Décadas antes da internet, escritor alertava para consequências da tecnologia


O autor francês radicado no Brasil Georges Bernanos lançou 'A França Contra os Robôs' em plena 2ª Guerra Mundial

Por Martim Vasques da Cunha

E foi nos confins do mundo, no interior de Minas Gerais, mais precisamente em um bairro miserável de Barbacena, no início dos anos 1940 – em plena 2.ª Guerra Mundial – que o escritor francês Georges Bernanos viu nada menos que o futuro. 

+Exposição nos EUA mostra a inovação tecnológica que vem dos índios

Alicia Vikander em cena de 'Ex Machina' (2014) Foto: Universal Pictures
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+Como o connoisseur de arte trabalha ao lado da tecnologia

Ele morava em um sítio modesto, exilado da sua querida França e dos espectros políticos – os da direita, os da esquerda, os do centro, enfim, os que não levam a lugar nenhum –, após ter publicado Os Grandes Cemitérios sob a Lua (1938), a sua polêmica obra-prima sobre os desastres que levaram à Guerra Civil Espanhola (e, por consequência, à ousadia de Hitler e de Stalin contra a Europa), quando teve uma iluminação assustadora sobre o que motivava a “cólera dos imbecis” então em voga nos quatro cantos da Terra.

Tratava-se do fato de que “os regimes outrora opostos pela ideologia estão agora estreitamente unidos pela técnica”, como ele escreveu em A França Contra os Robôs (É Realizações), outra obra-prima de retórica bombástica, lançada em 1945, tão espetacular quanto Os Grandes Cemitérios, com a diferença de que, desta vez, Bernanos não está refletindo sobre o presente ou o passado, como supõem seus detratores. Ele faz o que sempre fez, em especial nos seus magníficos romances, como Diário de um Pároco de Aldeia ou Sob o Sol de Satã (transformados em filmes impecáveis por, respectivamente, Robert Bresson e Maurice Pialat): põe a eternidade à frente do nosso focinho, igual a um trauma do qual não temos como fugir, como se fôssemos os cachorros que buscam desesperadamente por um pouco de alimento neste chão imundo da existência.

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Contudo, há uma inovação (certamente, uma palavra desprezada no vocabulário do criador de Mouchette) neste panfleto aflitivo, escrito por este homem possuído por uma lucidez implacável. Se antes alguém poderia acusá-lo de “reacionarismo” por rejeitar o “progresso” da História, agora Bernanos reconhece que não há outra forma exceto aceitar a tal da “técnica” como motor permanente da condição humana, em especial após o término da 2.ª Guerra.

Mas ele não vê este fenômeno de maneira positiva ou negativa. Bernanos tem a capacidade de transformar a palavra em um ato de visão imparcial – visão que, entretanto, é lançada ao mundo como a lava do vulcão que destrói a cidade ao lado. Machuca, incomoda, dilacera. Infelizmente, não é o que acontece com seu conterrâneo, Benjamin Loveluck, que, ao escrever sobre o mesmo tema em Redes, Liberdades e Controle (Vozes) cerca de 70 anos depois, consegue descrever o “estado da arte” da nossa atual situação tecnológica, mas é incapaz de falar nada demais sobre o “estado da questão” de algo que Bernanos captou com precisão. 

Loveluck inspirou-se nos trabalhos filosóficos de Michel Foucault e de Marcel Gauchet sobre como a democracia liberal é uma ideologia política que tenta substituir o vazio existencial provocado pelo que Max Weber chamou de “o desencantamento do mundo”. Ao expandir este tema para uma análise detalhada de como a internet se aproveitou do liberalismo clássico para construir uma visão de mundo peculiar, o cientista político francês – também pesquisador na Telécom Paris Tech, um think tank criado por empresas de telecomunicações para refletir sobre o conturbado cenário deste “admirável mundo novo” da política – quer provar ao leitor que jamais se deve identificar “a rede das redes” como integralmente assimilada ao que conhecemos sob o nome de “sociedade civil”.

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Porém, é exatamente isso o que nós fazemos no clima de opinião que domina nas universidades, redações e mesas de bar. A internet seria o reino da necessidade transformada no reino da liberdade, onde as pessoas finalmente teriam a autossuficiência para governar suas vidas sem uma instituição centralizadora, que domine a propriedade privada e o fluxo das informações – ou, pelo menos, é o que passamos acreditar como se fosse uma nova “religião política”, digna daquelas ideologias totalitárias que Bernanos já achincalhava. Loveluck mostra que isso não passa de uma triste ilusão. Apesar do liberalismo metamorfoseado na ideologia californiana do libertarianismo hippie de Silicon Valley – e depois na libertinagem do comportamento humano redimido pela tecnologia –, a internet nunca teve a liberdade como seu fim. Era apenas mais uma ferramenta de controle, cuja intenção primeira jamais foi ajudar o ser humano, mas sim manipulá-lo como poucas vezes na História, numa revolta da tecnologia que só pode ser compreendida adequadamente como o complemento da revolta que o próprio homem quis realizar contra a sua intrínseca fragilidade.

