a história dos Swart, uma família de brancos na África do Sul. A saga se inicia na década do 1980, no momento em que o país caminha para o fim do apartheid. Em seu leito de morte, Rachel exige que o seu marido lhe faça uma promessa que, a partir de então, tecerá o fio da narrativa, chegando até o ano de 2018 e acompanhando outros três funerais ao longo das décadas.

Entre os Swart há os cristãos reformados e judeus. O artifício criado por Galgut permite a contextualização da promessa, conferindo-lhe uma dimensão outra, para além daquela de uma simples fala, do dito – a palavra juramento, remetendo a juízo, sequer é mencionada pelo autor, que opta pelo tom quase religioso evidente no ato de prometer. O peso de sua não realização se faz presente ao longo da trajetória de seus integrantes, independentemente do caminho seguido em suas vidas.

Como metáfora, o livro compõe o universo sul-africano de uma sociedade que, em suas últimas décadas, viveu a esperança de dias melhores. Ao permitir, no papel, direitos iguais para brancos e negros, tornou-se uma sociedade promissora, abrindo-se para o mundo como uma terra repleta de compromissos com a igualdade.

A Guarda de Honra da África do Sul em ocasião da celebração de 20 anos do fim do apartheid Foto: AP

O latifúndio da fazenda dos Swart, nos arredores de Pretória, é o cenário de todas as transformações sofridas e promessas não cumpridas. Embora corroído com o tempo, é um microcosmo da África do Sul. Tal promessa consistia basicamente em permitir que Salome, a empregada negra da família, que os serve há décadas, vivendo em um casebre nas terras dos Swart, tivesse direito de propriedade sobre a parte que lhe tocava. No apartheid, isso era proibido e se impunha como o grande obstáculo para o cumprimento do prometido. Todavia, com o fim oficial do regime, em 1994, os empecilhos institucionais supostamente não mais existiriam. Portanto, em tese, nada impediria a herança de Salome.

O drama todo, adquirindo contornos de tragédia, circunscreve os personagens em seus respectivos cotidianos. Galgut tenta demonstrar como elementos aparentemente banais fundamentam uma forma de ser de cada um deles, a ponto de servir como justificativa simples para o não cumprimento da promessa. Por trás disso, está o questionamento sobre como conciliar os dramas pessoais com uma capacidade de atender ao outro. Algo nada irrelevante em uma sociedade tradicionalmente segregacionista.

Novamente, uma metáfora muito bem colocada em seu texto. Salome, a empregada negra, praticamente não fala durante todo o livro. Mesmo assim, ocupa um lugar central. São pequenas pistas que o autor dá dessa configuração assumida pela sociedade sul-africana, como, por exemplo, a resposta do motorista da família ao ser questionado por alguém sobre o que acha de seus patrões, se eles seriam bons patrões: “Eu não estou pensando neles, senhor. Eu só estou fazendo, não pensando”.

O escritor Damon Galgut, que recebeu o prêmio Booker Prize 2021 por seu romance 'A PRomessa' Foto: TOM NICHOLSON / REUTERS

Definitivamente, os brancos impuseram essa condição aos negros, de “apenas fazer”, sem pensar. Como desenvolver alteridade e a capacidade de ver o outro? No enredo isso só se torna possível ante o isolamento de toda uma vida sustentada segundo as premissas do apartheid. Tal personificação se dá com Amor, a caçula dos Swart, a verdadeira cobradora da promessa, que se fecha a todo o restante da família, trabalhando como enfermeira em hospitais. Só retorna à sua antiga casa para enterrar alguém que sustentava esse passado.

Diante desse contexto, o cumprimento da promessa apenas se torna possível na medida em que todo o passado é praticamente destruído. E, neste caso, tem-se um paradoxo, pois trata-se de uma promessa construída nesse passado, em decorrência desse passado, mas que depende de sua destruição para ser efetivada. O livro reporta metaforicamente a uma espécie de maldição, ao mesmo tempo em que sinaliza para as dificuldades de resolução de inúmeros dos conflitos decorrentes da condição à qual se encontrava uma sociedade tão segregacionista.

Da maneira como está posto, diante de um narrador onipresente, capaz de transpor os pensamentos de seus personagens, fica evidente a angústia da parte dos brancos com o fim do apartheid. Isso ajuda a explicar o tom de ironia na narrativa, sempre presente, envolvendo o leitor, colocando-o como comprometido com o livro e com a história da África do Sul. Enfim, para Galgut, a despeito de todas as conquistas, a promissora sociedade não veio.

