Diário dos irmãos Goncourt reúne fofocas literárias do século 19


Avultam, em atitudes informais e até íntimas, figurinhas carimbadas como Flaubert, Zola, Sainte-Beuve, Dumas, Maupassant, Turguêniev, Victor Hugo, Mallarmé, Verlaine, Rodin, Degas, Delacroix e Manet

Por Paulo Nogueira
Atualização:

Os irmãos Jules e Edmond Goncourt foram escritores franceses do século 19. Eram badalados, mas nunca alcançaram nem as vendas nem o pedigree de seus discípulos Émile Zola e Alphonse Daudet, expoentes do Naturalismo. Tanto que os manos viviam chorando as pitangas contra a imprensa, que tampouco paravam de adular, no estilo “falem mal, mas falem de mim”. 

Os irmãos Edmond e Jules Goncourt Foto: Falix Nadar/Carambaia

A especialidade da casa eram os “estudos históricos”, que realçavam mais o detalhe sugestivo do que os murais amplos – pressagiando a futura “história das sensibilidades”, de Marc Bloch e Lucien Febvre –, e mais romances e peças da mesma estirpe. Jules e Edmond escreviam a quatro mãos, para a perplexidade de Evelyn Waugh: “Nunca entendi como dois homens podem se juntar para escrever um livro. Para mim, é como precisar de três pessoas para produzir um filho.” Mas os irmãos correspondiam a siameses espirituais – tanto que, depois da morte de Jules (de sífilis), Edmond continuou por 39 anos a escrever do mesmo jeitinho, num estilo que parecia mediunicamente formatado.  Eram os dois (e sua panelinha) contra o mundo. Os Goncourt adoravam odiar muita coisa: a depravação do poeta Verlaine, o misticismo dos escritores russos, as cervejarias. E assumiam as pirraças: “Não escondemos o fato de termos sido criaturas apaixonadas, patologicamente impressionáveis e eventualmente injustas.” Botem eventualmente nisso. Os Goncourt eram baladeiros que só: menos aos domingos, quando a balada jogava em casa – abriam de par em par seu salão para comes & bebes e deitavam falação. Às vezes, o caldo entornava e rolava um duelo, de esgrima ou pistola. Fosse como fosse, Jules e Edmond eram os influencers da época: “Vi homens e mulheres nos tomarem como modelos de vida, nossos gostos, o gosto pelas tiragens impressas em papéis de luxo, pelos quartos com tetos cobertos por tecidos, pelos móveis japoneses, gostos em culinária; plagiaram até nossos coletes e nossas meias!” O contexto histórico efervescente dava uma mãozinha: do zênite do Segundo Império francês ao inseguro início da Terceira República. Contudo, os Goncourt perduram menos pelo sua obra do que por um prêmio e um diário – ambos com longevidade e carisma assombrosos. O Diário dos Goncourt começou a ser escrito em 2 de dezembro de 1851: “dia do início da venda do nosso primeiro livro” – mas também do golpe de Estado de Luís Bonaparte (sobrinho de Napoleão, zoado por Victor Hugo como “Napoleão, o Pequeno”). Luís foi o primeiro presidente francês eleito por voto direto. Porém, impedido pela Constituição de concorrer a um segundo mandato, apelou para o golpismo e assumiu o trono como imperador, Napoleão III (sim, dá calafrios, não dá?). O Diário só foi publicado na íntegra (4.500 páginas) 50 anos depois da morte de Edmond (esta edição é uma antologia). Um livro de fofocas? Ô! Mas finíssimas, algo como um foie gras cultural. Até Nietzsche lambeu os beiços (e, por inerência, os bigodes) ao saber da novidade: “É o lançamento mais interessante da estação”. Isto é: uma espécie de grupo do Zap hackeado – só que um grupo alfabetizado e instruído. Ao ler o Diário hoje, a sensação é não apenas como se espiássemos por um buraco de fechadura, mas por um buraco de minhoca, pegando todos aqueles colunáveis de calça curta – e não apenas através do relato desossado por um historiador. Avultam, em atitudes informais e até íntimas, figurinhas carimbadas como Flaubert, Zola, Sainte-Beuve, Dumas, Maupassant, Turguêniev, Victor Hugo, Mallarmé, Verlaine, Rodin, Degas, Delacroix e Manet. Além de outros que agora são mais anônimos do que o Soldado Desconhecido (mas perfilados no fim desta linda edição da Carambaia, com impecáveis tradução e prefácio de Jorge Bastos).  