O diário que a garota síria Myriam Rawick mantém sobre seu cotidiano em Alepo chega ao Brasil pela editora Darkside e cobre desde 2011, no auge das revoltas da população contra Bashar al-Assad, durante a primavera árabe – quando Myriam tinha seis anos –, até 2017, após a cidade ser libertada dos jihadistas pelo exército sírio. Pelos olhos da criança, o leitor é apresentado à antiga e farta Alepo – com seus suques (mercados), ruas cheias de gente, sorvetes de flores e o chá de gengibre –, para depois ser, aos poucos, transportado aos primeiros contatos com a guerra, como quando Myriam e sua irmã Joelle brincam na varanda com “pedacinhos de metal dourado” que pareciam ouro, mas eram balas de metralhadora. Passamos paulatinamente a uma Alepo completamente destruída, com o cheiro de pólvora das bombas e poeira, as ruas vazias, os túmulos brancos, além da escassez de água, energia, comida e roupa.
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Com fotos do brasileiro Yan Boechat e edição do jornalista francês Philippe Lobjois, ficam claras durante a leitura as intervenções do repórter para dar ao diário um fio narrativo inteligente, com metáforas habilidosas, dificilmente criadas por uma criança. Apesar disso, a edição, é feita de modo a não perder a autenticidade de Myriam e há sempre o contraste entre o mundo adulto e o infantil, além das diferentes formas de perceber a mesma situação, como no momento em que familiares começam a acompanhar Myriam no trajeto para a escola, cada vez mais perigoso. Todavia, para ela, a novidade é boa, pois no caminho seu pai compra um “bolinho de massa folheada com pistache”.
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É através de relatos como esse que o livro ganha vida. O tempo todo o leitor se vê supondo como a própria rotina seria se esse tipo de conflito ocorresse no lugar em que vive, ou lembra da própria infância, quando o olhar está mais no presente do que no futuro. Questionado sobre o motivo de retratar a guerra pelos olhos de uma criança, Lobjois explica: “Acho que é interessante colocar os sentimentos das crianças porque há algo novo e mágico sobre como veem. São partes inocentes, quando entramos na vida adulta não temos mais, mas as crianças têm e temos que proteger isso.”
Processo. A história da publicação do Diário de Myriam é intrigante tanto na edição francesa quanto na brasileira. Lobjois chegou em Alepo em dezembro de 2016, quando Bashar al-Asssad reassumiu o controle da cidade, e ficou cerca de um mês conhecendo histórias até descobrir a minoria cristã síria, que tinha sido afastada de suas casas e era refugiada no próprio país.
Foi por meio de Georges, irmão da organização cristã de ensino Maristas Azuis, que Lobjois encontrou Myriam e sua mãe, Antonia, pela primeira vez. Esta lhe mostrou o diário da filha e contou que a menina já tinha o hábito de desenhar e escrever, por isso ela a teria estimulado a registrar as memórias. Assim, o correspondente de guerra pediu a um tradutor que passasse as 50 páginas manuscritas para o francês. “Eu ainda não sabia o que tinha no diário, mas pensei que havia algo ali.” Depois que decidiram transformar os relatos em um livro, as entrevistas com Myriam começaram e Lobjois incentivou que ela continuasse escrevendo. No entanto, havia uma “lacuna na memória em certa parte do passado” e, nesses momentos, eles criaram juntos. “Coloquei o meu dedo e dizia: ‘pense sobre essa impressão. Você lembra disso?’”
Foi em junho do ano passado que o Diário ganhou as livrarias da França, publicado pela Fayard. Um jornal infantil brasileiro, o Joca, noticiou o lançamento e o interesse dos leitores mirins foi tamanho que o veículo recebeu cerca de 200 cartas para que o Diário de Myriam fosse publicado no Brasil. A maior parte vinha da Emef Prof. Laerte José dos Santos, em Osasco. Em uma das cartas à qual o Estado teve acesso, Pedro Henrique, na época no 5.º ano do Ensino Fundamental, diz: “Nossa, como eu queria ler o livro. É uma curiosidade tãooo grande (...) eu queria saber como os refugiados vivem, deve ser triste ir de um lugar para o outro”. Em outra, Nicoly explica: “De todo o coração, pedimos com muito amor para vocês traduzirem para a língua portuguesa (do Brasil)”.
Segundo Stéphanie Habrich, que assina o prefácio à edição brasileira e é fundadora do Joca, sem os pedidos ela não teria ido atrás de uma editora para a tradução. “Prometi a mim que este livro sairia em português a qualquer custo.” Apesar de várias negativas, Habrich finalmente achou uma editora que não só tinha interesse, mas já estava avaliando a obra para publicação. Questionada sobre o motivo de tantos estudantes brasileiros terem se interessado pela história da garota síria, Habrick explica: “A criança se identifica com outras da mesma idade que vivem em outros países. Ela se torna protagonista, entendendo o que se passa, e a vontade de ler é instigada pela curiosidade”.