Um dos pontos mais interessantes de Redes, Liberdades e Controle é que Benjamin Loveluck parece estar realmente surpreso com essa conclusão. Ora, se ele tivesse lido Bernanos, nada disso teria sido uma aparente novidade em seu projeto. O romancista francês, acusado de ser um “católico carola” – e mesmo sem ter tido acesso à internet, pois morreu em 1948 –, percebeu que a modernidade seria um projeto corrompido em sua essência, dominando o homem em todos os seus graus e estratos, exceto um: o da imbecilidade.

Assim como Raymond Aron e Eric Voegelin, Bernanos reconhece que talvez o principal impulso da história humana é a estupidez dentro de todos nós. E isto não seria uma exceção com o modo como passamos a lidar com a técnica e a tecnologia. Mas um aviso: não se trata da estupidez pura e simples, do néscio que não consegue raciocinar adequadamente por algum impedimento de informação ou cognitivo. É algo mais profundo. Ele fala do imbecil que se considera alguém realmente inteligente, absolutamente incapaz de reconhecer a “inteligência humilhada” de que tanto falou Santo Agostinho em Confissões e que foi meditado recentemente pelo filósofo Jonas Madureira em um livro de mesmo nome – leitura obrigatória para quem quiser escapar desse círculo vicioso. 

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Com sua escrita ferina, Bernanos dá a perfeita definição do que é um estúpido hoje: “A experiência me demonstrou há muito tempo que o imbecil nunca é simples, e muito raramente é ignorante. O intelectual deveria, portanto, por definição, parecer-nos suspeito? Certamente. Chamo intelectual ao homem que dá a si mesmo esse título, em razão dos acontecimentos e diplomas que possui. Não falo, evidentemente, do erudito, do artista ou do escritor cuja vocação é criar – para os quais a inteligência não é uma profissão, mas uma vocação. O intelectual é com tanta frequência um imbecil que deveríamos tomá-lo sempre como tal, até que nos tenha provado o contrário.”

Aqui, o centro da questão é que o intelectual se tornou um dependente da técnica e da tecnologia por não assumir as falhas do seu pensamento ao refletir sobre as sutilezas da realidade. Daí sua defesa encarniçada de uma inteligência vendida aos robôs há muito tempo, amputada da vida espiritual que seria o verdadeiro fundamento da nossa sociedade. Muito antes de Benjamin Loveluck, o autor de Diálogo das Carmelitas já tinha percebido a tecnologia como mais uma forma de controlar a liberdade interior do ser humano, dando-lhe em troca uma precária liberdade exterior que se uniria com o pior dos totalitarismos – o do imbecil como o único governante possível.

Sem dúvida, os progressistas acusarão A França Contra os Robôs de ser mais um panfleto “ludita” – uma referência à seita apocalíptica do século 19, fundada por Ned Ludd, que pretendia abolir as máquinas –, optando assim pela análise pretensamente mais equilibrada de Benjamin Loveluck. Será também a prova que não entenderam nada do próprio assunto do qual tiram o seu sustento: afinal de contas, a revolta da tecnologia contra o ser humano foi provocada por essa mesma “cólera dos imbecis” que criou as carnificinas globais do nazismo, do comunismo e do fascismo. E se hoje esquecemos desta importante lição, aparentemente protegidos pela liberdade controlada da “rede das redes”, é sinal que merecemos a desgraça que se abate sobre os estúpidos de sempre, profetizada pelo espírito visionário (e perturbador) de Georges Bernanos.*Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada História da Literatura Brasileira'

E foi nos confins do mundo, no interior de Minas Gerais, mais precisamente em um bairro miserável de Barbacena, no início dos anos 1940 – em plena 2.ª Guerra Mundial – que o escritor francês Georges Bernanos viu nada menos que o futuro. 

+Exposição nos EUA mostra a inovação tecnológica que vem dos índios

Alicia Vikander em cena de 'Ex Machina' (2014) Foto: Universal Pictures

+Como o connoisseur de arte trabalha ao lado da tecnologia

Ele morava em um sítio modesto, exilado da sua querida França e dos espectros políticos – os da direita, os da esquerda, os do centro, enfim, os que não levam a lugar nenhum –, após ter publicado Os Grandes Cemitérios sob a Lua (1938), a sua polêmica obra-prima sobre os desastres que levaram à Guerra Civil Espanhola (e, por consequência, à ousadia de Hitler e de Stalin contra a Europa), quando teve uma iluminação assustadora sobre o que motivava a “cólera dos imbecis” então em voga nos quatro cantos da Terra.

Tratava-se do fato de que “os regimes outrora opostos pela ideologia estão agora estreitamente unidos pela técnica”, como ele escreveu em A França Contra os Robôs (É Realizações), outra obra-prima de retórica bombástica, lançada em 1945, tão espetacular quanto Os Grandes Cemitérios, com a diferença de que, desta vez, Bernanos não está refletindo sobre o presente ou o passado, como supõem seus detratores. Ele faz o que sempre fez, em especial nos seus magníficos romances, como Diário de um Pároco de Aldeia ou Sob o Sol de Satã (transformados em filmes impecáveis por, respectivamente, Robert Bresson e Maurice Pialat): põe a eternidade à frente do nosso focinho, igual a um trauma do qual não temos como fugir, como se fôssemos os cachorros que buscam desesperadamente por um pouco de alimento neste chão imundo da existência.