E tomem acontecimentos palpitantes como a Guerra Franco-Prussiana (mais uma surra alemã nos franceses), a Comuna de Paris, as Exposições Universais e as novidades irresistíveis – como a bicicleta e a Torre Eiffel.  Durante o jantar, um comensal olhava para a cadeira ao lado e: “Flaubert aproveita a deixa, com sua truculência habitual: ‘O teatro não é uma arte, é um truque. Para começar, é preciso tomar umas doses de absinto. Depois, dizer de qualquer peça: ‘Não é ruim, mas… precisa de cortes!’. Em seguida, repetir: ‘Não que seja ruim… mas não é uma peça!’. O principal é ter um projeto, nunca uma peça…” E ficamos sabendo que Flaubert não aceitou adaptar Madame Bovary para o teatro: “Uma ideia só dá para um formato!” Talvez já fosse o absinto falando. E o tal prêmio? Goncourt é o nome do principal prêmio literário da França, entre os 1500 existentes (quase um para cada autor, que ninguém é de ferro. E OK, é também uma estação de metrô e uma avenida de Paris). Trata-se de um prêmio em dinheiro, de míseros 10 euros, que no entanto suscita cobiça e salivação gorgolejante. No dia do anúncio, o feliz contemplado vira um icônico best seller.  O valor pecuniário são os mesmos 5 mil francos (antigos) iniciais, apenas muito desvalorizados pelo tempo. Os acadêmicos Goncourt (só escritores), em comum acordo, prescindiram dos honorários. Eles elegem os vencedores todos os meses de dezembro (e às vezes em novembro, para robustecer as vendas de Natal), no mesmo restaurante Drouant, em Paris, frequentado por Edmond. Quando Edmond morreu, em 1896, determinou em testamento que seu parceiro Daudet deveria constituir uma sociedade literária e atribuir um prêmio anual de romance. Para pertencer à Academia Goncourt é preciso ser escolhido pelos restantes membros, após a morte ou saída de um destes. É condição obrigatória ser autor de língua francesa, o que permitiu em 1996 a eleição do espanhol Jorge Semprún, que escrevia em francês. Desde 1903 o prêmio já mimoseou autores como Marcel Proust (para vexame e contrição eterna de André Gide, que tinha recusado a publicação de O Caminho de Swann), André Malraux. Simone de Beauvoir, Romain Gary, Patrick Modiano e Marguerite Duras, entre outros. Atualmente, a atribuição do Goncourt garante uma venda de pelo menos 300 mil exemplares. O único escritor que o recusou foi Julien Gracq, em 1951. O Goncourt só por uma vez não foi concedido: em 1914, devido ao início da 1ª Guerra Mundial. O Goncourt de 2020 foi antecipado para maio, a fim de ajudar as livrarias francesas, que reabrem as portas depois da pandemia da covid-19. O vencedor foi Le Tiers Temps, de Maylis Besserie. Na obra, o personagem Samuel Beckett, que se encontra em um lar de idosos, evoca episódios e pessoas que marcaram sua vida. Quem sabe, esperando Godot e dando uma filadinha no Diário, dos Goncourt. *PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Os irmãos Jules e Edmond Goncourt foram escritores franceses do século 19. Eram badalados, mas nunca alcançaram nem as vendas nem o pedigree de seus discípulos Émile Zola e Alphonse Daudet, expoentes do Naturalismo. Tanto que os manos viviam chorando as pitangas contra a imprensa, que tampouco paravam de adular, no estilo “falem mal, mas falem de mim”. 

