Dois anos de trabalho, encerrados em junho, mais de cem entrevistas, algumas com duração de horas, trabalho exaustivo de pesquisa em arquivos públicos e particulares deram corpo ao livro Cobras Criadas - David Nasser e O Cruzeiro - uma biografia do jornalista David Nasser que é, ao mesmo tempo, a história dos tempos áureos da revista em que trabalhou entre 1943 e 1974, carro-chefe das publicações do império de Assis Chateaubriand, escrita pelo também jornalista Luiz Maklouf Carvalho (Editora Senac São Paulo, 600 págs., R$ 45,00). David Nasser foi o repórter mais famoso de seu tempo - entre os anos 50 e os 70. Não deve ser aplicado a ele - embora eventualmente seja aplicado - o adjetivo "polêmico". Não era polêmico. Era uma figura de poucos escrúpulos, que dava pouca importância para os fatos e muita importância para o efeito de suas reportagens. Inventava, alterava, adequava a realidade à carga de efeito que seus escritos pudessem trazer. Era mais importante do que a notícia - opinião corroborada por seus companheiros de trabalho - tanto por aqueles que dele gostavam quanto pelos que o detestavam -, pelos amigos, pelos parceiros circunstanciais. Era um homem de imenso talento para escrever e com capacidade aparentemente inesgotável de trabalho. Escreveu livros de grande repercussão - quase sempre apoiados ou baseados em suas próprias reportagens - e compôs cerca de 300 músicas, algumas de muito sucesso, como Nêga do Cabelo Duro (com Rubens Soares), Canta Brasil (com Alcir Pires Vermelho), Camisola do Dia, Hoje Quem Paga Sou Eu, Atiraste uma Pedra (com Herivelto Martins), Confete (aquela do "pedacinho colorido de saudade", com Jota Júnior), Normalista (com Benedito Lacerda, grande sucesso na voz do amigo Nelson Gonçalves), A Coroa do Rei (com Haroldo Lobo) e até a valsa que ainda hoje serve de vinheta para o fim de ano da Rede Globo: Fim de Ano ( "Adeus ano velho, feliz ano-novo..."), parceria com Francisco Alves. Foi ativista e membro de diretoria de órgãos de defesa de direitos autorais - União Brasileira de Compositores (UBC) e Serviço de Defesa do Direito Autoral (SDDA). As duas sociedades são desacreditadas. O SDDA foi alvo de uma CPI em 1967, durante o governo Costa e Silva. David Nasser foi amigo de políticos, artistas, atletas. Orgulhava-se de ser diretor de honra da tristemente famosa Scuderie Le Cock, nome de fantasia - expressão empregada por Luiz Maklouf - do Esquadrão da Morte que atuou no Rio de Janeiro. O caixão de Nasser, em seu enterro, estava coberto pela bandeira - uma caveira, duas tíbias cruzadas - do Esquadrão. Os negócios musicais de Nasser eram administrados por duas firmas de sua propriedade, que tiveram forte atuação no lobby que conseguiu, nos anos 60, a isenção fiscal para os produtos fonográficos (o então ministro Delfim Netto entrou na defesa da causa). Para tanto, aplicou-se, na capa dos discos, a frase "Disco É Cultura". A lei foi aprovada; nos anos 90, foi revogada e voltou a valer. Ganham com ela, principalmente, as multinacionais do setor. Os pais de Nasser eram libaneses. David nasceu em Jaú, no interior de São Paulo, em 1917. Os primeiros anos de vida foram passados em Caxambu, Minas Gerais, e, quando era adolescente, foi com a família para o Rio de Janeiro. Ajudava na renda como camelô, vendendo bugigangas - pentes, giletes, na Central do Brasil. Teve meningite, que lhe deixou seqüelas. Andava com dificuldade ("como se estivesse bêbado"), tinha os movimentos das mãos atrapalhados - derrrubava coisas, sujava-se e sujava tudo em volta quando comia, enxergava mal. Escrevia com dois dedos. Para concorrer com Nelson Rodrigues, que publicava o folhetim Meu Destino É Pecar, em O