Contudo, há uma inovação (certamente, uma palavra desprezada no vocabulário do criador de Mouchette) neste panfleto aflitivo, escrito por este homem possuído por uma lucidez implacável. Se antes alguém poderia acusá-lo de “reacionarismo” por rejeitar o “progresso” da História, agora Bernanos reconhece que não há outra forma exceto aceitar a tal da “técnica” como motor permanente da condição humana, em especial após o término da 2.ª Guerra.

Mas ele não vê este fenômeno de maneira positiva ou negativa. Bernanos tem a capacidade de transformar a palavra em um ato de visão imparcial – visão que, entretanto, é lançada ao mundo como a lava do vulcão que destrói a cidade ao lado. Machuca, incomoda, dilacera. Infelizmente, não é o que acontece com seu conterrâneo, Benjamin Loveluck, que, ao escrever sobre o mesmo tema em Redes, Liberdades e Controle (Vozes) cerca de 70 anos depois, consegue descrever o “estado da arte” da nossa atual situação tecnológica, mas é incapaz de falar nada demais sobre o “estado da questão” de algo que Bernanos captou com precisão. 

Loveluck inspirou-se nos trabalhos filosóficos de Michel Foucault e de Marcel Gauchet sobre como a democracia liberal é uma ideologia política que tenta substituir o vazio existencial provocado pelo que Max Weber chamou de “o desencantamento do mundo”. Ao expandir este tema para uma análise detalhada de como a internet se aproveitou do liberalismo clássico para construir uma visão de mundo peculiar, o cientista político francês – também pesquisador na Telécom Paris Tech, um think tank criado por empresas de telecomunicações para refletir sobre o conturbado cenário deste “admirável mundo novo” da política – quer provar ao leitor que jamais se deve identificar “a rede das redes” como integralmente assimilada ao que conhecemos sob o nome de “sociedade civil”.

Porém, é exatamente isso o que nós fazemos no clima de opinião que domina nas universidades, redações e mesas de bar. A internet seria o reino da necessidade transformada no reino da liberdade, onde as pessoas finalmente teriam a autossuficiência para governar suas vidas sem uma instituição centralizadora, que domine a propriedade privada e o fluxo das informações – ou, pelo menos, é o que passamos acreditar como se fosse uma nova “religião política”, digna daquelas ideologias totalitárias que Bernanos já achincalhava. Loveluck mostra que isso não passa de uma triste ilusão. Apesar do liberalismo metamorfoseado na ideologia californiana do libertarianismo hippie de Silicon Valley – e depois na libertinagem do comportamento humano redimido pela tecnologia –, a internet nunca teve a liberdade como seu fim. Era apenas mais uma ferramenta de controle, cuja intenção primeira jamais foi ajudar o ser humano, mas sim manipulá-lo como poucas vezes na História, numa revolta da tecnologia que só pode ser compreendida adequadamente como o complemento da revolta que o próprio homem quis realizar contra a sua intrínseca fragilidade.

Um dos pontos mais interessantes de Redes, Liberdades e Controle é que Benjamin Loveluck parece estar realmente surpreso com essa conclusão. Ora, se ele tivesse lido Bernanos, nada disso teria sido uma aparente novidade em seu projeto. O romancista francês, acusado de ser um “católico carola” – e mesmo sem ter tido acesso à internet, pois morreu em 1948 –, percebeu que a modernidade seria um projeto corrompido em sua essência, dominando o homem em todos os seus graus e estratos, exceto um: o da imbecilidade.

Assim como Raymond Aron e Eric Voegelin, Bernanos reconhece que talvez o principal impulso da história humana é a estupidez dentro de todos nós. E isto não seria uma exceção com o modo como passamos a lidar com a técnica e a tecnologia. Mas um aviso: não se trata da estupidez pura e simples, do néscio que não consegue raciocinar adequadamente por algum impedimento de informação ou cognitivo. É algo mais profundo. Ele fala do imbecil que se considera alguém realmente inteligente, absolutamente incapaz de reconhecer a “inteligência humilhada” de que tanto falou Santo Agostinho em Confissões e que foi meditado recentemente pelo filósofo Jonas Madureira em um livro de mesmo nome – leitura obrigatória para quem quiser escapar desse círculo vicioso. 

Com sua escrita ferina, Bernanos dá a perfeita definição do que é um estúpido hoje: “A experiência me demonstrou há muito tempo que o imbecil nunca é simples, e muito raramente é ignorante. O intelectual deveria, portanto, por definição, parecer-nos suspeito? Certamente. Chamo intelectual ao homem que dá a si mesmo esse título, em razão dos acontecimentos e diplomas que possui. Não falo, evidentemente, do erudito, do artista ou do escritor cuja vocação é criar – para os quais a inteligência não é uma profissão, mas uma vocação. O intelectual é com tanta frequência um imbecil que deveríamos tomá-lo sempre como tal, até que nos tenha provado o contrário.”

