Seria um disco do Ira!, um bom disco do Ira!, com as guitarras timbrando e as composições de Edgard Scandurra em plena forma criativa, mesmo nas métricas nem sempre polidas para a interpretação que Nasi conseguiu reinventar a si mesmo usando as limitações da própria voz. Um disco importante, lançado 13 anos depois do que havia sido o último de inéditas antes da confrontação entre os integrantes e o fim, Invisível DJ. Ira, o novo álbum, não por acaso sem o ponto de exclamação, já seria um marco importante se fosse lançado até janeiro de 2020, mas agora ganha ainda outra significância quando soa como se estivesse atendendo a um chamamento. No momento em que o País desmorona, o rock and roll, ou a parte de resistência que lhe restou depois da debandada conservadora, também pode soar como uma esperança.
A esperança que soa em Ira, o primeiro disco da banda paulistana a levar seu próprio nome no título, não é de panfletos, apesar de letras como O Homem Cordial Morreu trazer versos como “e se eu me distanciar do que clama meu interior / que seja por um instante e que eu saia do torpor / de ver tudo acabar, tudo o que se sonhou / esperando por alguém que vá e lute por mim / não pode ser assim / que eu esteja ao seu lado / lado a lado por favor”. A força de canções inteiramente novas – e o inteiramente não é pleonasmo no caso de canções – é uma quase milagrosa reação em si de uma banda liderada por dois homens de 58 anos dada por muitos como produtivamente extinta mesmo com um show redentor para milhares de pessoas na Virada Cultural de 2014, no pós rompimento. Seu retorno às rotativas sobretudo com músicas como O Amor Também Faz Errar, Mulheres à Frente da Tropa, A Torre e O Homem Cordial Morreu acessam as matizes do Ira! sem acessar o velho Ira! E quando um fã sente isso, ele percebe que, apesar de algumas baixas, muitos de seus heróis ainda caminham a seu lado.
“O Ira sem ponto é para traduzir os tempos da ira em que estamos vivendo, esse sentimento de confronto. Não tínhamos também nenhum álbum com o nome da banda”, diz Nasi. O disco já estava praticamente pronto quando a pandemia atropelou o mundo, por isso não entenda errado a frase da música Nossa Amizade quando ela diz “deixemos assim, alguns metros de distância, agora é assim. Atrás das paredes de concreto, deixamos assim”. Ao olhar para trás, Nasi diz o que vê. Ele não queria fazer o projeto Ira! Folk, foi resistente, mas acabou aceitando o argumento do irmão, Airton Junior, de que o formato o colocaria em teatros que nunca viram as bandas de rock com muito carinho. Sobre o disco Invisível DJ, de 2007, ele avalia com ressalvas. “Eu fui convencido a fazer, mas entendo que aquele é um disco mais ou menos do Ira!”
O tempo passou e a banda volta em uma configuração que redistribui a política interna, o que pode facilitar o fluxo de operações. Com o baterista Evaristo Pádua e o baixista Johnny Boy, como diz Nasi, a sonoridade dos registros da banda é respeitada ao mesmo tempo em que as decisões não precisam mais passarem pelas desgastantes votações dos quatro integrantes originais. “Não que Johnny e Evaristo não sejam importantes, claro que são, mas quero dizer que a tocha está nas nossas mãos.” Aos fãs que perguntarem até onde pode durar o novo armistício entre Nasi e Edgard, ou Nasi e seu próprio irmão que também trabalha a seu lado, Junior, Nasi diz: “Olha, sendo bem sincero, nós do grupo sabemos que um dia podemos decidir uma parada, mas isso não será mais da forma como foi, com brigas. Podemos hoje fazer isso com tranquilidade.”