Em uma das cartas enviadas, Kauã mostra toda a sua dúvida e coragem: “Não tem nem uma casa inteira, não sei como ainda tem gente que mora lá! (...) Se eu fosse rico, ia comprar um barco e tirar a Myriam.” Segundo Lobjois, esse pensamento foi o mesmo dos franceses quando Myriam fez uma breve visita ao seu país. “As pessoas estavam perguntando: ‘agora que está em Paris, vai ficar por aqui?’, e ela disse: ‘Eu quero voltar de novo para a Síria, a Síria é o meu país, é o meu mundo’. Eu sou testemunha, há muita gente que fica porque eles não querem sair de lá”, conta. Por outro lado, o jornalista afirma que há uma falsa crença de que os imigrantes são pessoas que viviam na pobreza antes de ir embora de seus países. “Para sair da Síria, custa em média de três a dez mil euros”.
Assunto de criança. No livro, há um trecho em que Myriam pergunta: “Papai, o que é revolução?” e Josef responde, como em tantas outras vezes: “Não é assunto para crianças, Myriam.” Mais tarde, quando foram obrigados a deixar o apartamento no antigo bairro de Jabal Sayid por causa da invasão do Estado Islâmico, Myriam encontra uma grande agitação na rua e carros queimados ao voltar de um passeio. “Papai me disse que ele não queria contar nada para não assustar Joelle (...) Mas que era verdade, teve um míssil que caiu e tinha destruído tudo no prédio na frente de casa.”
Ao longo do Diário, o leitor percebe com nitidez como os adultos tentam proteger as crianças, assim como nota a esperteza e observação dos pequenos. Os horrores também são retratados, como quando a garota sabe de um familiar que levou um tiro na cabeça e de outro que foi raptado. Ela percebe poças de sangue, ouve sobre crianças mortas e conversa com outra menina, traumatizada por ver a irmã morrer. Dessa forma, uma pergunta paira: a guerra na Síria é assunto também para as crianças de qualquer lugar do mundo?
Para Stéphanie Habrich e Philippe Lobjois, sim. O jornalista diz pensar que o livro “é realmente para todos e crianças de 11 e 12 anos podem ler”. Já a fundadora do Joca, alega que as crianças com quem conversou dizem que “as fatalidades chocantes as deixam tristes por um lado, porque se colocam no lugar de Myriam, mas que ler esse tipo de acontecimento ajuda a achar forças para passarem por problemas que parecem grandes, mas perto dos de Myriam são muito pequenos”.
Habrich garante ainda que, atualmente, as crianças acabam sabendo das informações. “Ouvem adultos falando, rádio, TV, navegam pela internet e não sabem distinguir o verdadeiro do falso, os acontecimentos muitas vezes podem até gerar ansiedade quando não compreendidos por elas”, explica. Por isso, para Habrich, é importante não tentar criar os filhos dentro de uma bolha, mas procurar “ensinar a eles o mundo”.
Além disso, a fundadora do Joca e o jornalista acreditam que o Diário de Myriam pode inspirar outras crianças a escreverem seus relatos. Conteúdo para isso, infelizmente, não faltaria. Assim como o Diário de Anne Frank – uma judia enviada para o campo de concentração pelos nazistas na segunda guerra mundial – e, mais tarde, a história da garota Malala – a paquistanesa que, ainda na adolescência lutou pelo direito das garotas frequentarem a escola e foi a pessoa mais jovem a ganhar o Prêmio Nobel da Paz, em 2014 – foram lidas em diversos países, há nos livros mais recentes uma oportunidade para chamar a atenção das pessoas.
Uma obra que acaba de sair pela editora BestSeller e também se passa na Síria é Querido Mundo, contado pela garota Bana Alabed, de nove anos, que ficou conhecida por seus relatos sobre a guerra e pedidos de paz no Twitter usando a hashtag #StandwithAleppo. Já no nosso País, em 2017, um projeto da AlphaGraphics, Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado) e Estante Mágica (plataforma que estimula a publicação de escritos de alunos) lançou uma coleção de livros infantis recheado de frases, desenhos e histórias de 22 crianças refugiadas no Brasil que tinham entre 5 e 13 anos.
Para Lobjois a situação na Síria não deve melhorar tão cedo. “Não está terminado, há algo vagaroso no momento, mas não é o fim. Eu penso que no final Assad vai controlar de 60 a 65% do território e haverá a Síria, um território do Curdistão e uma pequena parte turca. É bem complicado, porque há muitos protagonistas que estão atuando em diferentes funções nessa guerra. Todo mundo quer uma parte da Síria, todo mundo quer pegar alguma coisa”, opina ele. “Nós podemos nos matar uns aos outros, mas tirem os animais e as crianças, sinceramente, por que eles não têm que sentir isso.” *Bruna Meneguetti é jornalista, autora de 'O Céu de Clarice' e coautora de 'Corações de Asfalto' (editora Patuá); é vencedora do 1.º Edital para Publicação de Livros da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo com seu romance histórico 'O Último Tiro de Guanabara'