Aqui, o centro da questão é que o intelectual se tornou um dependente da técnica e da tecnologia por não assumir as falhas do seu pensamento ao refletir sobre as sutilezas da realidade. Daí sua defesa encarniçada de uma inteligência vendida aos robôs há muito tempo, amputada da vida espiritual que seria o verdadeiro fundamento da nossa sociedade. Muito antes de Benjamin Loveluck, o autor de Diálogo das Carmelitas já tinha percebido a tecnologia como mais uma forma de controlar a liberdade interior do ser humano, dando-lhe em troca uma precária liberdade exterior que se uniria com o pior dos totalitarismos – o do imbecil como o único governante possível.

Sem dúvida, os progressistas acusarão A França Contra os Robôs de ser mais um panfleto “ludita” – uma referência à seita apocalíptica do século 19, fundada por Ned Ludd, que pretendia abolir as máquinas –, optando assim pela análise pretensamente mais equilibrada de Benjamin Loveluck. Será também a prova que não entenderam nada do próprio assunto do qual tiram o seu sustento: afinal de contas, a revolta da tecnologia contra o ser humano foi provocada por essa mesma “cólera dos imbecis” que criou as carnificinas globais do nazismo, do comunismo e do fascismo. E se hoje esquecemos desta importante lição, aparentemente protegidos pela liberdade controlada da “rede das redes”, é sinal que merecemos a desgraça que se abate sobre os estúpidos de sempre, profetizada pelo espírito visionário (e perturbador) de Georges Bernanos.*Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada História da Literatura Brasileira'

E foi nos confins do mundo, no interior de Minas Gerais, mais precisamente em um bairro miserável de Barbacena, no início dos anos 1940 – em plena 2.ª Guerra Mundial – que o escritor francês Georges Bernanos viu nada menos que o futuro. 

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Alicia Vikander em cena de 'Ex Machina' (2014) Foto: Universal Pictures

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Ele morava em um sítio modesto, exilado da sua querida França e dos espectros políticos – os da direita, os da esquerda, os do centro, enfim, os que não levam a lugar nenhum –, após ter publicado Os Grandes Cemitérios sob a Lua (1938), a sua polêmica obra-prima sobre os desastres que levaram à Guerra Civil Espanhola (e, por consequência, à ousadia de Hitler e de Stalin contra a Europa), quando teve uma iluminação assustadora sobre o que motivava a “cólera dos imbecis” então em voga nos quatro cantos da Terra.

Tratava-se do fato de que “os regimes outrora opostos pela ideologia estão agora estreitamente unidos pela técnica”, como ele escreveu em A França Contra os Robôs (É Realizações), outra obra-prima de retórica bombástica, lançada em 1945, tão espetacular quanto Os Grandes Cemitérios, com a diferença de que, desta vez, Bernanos não está refletindo sobre o presente ou o passado, como supõem seus detratores. Ele faz o que sempre fez, em especial nos seus magníficos romances, como Diário de um Pároco de Aldeia ou Sob o Sol de Satã (transformados em filmes impecáveis por, respectivamente, Robert Bresson e Maurice Pialat): põe a eternidade à frente do nosso focinho, igual a um trauma do qual não temos como fugir, como se fôssemos os cachorros que buscam desesperadamente por um pouco de alimento neste chão imundo da existência.

Contudo, há uma inovação (certamente, uma palavra desprezada no vocabulário do criador de Mouchette) neste panfleto aflitivo, escrito por este homem possuído por uma lucidez implacável. Se antes alguém poderia acusá-lo de “reacionarismo” por rejeitar o “progresso” da História, agora Bernanos reconhece que não há outra forma exceto aceitar a tal da “técnica” como motor permanente da condição humana, em especial após o término da 2.ª Guerra.

Mas ele não vê este fenômeno de maneira positiva ou negativa. Bernanos tem a capacidade de transformar a palavra em um ato de visão imparcial – visão que, entretanto, é lançada ao mundo como a lava do vulcão que destrói a cidade ao lado. Machuca, incomoda, dilacera. Infelizmente, não é o que acontece com seu conterrâneo, Benjamin Loveluck, que, ao escrever sobre o mesmo tema em Redes, Liberdades e Controle (Vozes) cerca de 70 anos depois, consegue descrever o “estado da arte” da nossa atual situação tecnológica, mas é incapaz de falar nada demais sobre o “estado da questão” de algo que Bernanos captou com precisão. 

Loveluck inspirou-se nos trabalhos filosóficos de Michel Foucault e de Marcel Gauchet sobre como a democracia liberal é uma ideologia política que tenta substituir o vazio existencial provocado pelo que Max Weber chamou de “o desencantamento do mundo”. Ao expandir este tema para uma análise detalhada de como a internet se aproveitou do liberalismo clássico para construir uma visão de mundo peculiar, o cientista político francês – também pesquisador na Telécom Paris Tech, um think tank criado por empresas de telecomunicações para refletir sobre o conturbado cenário deste “admirável mundo novo” da política – quer provar ao leitor que jamais se deve identificar “a rede das redes” como integralmente assimilada ao que conhecemos sob o nome de “sociedade civil”.