Um dos maiores escritores do Brasil hoje, Luiz Ruffato disse que “literatura é compromisso”. Pensando na África do Sul, o que o senhor diria sobre isso?

Não sei por que o compromisso tem algo a ver com qualquer nacionalidade em particular. A literatura certamente é um compromisso, no sentido de que você tem que abrir mão de muita vida dita normal para fazer acontecer. E exige muito mais de você do que outras vocações. Se você quer dizer compromisso no sentido político, não é assim que vejo os livros e a escrita.

De seu romance ‘O Bom Médico’ até agora, o que mudou no seu trabalho?

Espero que cada livro seja diferente do anterior. É importante para mim que minha voz continue evoluindo e se transformando. Em um nível superficial, espero que seja óbvio que O Bom Médico é um livro com um narrador questionável, e seu foco é intensamente estreito. Por sua vez, A Promessa é polifônico, com aparentemente infinitos fios de consciência se alimentando de vários personagens.

Olhando retrospectivamente o seu trabalho, podemos dizer que o senhor está convicto de que a literatura deve causar um desconforto?

Isso é certamente o que eu aspiro em minha própria escrita. Acredito que os livros devem imitar e ecoar as inconsistências e limitações do mundo real, tanto quanto possível, e deixar os leitores com a sensação de que eles devem encontrar soluções para esses problemas, em vez de buscar respostas do escritor.

Garoto observa um mural com desenho do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela em Johannesburgo, na África do Sul Foto: Dylan Martinez/Reuters

Qual efeito um tipo de narrador polifônico, como o senhor mesmo diz, pode conseguir ao se reportar constantemente ao leitor, tal como vemos em ‘A Promessa’?

Todas as histórias são contadas por alguém para alguém. Não há narrativa neutra. Desejo conscientizar os leitores do fato de que estão ouvindo uma história que uma figura desconhecida, com motivos desconhecidos (ou mutáveis), está contando a eles. A maioria dos romances tenta disfarçar esse fato.

O que há da linguagem do teatro em A Promessa?

O livro segue a estrutura de um drama de quatro atos. Além disso, funciona da mesma forma que uma peça de teatro, com a ação se desenrolando no tempo presente, e nenhuma explicação do que acontece entre os vários atos. Espero que a experiência de lê-lo seja como assistir e ouvir uma peça de teatro ao vivo se desenrolar diante de você.

Tenho a impressão de que ‘A Promessa’ não é um livro especificamente sobre a questão racial, mas sobre uma sociedade segregacionista. Isso mesmo?

Uma sociedade segregada por motivos raciais é uma sociedade onde a “questão” da raça é central para tudo. Para mim, porém, o livro não é sobre política – ou melhor, política é apenas um fio de uma tapeçaria muito maior. O tempo e as mudanças que ele traz para a vida dos indivíduos, assim como para a própria vida da nação: esse é o assunto que me interessa.

Como metáfora, que promessa não foi cumprida no mundo contemporâneo?

Todos os tipos de promessas não são cumpridas. Na África do Sul, a promessa de uma nova sociedade e um novo futuro foi tristemente abandonada. Mas acho que cada personagem, como muitos de nós, pode sentir que sua vida falhou em corresponder ao que inicialmente parecia oferecer.

A certa altura, talvez referindo-se a textos bíblicos, parece que a promessa se torna uma maldição. Nossa sociedade está amaldiçoada?

No mundo que o livro cria, a família certamente parece ter sido amaldiçoada, devido ao fracasso em manter sua palavra. Como aprendemos com os gregos, se você transgredir as leis dos deuses, as Fúrias se vingarão.

No Booker Prize, o que o senhor acha de ter sido comparado a William Faulkner?

Sou um grande admirador de Faulkner, de certos livros em particular. Visitei sua casa no Mississippi em duas ocasiões. Seu espírito pairava sobre a escrita. Estou feliz com a comparação.

Que mensagem gostaria de enviar aos leitores brasileiros?

Eu não envio mensagens. Mas ficaria feliz se alguns dos temas do meu próprio trabalho e do meu país tivessem ressonância no Brasil. Imagino que haja algum entendimento mútuo, já que tanto a África do Sul quanto o Brasil são sociedades pós-coloniais tentando lidar com os detritos confusos da história.