Os irmãos Edmond e Jules Goncourt Foto: Falix Nadar/Carambaia

A especialidade da casa eram os “estudos históricos”, que realçavam mais o detalhe sugestivo do que os murais amplos – pressagiando a futura “história das sensibilidades”, de Marc Bloch e Lucien Febvre –, e mais romances e peças da mesma estirpe. Jules e Edmond escreviam a quatro mãos, para a perplexidade de Evelyn Waugh: “Nunca entendi como dois homens podem se juntar para escrever um livro. Para mim, é como precisar de três pessoas para produzir um filho.” Mas os irmãos correspondiam a siameses espirituais – tanto que, depois da morte de Jules (de sífilis), Edmond continuou por 39 anos a escrever do mesmo jeitinho, num estilo que parecia mediunicamente formatado.  Eram os dois (e sua panelinha) contra o mundo. Os Goncourt adoravam odiar muita coisa: a depravação do poeta Verlaine, o misticismo dos escritores russos, as cervejarias. E assumiam as pirraças: “Não escondemos o fato de termos sido criaturas apaixonadas, patologicamente impressionáveis e eventualmente injustas.” Botem eventualmente nisso. Os Goncourt eram baladeiros que só: menos aos domingos, quando a balada jogava em casa – abriam de par em par seu salão para comes & bebes e deitavam falação. Às vezes, o caldo entornava e rolava um duelo, de esgrima ou pistola. Fosse como fosse, Jules e Edmond eram os influencers da época: “Vi homens e mulheres nos tomarem como modelos de vida, nossos gostos, o gosto pelas tiragens impressas em papéis de luxo, pelos quartos com tetos cobertos por tecidos, pelos móveis japoneses, gostos em culinária; plagiaram até nossos coletes e nossas meias!” O contexto histórico efervescente dava uma mãozinha: do zênite do Segundo Império francês ao inseguro início da Terceira República. Contudo, os Goncourt perduram menos pelo sua obra do que por um prêmio e um diário – ambos com longevidade e carisma assombrosos. O Diário dos Goncourt começou a ser escrito em 2 de dezembro de 1851: “dia do início da venda do nosso primeiro livro” – mas também do golpe de Estado de Luís Bonaparte (sobrinho de Napoleão, zoado por Victor Hugo como “Napoleão, o Pequeno”). Luís foi o primeiro presidente francês eleito por voto direto. Porém, impedido pela Constituição de concorrer a um segundo mandato, apelou para o golpismo e assumiu o trono como imperador, Napoleão III (sim, dá calafrios, não dá?). O Diário só foi publicado na íntegra (4.500 páginas) 50 anos depois da morte de Edmond (esta edição é uma antologia). Um livro de fofocas? Ô! Mas finíssimas, algo como um foie gras cultural. Até Nietzsche lambeu os beiços (e, por inerência, os bigodes) ao saber da novidade: “É o lançamento mais interessante da estação”. Isto é: uma espécie de grupo do Zap hackeado – só que um grupo alfabetizado e instruído. Ao ler o Diário hoje, a sensação é não apenas como se espiássemos por um buraco de fechadura, mas por um buraco de minhoca, pegando todos aqueles colunáveis de calça curta – e não apenas através do relato desossado por um historiador. Avultam, em atitudes informais e até íntimas, figurinhas carimbadas como Flaubert, Zola, Sainte-Beuve, Dumas, Maupassant, Turguêniev, Victor Hugo, Mallarmé, Verlaine, Rodin, Degas, Delacroix e Manet. Além de outros que agora são mais anônimos do que o Soldado Desconhecido (mas perfilados no fim desta linda edição da Carambaia, com impecáveis tradução e prefácio de Jorge Bastos).  E tomem acontecimentos palpitantes como a Guerra Franco-Prussiana (mais uma surra alemã nos franceses), a Comuna de Paris, as Exposições Universais e as novidades irresistíveis – como a bicicleta e a Torre Eiffel.  Durante o jantar, um comensal olhava para a cadeira ao lado e: “Flaubert aproveita a deixa, com sua truculência habitual: ‘O teatro não é uma arte, é um truque. Para começar, é preciso tomar umas doses de absinto. Depois, dizer de qualquer peça: ‘Não é ruim, mas… precisa de cortes!’. Em seguida, repetir: ‘Não que seja ruim… mas não é uma peça!’. O principal é ter um projeto, nunca uma peça…” E ficamos sabendo que Flaubert não aceitou adaptar Madame Bovary para o teatro: “Uma ideia só dá para um formato!” Talvez já fosse o absinto falando. E o tal prêmio? Goncourt é o nome do principal prêmio literário da França, entre os 1500 existentes (quase um para cada autor, que ninguém é de ferro. E OK, é também uma estação de metrô e uma avenida de Paris). Trata-se de um prêmio em dinheiro, de míseros 10 euros, que no entanto suscita cobiça e salivação gorgolejante. No dia do anúncio, o feliz contemplado vira um icônico best seller.  O valor pecuniário são os mesmos 5 mil francos (antigos) iniciais, apenas muito desvalorizados pelo tempo. Os acadêmicos Goncourt (só escritores), em comum acordo, prescindiram dos honorários. Eles elegem os vencedores todos os meses de dezembro (e às vezes em novembro, para robustecer as vendas de Natal), no mesmo restaurante Drouant, em Paris, frequentado por Edmond. Quando Edmond morreu, em 1896, determinou em testamento que seu parceiro Daudet deveria constituir uma sociedade literária e atribuir um prêmio anual de romance. Para pertencer à Academia Goncourt é preciso ser escolhido pelos restantes membros, após a morte ou saída de um destes. É condição obrigatória ser autor de língua francesa, o que permitiu em 1996 a eleição do espanhol Jorge Semprún, que escrevia em francês. Desde 1903 o prêmio já mimoseou autores como Marcel Proust (para vexame e contrição eterna de André Gide, que tinha recusado a publicação de O Caminho de Swann), André Malraux. Simone de Beauvoir, Romain Gary, Patrick Modiano e Marguerite Duras, entre outros. Atualmente, a atribuição do Goncourt garante uma venda de pelo menos 300 mil exemplares. O único escritor que o recusou foi Julien Gracq, em 1951. O Goncourt só por uma vez não foi concedido: em 1914, devido ao início da 1ª Guerra Mundial. O Goncourt de 2020 foi antecipado para maio, a fim de ajudar as livrarias francesas, que reabrem as portas depois da pandemia da covid-19. O vencedor foi Le Tiers Temps, de Maylis Besserie. Na obra, o personagem Samuel Beckett, que se encontra em um lar de idosos, evoca episódios e pessoas que marcaram sua vida. Quem sabe, esperando Godot e dando uma filadinha no Diário, dos Goncourt. *PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Os irmãos Jules e Edmond Goncourt foram escritores franceses do século 19. Eram badalados, mas nunca alcançaram nem as vendas nem o pedigree de seus discípulos Émile Zola e Alphonse Daudet, expoentes do Naturalismo. Tanto que os manos viviam chorando as pitangas contra a imprensa, que tampouco paravam de adular, no estilo “falem mal, mas falem de mim”. 