Porém, é exatamente isso o que nós fazemos no clima de opinião que domina nas universidades, redações e mesas de bar. A internet seria o reino da necessidade transformada no reino da liberdade, onde as pessoas finalmente teriam a autossuficiência para governar suas vidas sem uma instituição centralizadora, que domine a propriedade privada e o fluxo das informações – ou, pelo menos, é o que passamos acreditar como se fosse uma nova “religião política”, digna daquelas ideologias totalitárias que Bernanos já achincalhava. Loveluck mostra que isso não passa de uma triste ilusão. Apesar do liberalismo metamorfoseado na ideologia californiana do libertarianismo hippie de Silicon Valley – e depois na libertinagem do comportamento humano redimido pela tecnologia –, a internet nunca teve a liberdade como seu fim. Era apenas mais uma ferramenta de controle, cuja intenção primeira jamais foi ajudar o ser humano, mas sim manipulá-lo como poucas vezes na História, numa revolta da tecnologia que só pode ser compreendida adequadamente como o complemento da revolta que o próprio homem quis realizar contra a sua intrínseca fragilidade.

Um dos pontos mais interessantes de Redes, Liberdades e Controle é que Benjamin Loveluck parece estar realmente surpreso com essa conclusão. Ora, se ele tivesse lido Bernanos, nada disso teria sido uma aparente novidade em seu projeto. O romancista francês, acusado de ser um “católico carola” – e mesmo sem ter tido acesso à internet, pois morreu em 1948 –, percebeu que a modernidade seria um projeto corrompido em sua essência, dominando o homem em todos os seus graus e estratos, exceto um: o da imbecilidade.

Assim como Raymond Aron e Eric Voegelin, Bernanos reconhece que talvez o principal impulso da história humana é a estupidez dentro de todos nós. E isto não seria uma exceção com o modo como passamos a lidar com a técnica e a tecnologia. Mas um aviso: não se trata da estupidez pura e simples, do néscio que não consegue raciocinar adequadamente por algum impedimento de informação ou cognitivo. É algo mais profundo. Ele fala do imbecil que se considera alguém realmente inteligente, absolutamente incapaz de reconhecer a “inteligência humilhada” de que tanto falou Santo Agostinho em Confissões e que foi meditado recentemente pelo filósofo Jonas Madureira em um livro de mesmo nome – leitura obrigatória para quem quiser escapar desse círculo vicioso. 

Com sua escrita ferina, Bernanos dá a perfeita definição do que é um estúpido hoje: “A experiência me demonstrou há muito tempo que o imbecil nunca é simples, e muito raramente é ignorante. O intelectual deveria, portanto, por definição, parecer-nos suspeito? Certamente. Chamo intelectual ao homem que dá a si mesmo esse título, em razão dos acontecimentos e diplomas que possui. Não falo, evidentemente, do erudito, do artista ou do escritor cuja vocação é criar – para os quais a inteligência não é uma profissão, mas uma vocação. O intelectual é com tanta frequência um imbecil que deveríamos tomá-lo sempre como tal, até que nos tenha provado o contrário.”

Aqui, o centro da questão é que o intelectual se tornou um dependente da técnica e da tecnologia por não assumir as falhas do seu pensamento ao refletir sobre as sutilezas da realidade. Daí sua defesa encarniçada de uma inteligência vendida aos robôs há muito tempo, amputada da vida espiritual que seria o verdadeiro fundamento da nossa sociedade. Muito antes de Benjamin Loveluck, o autor de Diálogo das Carmelitas já tinha percebido a tecnologia como mais uma forma de controlar a liberdade interior do ser humano, dando-lhe em troca uma precária liberdade exterior que se uniria com o pior dos totalitarismos – o do imbecil como o único governante possível.

Sem dúvida, os progressistas acusarão A França Contra os Robôs de ser mais um panfleto “ludita” – uma referência à seita apocalíptica do século 19, fundada por Ned Ludd, que pretendia abolir as máquinas –, optando assim pela análise pretensamente mais equilibrada de Benjamin Loveluck. Será também a prova que não entenderam nada do próprio assunto do qual tiram o seu sustento: afinal de contas, a revolta da tecnologia contra o ser humano foi provocada por essa mesma “cólera dos imbecis” que criou as carnificinas globais do nazismo, do comunismo e do fascismo. E se hoje esquecemos desta importante lição, aparentemente protegidos pela liberdade controlada da “rede das redes”, é sinal que merecemos a desgraça que se abate sobre os estúpidos de sempre, profetizada pelo espírito visionário (e perturbador) de Georges Bernanos.*Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada História da Literatura Brasileira'

E foi nos confins do mundo, no interior de Minas Gerais, mais precisamente em um bairro miserável de Barbacena, no início dos anos 1940 – em plena 2.ª Guerra Mundial – que o escritor francês Georges Bernanos viu nada menos que o futuro. 

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Alicia Vikander em cena de 'Ex Machina' (2014) Foto: Universal Pictures

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Ele morava em um sítio modesto, exilado da sua querida França e dos espectros políticos – os da direita, os da esquerda, os do centro, enfim, os que não levam a lugar nenhum –, após ter publicado Os Grandes Cemitérios sob a Lua (1938), a sua polêmica obra-prima sobre os desastres que levaram à Guerra Civil Espanhola (e, por consequência, à ousadia de Hitler e de Stalin contra a Europa), quando teve uma iluminação assustadora sobre o que motivava a “cólera dos imbecis” então em voga nos quatro cantos da Terra.