O Ira!, assim como o próprio rock and rol, surge de um universo majoritariamente masculino, muitas vezes machista. Assim, vira um outro marco do disco a canção Mulheres à Frente da Tropa, composta e cantada por Edgard Scandurra. “Achei ótimo quando ele pediu para cantar essa, sempre tivemos algo no disco em que ele canta”, diz o vocalista. A canção tem algumas das ideias de arranjos mais belas do álbum, aquelas que o grupo costuma acertar quando sai do formato de front do rock e parte para cordas e outras sensibilidades. Scandurra lembra que sua trajetória está cercada de trabalhos com mulheres, desde sua passagem pelo grupo As Mercenárias, em 1983, até produções e participações em trabalhos de cantoras, além das parcerias que fez para criar as novas canções, como as duas com Silvia Tape (Respostas e Você Me Toca) e uma com Virginie Boutaud (Efeito Dominó). Mas reconhece também que era preciso marcar território, posicionando-se em uma causa dos novos tempos. “Era importante para o Ira! entrar nesse terreno. O rock carrega muito esse estigma do sexo-drogas-rock and roll, existem as lendas das groupies (as mulheres que seguiam as bandas oferecendo-se aos roqueiros), as tietes, um olhar sempre de exploração das fãs, aquele olhar de cima para baixo.” Sua canção, com cordas de violão dedilhadas em acordes abertos, cria um clima reconfortante para versos implacáveis: “Ouçam os gritos das ruas / peito à mostra, vozes agudas / ouçam as bombas que caem no solo / tremem os corpos das crianças de colo / mulheres à frente da tropa... / Jovens mulheres, adolescentes / lutam por todos até os descrentes / imóveis ficamos sem reação / somente nos restam os calos nas mãos / mulheres à frente da tropa.” Há um coro de mulheres, entre elas a cantora Virginie Boutaud, da banda Metrô, e um belo clipe gravado nas dependências da Ocupação 9 de Julho, dirigido por Luciana Sérvulo, que conta uma história a partir do sonho de uma senhora que cochila em sua poltrona.
Manter a sonoridade do Ira! relevante em 2020 foi também, na fala dos integrantes, uma conquista do produtor Apollo 9, um conhecedor de anos da sonoridade sem grandes concessões da banda. O que se ouve é um álbum de solos de guitarra elásticos, sem as métricas de tempos milimetrados de outros discos, e com canções com muitas possibilidades de aberturas para serem destrinchadas em shows ao vivo, assim que for possível fazê-los. “O conceito de guitarra nesse disco acabou se tornando algo super forte, o que nem sempre aconteceu em outros álbuns”, diz Scandurra. “A gente às vezes se preocupa com as canções, os arranjos, a estética, e quando vê, a guitarra está escondida lá atrás, pequena na composição.” A crítica muitas vezes chamou a atenção para uma certa adolescência nas letras de Edgard em outros discos, o compositor de quase tudo no grupo. Os anos precisavam passar para que pudesse contar aquilo que se viveu, ou o que não viveu, assim que chegasse vivo a 2020.
Crítica: Que seja deles o primeiro grande show
O Ira! se fez sobre uma das sonoridades mais férteis do rock, baseada nas bandas inglesas dos anos 1960, o que lhe permitiu seguir o que propôs desde Mudança de Comportamento, em 1985, sem se tornar repetitivo. Os mesmos críticos que apontaram com alguma razão para um texto excessivamente juvenil também elogiavam a forma como o grupo conseguira atravessar tantos anos sem macular uma discografia com algum disco menor, apesar das ressalvas do próprio Nasi ao de fato menos importante Invisível DJ, de 2007. Ira, o disco que chega nesta sexta (5) às plataformas, é uma vitória sobretudo da composição de Edgard Scandurra, com justiça feita a toda a presença que Nasi consiga com sua persona, muitas vezes tão ou mais forte até do que a própria voz. Mesmo tantos anos depois de compor para o parceiro cantar pela última vez, Edgard soube guardar o lugar da banda em si, mesmo ainda depois de decretá-la morta e com vários outros compartimentos criados de 2000 para cá, e reacessá-lo para trazer um espírito de volta. De tão forte, a marca que este grupo imprimiu parece sólida a ponto de ser ativada com originalidade sem que se proponha um instrumento a mais como novidade. O Ira! está tinindo, e deveria fazer o primeiro show de estádio da reabertura, assim que isso for possível, para lavar as ruas e as almas.