Jornal, sob o pseudônimo de Suzana Flag, aumentando a tiragem do diário, David Nasser inventou uma personagem para o Diário da Noite, outra publicação dos Diários Associados, de Chateaubriand. Os que têm mais de 50 anos não esqueceriam Giselle - A Espiã Nua Que Abalou Paris. Giselle era tratada como personagem de fato: o Diário da Noite anunciou que comprara "com exclusividade" as memórias da bela mulher que passara de cama de nazista em cama de nazista obtendo informações para as forças aliadas. Para garantir a verossimilhança, o Diário chamou a série de "documentário" traduzido do original francês por um certo jornalista italiano chamado Carlos Tancini, que estaria de passagem pelo Rio - e que nunca existiu. A série escrita por David Nasser teve 59 capítulos. Seu parceiro de nove anos de trabalhos bombásticos, o fotógrafo francês Jean Manzon, era o encarregado de produzir as fotos de Giselle. Sobre ela, fala Freddy Chateaubriand, sobrinho de Assis, chefe de Nasser e Manzon: "Nunca houve Giselle, ela nunca abalou Paris, mas o Diário da Noite foi o jornal de maior circulação daquela época. O Manzon trazia aquelas fotos não sei de onde, e o David escrevia com aquela facilidade." Mais tarde, uma editora comprou os direitos sobre a personagem e publicou livrecos que eram vendidos em bancas de jornais, com altas tiragens. Era o que mais próximo se aproximava da literatura erótica disponível para os adolescentes dos anos 60. O poeta Augusto Frederico Schmidt chegou a escrever uma história, como revela Maklouf. Freddy não é o único a revelar o método de trabalho de David Nasser. Seus companheiros de redação - ou os parceiros, conhecidos - são unânimes: um homem brilhante, mas sem escrúpulos. A dupla Nasser-Manzon funcionou de 1943 a 1951. Produziu material que espantou o País, entre eles a intitulada Barreto Pinto sem Máscara, de 1946, em que o deputado, amigo de Getúlio, aparece de fraque e cuecas. Na versão de Barreto Pinto, a dupla havia prometido que só usaria a imagem da barriga para cima. O deputado foi cassado. Eles teriam fotografado pela primeira vez - é fato, as imagens apareceram pela primeira vez - uma tribo xavante (Nasser escrevia "chavante"). A descrição do "ataque" dos índios ao avião são belos exemplos de má ficção. Parece que Nasser não estava no vôo. Duvida-se que Manzon tenha de fato feito as fotos. Parece que o material foi aproveitado de um filme feito pelo DIP, departamento de propaganda do Estado Novo, em que Manzon trabalhou. A dupla consegiu fotografar a mulher de Chiang Kai-shek, mulher do líder chinês anti-comunista, que esteve no Brasil , em 1944. Era um furo. Ao que se apura, o próprio David Nasser, vestido de mulher, se fez passar pela chinesa. Uma das mais longas séries de reportagem de David Nasser, já sem Manzon como companheiro, foi sobre o assassinato de Aída Cúri, em julho de 1958. Ela era uma menina de 18 anos, que passara 12 num colégio de freiras. Foi abordada por um grupo de rapazes, em Copacabana. Dois deles a convenceram a subir ao terraço de um prédio, entrada facilitada pelo fato do padrasto de um deles ser síndico do edifício. Aída Cúri foi currada e caiu morta na calçada. O crime rendeu um livro, além da série de reportagens, e foi assunto constante no programa que David Nasser teve na TV Tupi: começava com um grito, supostamente de uma mulher caindo. David Nasser morreu rico - tornou-se empresário bem-sucedido - aos 63 anos. Praticou um tipo de jornalismo que não existe mais na grande imprensa - até porque há mecanismos que permitem identificar a veracidade das informações publicadas. Mas houve um tempo em que era possível.
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