Tratava-se do fato de que “os regimes outrora opostos pela ideologia estão agora estreitamente unidos pela técnica”, como ele escreveu em A França Contra os Robôs (É Realizações), outra obra-prima de retórica bombástica, lançada em 1945, tão espetacular quanto Os Grandes Cemitérios, com a diferença de que, desta vez, Bernanos não está refletindo sobre o presente ou o passado, como supõem seus detratores. Ele faz o que sempre fez, em especial nos seus magníficos romances, como Diário de um Pároco de Aldeia ou Sob o Sol de Satã (transformados em filmes impecáveis por, respectivamente, Robert Bresson e Maurice Pialat): põe a eternidade à frente do nosso focinho, igual a um trauma do qual não temos como fugir, como se fôssemos os cachorros que buscam desesperadamente por um pouco de alimento neste chão imundo da existência.

Contudo, há uma inovação (certamente, uma palavra desprezada no vocabulário do criador de Mouchette) neste panfleto aflitivo, escrito por este homem possuído por uma lucidez implacável. Se antes alguém poderia acusá-lo de “reacionarismo” por rejeitar o “progresso” da História, agora Bernanos reconhece que não há outra forma exceto aceitar a tal da “técnica” como motor permanente da condição humana, em especial após o término da 2.ª Guerra.

Mas ele não vê este fenômeno de maneira positiva ou negativa. Bernanos tem a capacidade de transformar a palavra em um ato de visão imparcial – visão que, entretanto, é lançada ao mundo como a lava do vulcão que destrói a cidade ao lado. Machuca, incomoda, dilacera. Infelizmente, não é o que acontece com seu conterrâneo, Benjamin Loveluck, que, ao escrever sobre o mesmo tema em Redes, Liberdades e Controle (Vozes) cerca de 70 anos depois, consegue descrever o “estado da arte” da nossa atual situação tecnológica, mas é incapaz de falar nada demais sobre o “estado da questão” de algo que Bernanos captou com precisão. 

Loveluck inspirou-se nos trabalhos filosóficos de Michel Foucault e de Marcel Gauchet sobre como a democracia liberal é uma ideologia política que tenta substituir o vazio existencial provocado pelo que Max Weber chamou de “o desencantamento do mundo”. Ao expandir este tema para uma análise detalhada de como a internet se aproveitou do liberalismo clássico para construir uma visão de mundo peculiar, o cientista político francês – também pesquisador na Telécom Paris Tech, um think tank criado por empresas de telecomunicações para refletir sobre o conturbado cenário deste “admirável mundo novo” da política – quer provar ao leitor que jamais se deve identificar “a rede das redes” como integralmente assimilada ao que conhecemos sob o nome de “sociedade civil”.

Porém, é exatamente isso o que nós fazemos no clima de opinião que domina nas universidades, redações e mesas de bar. A internet seria o reino da necessidade transformada no reino da liberdade, onde as pessoas finalmente teriam a autossuficiência para governar suas vidas sem uma instituição centralizadora, que domine a propriedade privada e o fluxo das informações – ou, pelo menos, é o que passamos acreditar como se fosse uma nova “religião política”, digna daquelas ideologias totalitárias que Bernanos já achincalhava. Loveluck mostra que isso não passa de uma triste ilusão. Apesar do liberalismo metamorfoseado na ideologia californiana do libertarianismo hippie de Silicon Valley – e depois na libertinagem do comportamento humano redimido pela tecnologia –, a internet nunca teve a liberdade como seu fim. Era apenas mais uma ferramenta de controle, cuja intenção primeira jamais foi ajudar o ser humano, mas sim manipulá-lo como poucas vezes na História, numa revolta da tecnologia que só pode ser compreendida adequadamente como o complemento da revolta que o próprio homem quis realizar contra a sua intrínseca fragilidade.

Um dos pontos mais interessantes de Redes, Liberdades e Controle é que Benjamin Loveluck parece estar realmente surpreso com essa conclusão. Ora, se ele tivesse lido Bernanos, nada disso teria sido uma aparente novidade em seu projeto. O romancista francês, acusado de ser um “católico carola” – e mesmo sem ter tido acesso à internet, pois morreu em 1948 –, percebeu que a modernidade seria um projeto corrompido em sua essência, dominando o homem em todos os seus graus e estratos, exceto um: o da imbecilidade.

Assim como Raymond Aron e Eric Voegelin, Bernanos reconhece que talvez o principal impulso da história humana é a estupidez dentro de todos nós. E isto não seria uma exceção com o modo como passamos a lidar com a técnica e a tecnologia. Mas um aviso: não se trata da estupidez pura e simples, do néscio que não consegue raciocinar adequadamente por algum impedimento de informação ou cognitivo. É algo mais profundo. Ele fala do imbecil que se considera alguém realmente inteligente, absolutamente incapaz de reconhecer a “inteligência humilhada” de que tanto falou Santo Agostinho em Confissões e que foi meditado recentemente pelo filósofo Jonas Madureira em um livro de mesmo nome – leitura obrigatória para quem quiser escapar desse círculo vicioso. 