Em agosto, A Promessa, de Damon Galgut, chegou às livrarias do Brasil. A obra, que deu ao autor sul-africano o Booker Prize 2021, conta a história dos Swart, uma família de brancos na África do Sul. A saga se inicia na década do 1980, no momento em que o país caminha para o fim do apartheid. Em seu leito de morte, Rachel exige que o seu marido lhe faça uma promessa que, a partir de então, tecerá o fio da narrativa, chegando até o ano de 2018 e acompanhando outros três funerais ao longo das décadas.

Entre os Swart há os cristãos reformados e judeus. O artifício criado por Galgut permite a contextualização da promessa, conferindo-lhe uma dimensão outra, para além daquela de uma simples fala, do dito – a palavra juramento, remetendo a juízo, sequer é mencionada pelo autor, que opta pelo tom quase religioso evidente no ato de prometer. O peso de sua não realização se faz presente ao longo da trajetória de seus integrantes, independentemente do caminho seguido em suas vidas.

Como metáfora, o livro compõe o universo sul-africano de uma sociedade que, em suas últimas décadas, viveu a esperança de dias melhores. Ao permitir, no papel, direitos iguais para brancos e negros, tornou-se uma sociedade promissora, abrindo-se para o mundo como uma terra repleta de compromissos com a igualdade.

A Guarda de Honra da África do Sul em ocasião da celebração de 20 anos do fim do apartheid Foto: AP

O latifúndio da fazenda dos Swart, nos arredores de Pretória, é o cenário de todas as transformações sofridas e promessas não cumpridas. Embora corroído com o tempo, é um microcosmo da África do Sul. Tal promessa consistia basicamente em permitir que Salome, a empregada negra da família, que os serve há décadas, vivendo em um casebre nas terras dos Swart, tivesse direito de propriedade sobre a parte que lhe tocava. No apartheid, isso era proibido e se impunha como o grande obstáculo para o cumprimento do prometido. Todavia, com o fim oficial do regime, em 1994, os empecilhos institucionais supostamente não mais existiriam. Portanto, em tese, nada impediria a herança de Salome.

O drama todo, adquirindo contornos de tragédia, circunscreve os personagens em seus respectivos cotidianos. Galgut tenta demonstrar como elementos aparentemente banais fundamentam uma forma de ser de cada um deles, a ponto de servir como justificativa simples para o não cumprimento da promessa. Por trás disso, está o questionamento sobre como conciliar os dramas pessoais com uma capacidade de atender ao outro. Algo nada irrelevante em uma sociedade tradicionalmente segregacionista.

Novamente, uma metáfora muito bem colocada em seu texto. Salome, a empregada negra, praticamente não fala durante todo o livro. Mesmo assim, ocupa um lugar central. São pequenas pistas que o autor dá dessa configuração assumida pela sociedade sul-africana, como, por exemplo, a resposta do motorista da família ao ser questionado por alguém sobre o que acha de seus patrões, se eles seriam bons patrões: “Eu não estou pensando neles, senhor. Eu só estou fazendo, não pensando”.

O escritor Damon Galgut, que recebeu o prêmio Booker Prize 2021 por seu romance 'A PRomessa' Foto: TOM NICHOLSON / REUTERS

Definitivamente, os brancos impuseram essa condição aos negros, de “apenas fazer”, sem pensar. Como desenvolver alteridade e a capacidade de ver o outro? No enredo isso só se torna possível ante o isolamento de toda uma vida sustentada segundo as premissas do apartheid. Tal personificação se dá com Amor, a caçula dos Swart, a verdadeira cobradora da promessa, que se fecha a todo o restante da família, trabalhando como enfermeira em hospitais. Só retorna à sua antiga casa para enterrar alguém que sustentava esse passado.

Diante desse contexto, o cumprimento da promessa apenas se torna possível na medida em que todo o passado é praticamente destruído. E, neste caso, tem-se um paradoxo, pois trata-se de uma promessa construída nesse passado, em decorrência desse passado, mas que depende de sua destruição para ser efetivada. O livro reporta metaforicamente a uma espécie de maldição, ao mesmo tempo em que sinaliza para as dificuldades de resolução de inúmeros dos conflitos decorrentes da condição à qual se encontrava uma sociedade tão segregacionista.

Da maneira como está posto, diante de um narrador onipresente, capaz de transpor os pensamentos de seus personagens, fica evidente a angústia da parte dos brancos com o fim do apartheid. Isso ajuda a explicar o tom de ironia na narrativa, sempre presente, envolvendo o leitor, colocando-o como comprometido com o livro e com a história da África do Sul. Enfim, para Galgut, a despeito de todas as conquistas, a promissora sociedade não veio.