Com sua escrita ferina, Bernanos dá a perfeita definição do que é um estúpido hoje: “A experiência me demonstrou há muito tempo que o imbecil nunca é simples, e muito raramente é ignorante. O intelectual deveria, portanto, por definição, parecer-nos suspeito? Certamente. Chamo intelectual ao homem que dá a si mesmo esse título, em razão dos acontecimentos e diplomas que possui. Não falo, evidentemente, do erudito, do artista ou do escritor cuja vocação é criar – para os quais a inteligência não é uma profissão, mas uma vocação. O intelectual é com tanta frequência um imbecil que deveríamos tomá-lo sempre como tal, até que nos tenha provado o contrário.”

Aqui, o centro da questão é que o intelectual se tornou um dependente da técnica e da tecnologia por não assumir as falhas do seu pensamento ao refletir sobre as sutilezas da realidade. Daí sua defesa encarniçada de uma inteligência vendida aos robôs há muito tempo, amputada da vida espiritual que seria o verdadeiro fundamento da nossa sociedade. Muito antes de Benjamin Loveluck, o autor de Diálogo das Carmelitas já tinha percebido a tecnologia como mais uma forma de controlar a liberdade interior do ser humano, dando-lhe em troca uma precária liberdade exterior que se uniria com o pior dos totalitarismos – o do imbecil como o único governante possível.

Sem dúvida, os progressistas acusarão A França Contra os Robôs de ser mais um panfleto “ludita” – uma referência à seita apocalíptica do século 19, fundada por Ned Ludd, que pretendia abolir as máquinas –, optando assim pela análise pretensamente mais equilibrada de Benjamin Loveluck. Será também a prova que não entenderam nada do próprio assunto do qual tiram o seu sustento: afinal de contas, a revolta da tecnologia contra o ser humano foi provocada por essa mesma “cólera dos imbecis” que criou as carnificinas globais do nazismo, do comunismo e do fascismo. E se hoje esquecemos desta importante lição, aparentemente protegidos pela liberdade controlada da “rede das redes”, é sinal que merecemos a desgraça que se abate sobre os estúpidos de sempre, profetizada pelo espírito visionário (e perturbador) de Georges Bernanos.*Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada História da Literatura Brasileira'

E foi nos confins do mundo, no interior de Minas Gerais, mais precisamente em um bairro miserável de Barbacena, no início dos anos 1940 – em plena 2.ª Guerra Mundial – que o escritor francês Georges Bernanos viu nada menos que o futuro. 

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Alicia Vikander em cena de 'Ex Machina' (2014) Foto: Universal Pictures

+Como o connoisseur de arte trabalha ao lado da tecnologia

Ele morava em um sítio modesto, exilado da sua querida França e dos espectros políticos – os da direita, os da esquerda, os do centro, enfim, os que não levam a lugar nenhum –, após ter publicado Os Grandes Cemitérios sob a Lua (1938), a sua polêmica obra-prima sobre os desastres que levaram à Guerra Civil Espanhola (e, por consequência, à ousadia de Hitler e de Stalin contra a Europa), quando teve uma iluminação assustadora sobre o que motivava a “cólera dos imbecis” então em voga nos quatro cantos da Terra.

Tratava-se do fato de que “os regimes outrora opostos pela ideologia estão agora estreitamente unidos pela técnica”, como ele escreveu em A França Contra os Robôs (É Realizações), outra obra-prima de retórica bombástica, lançada em 1945, tão espetacular quanto Os Grandes Cemitérios, com a diferença de que, desta vez, Bernanos não está refletindo sobre o presente ou o passado, como supõem seus detratores. Ele faz o que sempre fez, em especial nos seus magníficos romances, como Diário de um Pároco de Aldeia ou Sob o Sol de Satã (transformados em filmes impecáveis por, respectivamente, Robert Bresson e Maurice Pialat): põe a eternidade à frente do nosso focinho, igual a um trauma do qual não temos como fugir, como se fôssemos os cachorros que buscam desesperadamente por um pouco de alimento neste chão imundo da existência.

Contudo, há uma inovação (certamente, uma palavra desprezada no vocabulário do criador de Mouchette) neste panfleto aflitivo, escrito por este homem possuído por uma lucidez implacável. Se antes alguém poderia acusá-lo de “reacionarismo” por rejeitar o “progresso” da História, agora Bernanos reconhece que não há outra forma exceto aceitar a tal da “técnica” como motor permanente da condição humana, em especial após o término da 2.ª Guerra.

Mas ele não vê este fenômeno de maneira positiva ou negativa. Bernanos tem a capacidade de transformar a palavra em um ato de visão imparcial – visão que, entretanto, é lançada ao mundo como a lava do vulcão que destrói a cidade ao lado. Machuca, incomoda, dilacera. Infelizmente, não é o que acontece com seu conterrâneo, Benjamin Loveluck, que, ao escrever sobre o mesmo tema em Redes, Liberdades e Controle (Vozes) cerca de 70 anos depois, consegue descrever o “estado da arte” da nossa atual situação tecnológica, mas é incapaz de falar nada demais sobre o “estado da questão” de algo que Bernanos captou com precisão. 

Loveluck inspirou-se nos trabalhos filosóficos de Michel Foucault e de Marcel Gauchet sobre como a democracia liberal é uma ideologia política que tenta substituir o vazio existencial provocado pelo que Max Weber chamou de “o desencantamento do mundo”. Ao expandir este tema para uma análise detalhada de como a internet se aproveitou do liberalismo clássico para construir uma visão de mundo peculiar, o cientista político francês – também pesquisador na Telécom Paris Tech, um think tank criado por empresas de telecomunicações para refletir sobre o conturbado cenário deste “admirável mundo novo” da política – quer provar ao leitor que jamais se deve identificar “a rede das redes” como integralmente assimilada ao que conhecemos sob o nome de “sociedade civil”.

Porém, é exatamente isso o que nós fazemos no clima de opinião que domina nas universidades, redações e mesas de bar. A internet seria o reino da necessidade transformada no reino da liberdade, onde as pessoas finalmente teriam a autossuficiência para governar suas vidas sem uma instituição centralizadora, que domine a propriedade privada e o fluxo das informações – ou, pelo menos, é o que passamos acreditar como se fosse uma nova “religião política”, digna daquelas ideologias totalitárias que Bernanos já achincalhava. Loveluck mostra que isso não passa de uma triste ilusão. Apesar do liberalismo metamorfoseado na ideologia californiana do libertarianismo hippie de Silicon Valley – e depois na libertinagem do comportamento humano redimido pela tecnologia –, a internet nunca teve a liberdade como seu fim. Era apenas mais uma ferramenta de controle, cuja intenção primeira jamais foi ajudar o ser humano, mas sim manipulá-lo como poucas vezes na História, numa revolta da tecnologia que só pode ser compreendida adequadamente como o complemento da revolta que o próprio homem quis realizar contra a sua intrínseca fragilidade.

Um dos pontos mais interessantes de Redes, Liberdades e Controle é que Benjamin Loveluck parece estar realmente surpreso com essa conclusão. Ora, se ele tivesse lido Bernanos, nada disso teria sido uma aparente novidade em seu projeto. O romancista francês, acusado de ser um “católico carola” – e mesmo sem ter tido acesso à internet, pois morreu em 1948 –, percebeu que a modernidade seria um projeto corrompido em sua essência, dominando o homem em todos os seus graus e estratos, exceto um: o da imbecilidade.

Assim como Raymond Aron e Eric Voegelin, Bernanos reconhece que talvez o principal impulso da história humana é a estupidez dentro de todos nós. E isto não seria uma exceção com o modo como passamos a lidar com a técnica e a tecnologia. Mas um aviso: não se trata da estupidez pura e simples, do néscio que não consegue raciocinar adequadamente por algum impedimento de informação ou cognitivo. É algo mais profundo. Ele fala do imbecil que se considera alguém realmente inteligente, absolutamente incapaz de reconhecer a “inteligência humilhada” de que tanto falou Santo Agostinho em Confissões e que foi meditado recentemente pelo filósofo Jonas Madureira em um livro de mesmo nome – leitura obrigatória para quem quiser escapar desse círculo vicioso. 

Com sua escrita ferina, Bernanos dá a perfeita definição do que é um estúpido hoje: “A experiência me demonstrou há muito tempo que o imbecil nunca é simples, e muito raramente é ignorante. O intelectual deveria, portanto, por definição, parecer-nos suspeito? Certamente. Chamo intelectual ao homem que dá a si mesmo esse título, em razão dos acontecimentos e diplomas que possui. Não falo, evidentemente, do erudito, do artista ou do escritor cuja vocação é criar – para os quais a inteligência não é uma profissão, mas uma vocação. O intelectual é com tanta frequência um imbecil que deveríamos tomá-lo sempre como tal, até que nos tenha provado o contrário.”

Aqui, o centro da questão é que o intelectual se tornou um dependente da técnica e da tecnologia por não assumir as falhas do seu pensamento ao refletir sobre as sutilezas da realidade. Daí sua defesa encarniçada de uma inteligência vendida aos robôs há muito tempo, amputada da vida espiritual que seria o verdadeiro fundamento da nossa sociedade. Muito antes de Benjamin Loveluck, o autor de Diálogo das Carmelitas já tinha percebido a tecnologia como mais uma forma de controlar a liberdade interior do ser humano, dando-lhe em troca uma precária liberdade exterior que se uniria com o pior dos totalitarismos – o do imbecil como o único governante possível.

Sem dúvida, os progressistas acusarão A França Contra os Robôs de ser mais um panfleto “ludita” – uma referência à seita apocalíptica do século 19, fundada por Ned Ludd, que pretendia abolir as máquinas –, optando assim pela análise pretensamente mais equilibrada de Benjamin Loveluck. Será também a prova que não entenderam nada do próprio assunto do qual tiram o seu sustento: afinal de contas, a revolta da tecnologia contra o ser humano foi provocada por essa mesma “cólera dos imbecis” que criou as carnificinas globais do nazismo, do comunismo e do fascismo. E se hoje esquecemos desta importante lição, aparentemente protegidos pela liberdade controlada da “rede das redes”, é sinal que merecemos a desgraça que se abate sobre os estúpidos de sempre, profetizada pelo espírito visionário (e perturbador) de Georges Bernanos.*Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada História da Literatura Brasileira'

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