Um dos maiores escritores do Brasil hoje, Luiz Ruffato disse que “literatura é compromisso”. Pensando na África do Sul, o que o senhor diria sobre isso?

Não sei por que o compromisso tem algo a ver com qualquer nacionalidade em particular. A literatura certamente é um compromisso, no sentido de que você tem que abrir mão de muita vida dita normal para fazer acontecer. E exige muito mais de você do que outras vocações. Se você quer dizer compromisso no sentido político, não é assim que vejo os livros e a escrita.

De seu romance ‘O Bom Médico’ até agora, o que mudou no seu trabalho?

Espero que cada livro seja diferente do anterior. É importante para mim que minha voz continue evoluindo e se transformando. Em um nível superficial, espero que seja óbvio que O Bom Médico é um livro com um narrador questionável, e seu foco é intensamente estreito. Por sua vez, A Promessa é polifônico, com aparentemente infinitos fios de consciência se alimentando de vários personagens.

Olhando retrospectivamente o seu trabalho, podemos dizer que o senhor está convicto de que a literatura deve causar um desconforto?

Isso é certamente o que eu aspiro em minha própria escrita. Acredito que os livros devem imitar e ecoar as inconsistências e limitações do mundo real, tanto quanto possível, e deixar os leitores com a sensação de que eles devem encontrar soluções para esses problemas, em vez de buscar respostas do escritor.

Garoto observa um mural com desenho do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela em Johannesburgo, na África do Sul Foto: Dylan Martinez/Reuters

Qual efeito um tipo de narrador polifônico, como o senhor mesmo diz, pode conseguir ao se reportar constantemente ao leitor, tal como vemos em ‘A Promessa’?

Todas as histórias são contadas por alguém para alguém. Não há narrativa neutra. Desejo conscientizar os leitores do fato de que estão ouvindo uma história que uma figura desconhecida, com motivos desconhecidos (ou mutáveis), está contando a eles. A maioria dos romances tenta disfarçar esse fato.

O que há da linguagem do teatro em A Promessa?

O livro segue a estrutura de um drama de quatro atos. Além disso, funciona da mesma forma que uma peça de teatro, com a ação se desenrolando no tempo presente, e nenhuma explicação do que acontece entre os vários atos. Espero que a experiência de lê-lo seja como assistir e ouvir uma peça de teatro ao vivo se desenrolar diante de você.

Tenho a impressão de que ‘A Promessa’ não é um livro especificamente sobre a questão racial, mas sobre uma sociedade segregacionista. Isso mesmo?

Uma sociedade segregada por motivos raciais é uma sociedade onde a “questão” da raça é central para tudo. Para mim, porém, o livro não é sobre política – ou melhor, política é apenas um fio de uma tapeçaria muito maior. O tempo e as mudanças que ele traz para a vida dos indivíduos, assim como para a própria vida da nação: esse é o assunto que me interessa.

Como metáfora, que promessa não foi cumprida no mundo contemporâneo?

Todos os tipos de promessas não são cumpridas. Na África do Sul, a promessa de uma nova sociedade e um novo futuro foi tristemente abandonada. Mas acho que cada personagem, como muitos de nós, pode sentir que sua vida falhou em corresponder ao que inicialmente parecia oferecer.

A certa altura, talvez referindo-se a textos bíblicos, parece que a promessa se torna uma maldição. Nossa sociedade está amaldiçoada?

No mundo que o livro cria, a família certamente parece ter sido amaldiçoada, devido ao fracasso em manter sua palavra. Como aprendemos com os gregos, se você transgredir as leis dos deuses, as Fúrias se vingarão.

No Booker Prize, o que o senhor acha de ter sido comparado a William Faulkner?

Sou um grande admirador de Faulkner, de certos livros em particular. Visitei sua casa no Mississippi em duas ocasiões. Seu espírito pairava sobre a escrita. Estou feliz com a comparação.

Que mensagem gostaria de enviar aos leitores brasileiros?

Eu não envio mensagens. Mas ficaria feliz se alguns dos temas do meu próprio trabalho e do meu país tivessem ressonância no Brasil. Imagino que haja algum entendimento mútuo, já que tanto a África do Sul quanto o Brasil são sociedades pós-coloniais tentando lidar com os detritos confusos da história.

Em agosto, A Promessa, de Damon Galgut, chegou às livrarias do Brasil. A obra, que deu ao autor sul-africano o Booker Prize 2021, conta a história dos Swart, uma família de brancos na África do Sul. A saga se inicia na década do 1980, no momento em que o país caminha para o fim do apartheid. Em seu leito de morte, Rachel exige que o seu marido lhe faça uma promessa que, a partir de então, tecerá o fio da narrativa, chegando até o ano de 2018 e acompanhando outros três funerais ao longo das décadas.

Entre os Swart há os cristãos reformados e judeus. O artifício criado por Galgut permite a contextualização da promessa, conferindo-lhe uma dimensão outra, para além daquela de uma simples fala, do dito – a palavra juramento, remetendo a juízo, sequer é mencionada pelo autor, que opta pelo tom quase religioso evidente no ato de prometer. O peso de sua não realização se faz presente ao longo da trajetória de seus integrantes, independentemente do caminho seguido em suas vidas.

Como metáfora, o livro compõe o universo sul-africano de uma sociedade que, em suas últimas décadas, viveu a esperança de dias melhores. Ao permitir, no papel, direitos iguais para brancos e negros, tornou-se uma sociedade promissora, abrindo-se para o mundo como uma terra repleta de compromissos com a igualdade.

A Guarda de Honra da África do Sul em ocasião da celebração de 20 anos do fim do apartheid Foto: AP

O latifúndio da fazenda dos Swart, nos arredores de Pretória, é o cenário de todas as transformações sofridas e promessas não cumpridas. Embora corroído com o tempo, é um microcosmo da África do Sul. Tal promessa consistia basicamente em permitir que Salome, a empregada negra da família, que os serve há décadas, vivendo em um casebre nas terras dos Swart, tivesse direito de propriedade sobre a parte que lhe tocava. No apartheid, isso era proibido e se impunha como o grande obstáculo para o cumprimento do prometido. Todavia, com o fim oficial do regime, em 1994, os empecilhos institucionais supostamente não mais existiriam. Portanto, em tese, nada impediria a herança de Salome.

O drama todo, adquirindo contornos de tragédia, circunscreve os personagens em seus respectivos cotidianos. Galgut tenta demonstrar como elementos aparentemente banais fundamentam uma forma de ser de cada um deles, a ponto de servir como justificativa simples para o não cumprimento da promessa. Por trás disso, está o questionamento sobre como conciliar os dramas pessoais com uma capacidade de atender ao outro. Algo nada irrelevante em uma sociedade tradicionalmente segregacionista.

Novamente, uma metáfora muito bem colocada em seu texto. Salome, a empregada negra, praticamente não fala durante todo o livro. Mesmo assim, ocupa um lugar central. São pequenas pistas que o autor dá dessa configuração assumida pela sociedade sul-africana, como, por exemplo, a resposta do motorista da família ao ser questionado por alguém sobre o que acha de seus patrões, se eles seriam bons patrões: “Eu não estou pensando neles, senhor. Eu só estou fazendo, não pensando”.

O escritor Damon Galgut, que recebeu o prêmio Booker Prize 2021 por seu romance 'A PRomessa' Foto: TOM NICHOLSON / REUTERS

Definitivamente, os brancos impuseram essa condição aos negros, de “apenas fazer”, sem pensar. Como desenvolver alteridade e a capacidade de ver o outro? No enredo isso só se torna possível ante o isolamento de toda uma vida sustentada segundo as premissas do apartheid. Tal personificação se dá com Amor, a caçula dos Swart, a verdadeira cobradora da promessa, que se fecha a todo o restante da família, trabalhando como enfermeira em hospitais. Só retorna à sua antiga casa para enterrar alguém que sustentava esse passado.

Diante desse contexto, o cumprimento da promessa apenas se torna possível na medida em que todo o passado é praticamente destruído. E, neste caso, tem-se um paradoxo, pois trata-se de uma promessa construída nesse passado, em decorrência desse passado, mas que depende de sua destruição para ser efetivada. O livro reporta metaforicamente a uma espécie de maldição, ao mesmo tempo em que sinaliza para as dificuldades de resolução de inúmeros dos conflitos decorrentes da condição à qual se encontrava uma sociedade tão segregacionista.

Da maneira como está posto, diante de um narrador onipresente, capaz de transpor os pensamentos de seus personagens, fica evidente a angústia da parte dos brancos com o fim do apartheid. Isso ajuda a explicar o tom de ironia na narrativa, sempre presente, envolvendo o leitor, colocando-o como comprometido com o livro e com a história da África do Sul. Enfim, para Galgut, a despeito de todas as conquistas, a promissora sociedade não veio.

Um dos maiores escritores do Brasil hoje, Luiz Ruffato disse que “literatura é compromisso”. Pensando na África do Sul, o que o senhor diria sobre isso?

Não sei por que o compromisso tem algo a ver com qualquer nacionalidade em particular. A literatura certamente é um compromisso, no sentido de que você tem que abrir mão de muita vida dita normal para fazer acontecer. E exige muito mais de você do que outras vocações. Se você quer dizer compromisso no sentido político, não é assim que vejo os livros e a escrita.

De seu romance ‘O Bom Médico’ até agora, o que mudou no seu trabalho?

Espero que cada livro seja diferente do anterior. É importante para mim que minha voz continue evoluindo e se transformando. Em um nível superficial, espero que seja óbvio que O Bom Médico é um livro com um narrador questionável, e seu foco é intensamente estreito. Por sua vez, A Promessa é polifônico, com aparentemente infinitos fios de consciência se alimentando de vários personagens.

Olhando retrospectivamente o seu trabalho, podemos dizer que o senhor está convicto de que a literatura deve causar um desconforto?

Isso é certamente o que eu aspiro em minha própria escrita. Acredito que os livros devem imitar e ecoar as inconsistências e limitações do mundo real, tanto quanto possível, e deixar os leitores com a sensação de que eles devem encontrar soluções para esses problemas, em vez de buscar respostas do escritor.

Garoto observa um mural com desenho do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela em Johannesburgo, na África do Sul Foto: Dylan Martinez/Reuters

Qual efeito um tipo de narrador polifônico, como o senhor mesmo diz, pode conseguir ao se reportar constantemente ao leitor, tal como vemos em ‘A Promessa’?

Todas as histórias são contadas por alguém para alguém. Não há narrativa neutra. Desejo conscientizar os leitores do fato de que estão ouvindo uma história que uma figura desconhecida, com motivos desconhecidos (ou mutáveis), está contando a eles. A maioria dos romances tenta disfarçar esse fato.

O que há da linguagem do teatro em A Promessa?

O livro segue a estrutura de um drama de quatro atos. Além disso, funciona da mesma forma que uma peça de teatro, com a ação se desenrolando no tempo presente, e nenhuma explicação do que acontece entre os vários atos. Espero que a experiência de lê-lo seja como assistir e ouvir uma peça de teatro ao vivo se desenrolar diante de você.

Tenho a impressão de que ‘A Promessa’ não é um livro especificamente sobre a questão racial, mas sobre uma sociedade segregacionista. Isso mesmo?

Uma sociedade segregada por motivos raciais é uma sociedade onde a “questão” da raça é central para tudo. Para mim, porém, o livro não é sobre política – ou melhor, política é apenas um fio de uma tapeçaria muito maior. O tempo e as mudanças que ele traz para a vida dos indivíduos, assim como para a própria vida da nação: esse é o assunto que me interessa.

Como metáfora, que promessa não foi cumprida no mundo contemporâneo?

Todos os tipos de promessas não são cumpridas. Na África do Sul, a promessa de uma nova sociedade e um novo futuro foi tristemente abandonada. Mas acho que cada personagem, como muitos de nós, pode sentir que sua vida falhou em corresponder ao que inicialmente parecia oferecer.

A certa altura, talvez referindo-se a textos bíblicos, parece que a promessa se torna uma maldição. Nossa sociedade está amaldiçoada?

No mundo que o livro cria, a família certamente parece ter sido amaldiçoada, devido ao fracasso em manter sua palavra. Como aprendemos com os gregos, se você transgredir as leis dos deuses, as Fúrias se vingarão.

No Booker Prize, o que o senhor acha de ter sido comparado a William Faulkner?

Sou um grande admirador de Faulkner, de certos livros em particular. Visitei sua casa no Mississippi em duas ocasiões. Seu espírito pairava sobre a escrita. Estou feliz com a comparação.

Que mensagem gostaria de enviar aos leitores brasileiros?

Eu não envio mensagens. Mas ficaria feliz se alguns dos temas do meu próprio trabalho e do meu país tivessem ressonância no Brasil. Imagino que haja algum entendimento mútuo, já que tanto a África do Sul quanto o Brasil são sociedades pós-coloniais tentando lidar com os detritos confusos da história.

Em agosto, A Promessa, de Damon Galgut, chegou às livrarias do Brasil. A obra, que deu ao autor sul-africano o Booker Prize 2021, conta a história dos Swart, uma família de brancos na África do Sul. A saga se inicia na década do 1980, no momento em que o país caminha para o fim do apartheid. Em seu leito de morte, Rachel exige que o seu marido lhe faça uma promessa que, a partir de então, tecerá o fio da narrativa, chegando até o ano de 2018 e acompanhando outros três funerais ao longo das décadas.

Entre os Swart há os cristãos reformados e judeus. O artifício criado por Galgut permite a contextualização da promessa, conferindo-lhe uma dimensão outra, para além daquela de uma simples fala, do dito – a palavra juramento, remetendo a juízo, sequer é mencionada pelo autor, que opta pelo tom quase religioso evidente no ato de prometer. O peso de sua não realização se faz presente ao longo da trajetória de seus integrantes, independentemente do caminho seguido em suas vidas.

Como metáfora, o livro compõe o universo sul-africano de uma sociedade que, em suas últimas décadas, viveu a esperança de dias melhores. Ao permitir, no papel, direitos iguais para brancos e negros, tornou-se uma sociedade promissora, abrindo-se para o mundo como uma terra repleta de compromissos com a igualdade.

A Guarda de Honra da África do Sul em ocasião da celebração de 20 anos do fim do apartheid Foto: AP

O latifúndio da fazenda dos Swart, nos arredores de Pretória, é o cenário de todas as transformações sofridas e promessas não cumpridas. Embora corroído com o tempo, é um microcosmo da África do Sul. Tal promessa consistia basicamente em permitir que Salome, a empregada negra da família, que os serve há décadas, vivendo em um casebre nas terras dos Swart, tivesse direito de propriedade sobre a parte que lhe tocava. No apartheid, isso era proibido e se impunha como o grande obstáculo para o cumprimento do prometido. Todavia, com o fim oficial do regime, em 1994, os empecilhos institucionais supostamente não mais existiriam. Portanto, em tese, nada impediria a herança de Salome.

O drama todo, adquirindo contornos de tragédia, circunscreve os personagens em seus respectivos cotidianos. Galgut tenta demonstrar como elementos aparentemente banais fundamentam uma forma de ser de cada um deles, a ponto de servir como justificativa simples para o não cumprimento da promessa. Por trás disso, está o questionamento sobre como conciliar os dramas pessoais com uma capacidade de atender ao outro. Algo nada irrelevante em uma sociedade tradicionalmente segregacionista.

Novamente, uma metáfora muito bem colocada em seu texto. Salome, a empregada negra, praticamente não fala durante todo o livro. Mesmo assim, ocupa um lugar central. São pequenas pistas que o autor dá dessa configuração assumida pela sociedade sul-africana, como, por exemplo, a resposta do motorista da família ao ser questionado por alguém sobre o que acha de seus patrões, se eles seriam bons patrões: “Eu não estou pensando neles, senhor. Eu só estou fazendo, não pensando”.

O escritor Damon Galgut, que recebeu o prêmio Booker Prize 2021 por seu romance 'A PRomessa' Foto: TOM NICHOLSON / REUTERS

Definitivamente, os brancos impuseram essa condição aos negros, de “apenas fazer”, sem pensar. Como desenvolver alteridade e a capacidade de ver o outro? No enredo isso só se torna possível ante o isolamento de toda uma vida sustentada segundo as premissas do apartheid. Tal personificação se dá com Amor, a caçula dos Swart, a verdadeira cobradora da promessa, que se fecha a todo o restante da família, trabalhando como enfermeira em hospitais. Só retorna à sua antiga casa para enterrar alguém que sustentava esse passado.

Diante desse contexto, o cumprimento da promessa apenas se torna possível na medida em que todo o passado é praticamente destruído. E, neste caso, tem-se um paradoxo, pois trata-se de uma promessa construída nesse passado, em decorrência desse passado, mas que depende de sua destruição para ser efetivada. O livro reporta metaforicamente a uma espécie de maldição, ao mesmo tempo em que sinaliza para as dificuldades de resolução de inúmeros dos conflitos decorrentes da condição à qual se encontrava uma sociedade tão segregacionista.

Da maneira como está posto, diante de um narrador onipresente, capaz de transpor os pensamentos de seus personagens, fica evidente a angústia da parte dos brancos com o fim do apartheid. Isso ajuda a explicar o tom de ironia na narrativa, sempre presente, envolvendo o leitor, colocando-o como comprometido com o livro e com a história da África do Sul. Enfim, para Galgut, a despeito de todas as conquistas, a promissora sociedade não veio.

Um dos maiores escritores do Brasil hoje, Luiz Ruffato disse que “literatura é compromisso”. Pensando na África do Sul, o que o senhor diria sobre isso?

Não sei por que o compromisso tem algo a ver com qualquer nacionalidade em particular. A literatura certamente é um compromisso, no sentido de que você tem que abrir mão de muita vida dita normal para fazer acontecer. E exige muito mais de você do que outras vocações. Se você quer dizer compromisso no sentido político, não é assim que vejo os livros e a escrita.

De seu romance ‘O Bom Médico’ até agora, o que mudou no seu trabalho?

Espero que cada livro seja diferente do anterior. É importante para mim que minha voz continue evoluindo e se transformando. Em um nível superficial, espero que seja óbvio que O Bom Médico é um livro com um narrador questionável, e seu foco é intensamente estreito. Por sua vez, A Promessa é polifônico, com aparentemente infinitos fios de consciência se alimentando de vários personagens.

Olhando retrospectivamente o seu trabalho, podemos dizer que o senhor está convicto de que a literatura deve causar um desconforto?

Isso é certamente o que eu aspiro em minha própria escrita. Acredito que os livros devem imitar e ecoar as inconsistências e limitações do mundo real, tanto quanto possível, e deixar os leitores com a sensação de que eles devem encontrar soluções para esses problemas, em vez de buscar respostas do escritor.

Garoto observa um mural com desenho do ex-presidente sul-africano Nelson Mandela em Johannesburgo, na África do Sul Foto: Dylan Martinez/Reuters

Qual efeito um tipo de narrador polifônico, como o senhor mesmo diz, pode conseguir ao se reportar constantemente ao leitor, tal como vemos em ‘A Promessa’?

Todas as histórias são contadas por alguém para alguém. Não há narrativa neutra. Desejo conscientizar os leitores do fato de que estão ouvindo uma história que uma figura desconhecida, com motivos desconhecidos (ou mutáveis), está contando a eles. A maioria dos romances tenta disfarçar esse fato.

O que há da linguagem do teatro em A Promessa?

O livro segue a estrutura de um drama de quatro atos. Além disso, funciona da mesma forma que uma peça de teatro, com a ação se desenrolando no tempo presente, e nenhuma explicação do que acontece entre os vários atos. Espero que a experiência de lê-lo seja como assistir e ouvir uma peça de teatro ao vivo se desenrolar diante de você.

Tenho a impressão de que ‘A Promessa’ não é um livro especificamente sobre a questão racial, mas sobre uma sociedade segregacionista. Isso mesmo?

Uma sociedade segregada por motivos raciais é uma sociedade onde a “questão” da raça é central para tudo. Para mim, porém, o livro não é sobre política – ou melhor, política é apenas um fio de uma tapeçaria muito maior. O tempo e as mudanças que ele traz para a vida dos indivíduos, assim como para a própria vida da nação: esse é o assunto que me interessa.

Como metáfora, que promessa não foi cumprida no mundo contemporâneo?

Todos os tipos de promessas não são cumpridas. Na África do Sul, a promessa de uma nova sociedade e um novo futuro foi tristemente abandonada. Mas acho que cada personagem, como muitos de nós, pode sentir que sua vida falhou em corresponder ao que inicialmente parecia oferecer.

A certa altura, talvez referindo-se a textos bíblicos, parece que a promessa se torna uma maldição. Nossa sociedade está amaldiçoada?

No mundo que o livro cria, a família certamente parece ter sido amaldiçoada, devido ao fracasso em manter sua palavra. Como aprendemos com os gregos, se você transgredir as leis dos deuses, as Fúrias se vingarão.

No Booker Prize, o que o senhor acha de ter sido comparado a William Faulkner?

Sou um grande admirador de Faulkner, de certos livros em particular. Visitei sua casa no Mississippi em duas ocasiões. Seu espírito pairava sobre a escrita. Estou feliz com a comparação.

Que mensagem gostaria de enviar aos leitores brasileiros?

Eu não envio mensagens. Mas ficaria feliz se alguns dos temas do meu próprio trabalho e do meu país tivessem ressonância no Brasil. Imagino que haja algum entendimento mútuo, já que tanto a África do Sul quanto o Brasil são sociedades pós-coloniais tentando lidar com os detritos confusos da história.

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