Os irmãos Edmond e Jules Goncourt Foto: Falix Nadar/Carambaia

A especialidade da casa eram os “estudos históricos”, que realçavam mais o detalhe sugestivo do que os murais amplos – pressagiando a futura “história das sensibilidades”, de Marc Bloch e Lucien Febvre –, e mais romances e peças da mesma estirpe. Jules e Edmond escreviam a quatro mãos, para a perplexidade de Evelyn Waugh: “Nunca entendi como dois homens podem se juntar para escrever um livro. Para mim, é como precisar de três pessoas para produzir um filho.” Mas os irmãos correspondiam a siameses espirituais – tanto que, depois da morte de Jules (de sífilis), Edmond continuou por 39 anos a escrever do mesmo jeitinho, num estilo que parecia mediunicamente formatado.  Eram os dois (e sua panelinha) contra o mundo. Os Goncourt adoravam odiar muita coisa: a depravação do poeta Verlaine, o misticismo dos escritores russos, as cervejarias. E assumiam as pirraças: “Não escondemos o fato de termos sido criaturas apaixonadas, patologicamente impressionáveis e eventualmente injustas.” Botem eventualmente nisso. Os Goncourt eram baladeiros que só: menos aos domingos, quando a balada jogava em casa – abriam de par em par seu salão para comes & bebes e deitavam falação. Às vezes, o caldo entornava e rolava um duelo, de esgrima ou pistola. Fosse como fosse, Jules e Edmond eram os influencers da época: “Vi homens e mulheres nos tomarem como modelos de vida, nossos gostos, o gosto pelas tiragens impressas em papéis de luxo, pelos quartos com tetos cobertos por tecidos, pelos móveis japoneses, gostos em culinária; plagiaram até nossos coletes e nossas meias!” O contexto histórico efervescente dava uma mãozinha: do zênite do Segundo Império francês ao inseguro início da Terceira República. Contudo, os Goncourt perduram menos pelo sua obra do que por um prêmio e um diário – ambos com longevidade e carisma assombrosos. O Diário dos Goncourt começou a ser escrito em 2 de dezembro de 1851: “dia do início da venda do nosso primeiro livro” – mas também do golpe de Estado de Luís Bonaparte (sobrinho de Napoleão, zoado por Victor Hugo como “Napoleão, o Pequeno”). Luís foi o primeiro presidente francês eleito por voto direto. Porém, impedido pela Constituição de concorrer a um segundo mandato, apelou para o golpismo e assumiu o trono como imperador, Napoleão III (sim, dá calafrios, não dá?). O Diário só foi publicado na íntegra (4.500 páginas) 50 anos depois da morte de Edmond (esta edição é uma antologia). Um livro de fofocas? Ô! Mas finíssimas, algo como um foie gras cultural. Até Nietzsche lambeu os beiços (e, por inerência, os bigodes) ao saber da novidade: “É o lançamento mais interessante da estação”. Isto é: uma espécie de grupo do Zap hackeado – só que um grupo alfabetizado e instruído. Ao ler o Diário hoje, a sensação é não apenas como se espiássemos por um buraco de fechadura, mas por um buraco de minhoca, pegando todos aqueles colunáveis de calça curta – e não apenas através do relato desossado por um historiador. Avultam, em atitudes informais e até íntimas, figurinhas carimbadas como Flaubert, Zola, Sainte-Beuve, Dumas, Maupassant, Turguêniev, Victor Hugo, Mallarmé, Verlaine, Rodin, Degas, Delacroix e Manet. Além de outros que agora são mais anônimos do que o Soldado Desconhecido (mas perfilados no fim desta linda edição da Carambaia, com impecáveis tradução e prefácio de Jorge Bastos).  E tomem acontecimentos palpitantes como a Guerra Franco-Prussiana (mais uma surra alemã nos franceses), a Comuna de Paris, as Exposições Universais e as novidades irresistíveis – como a bicicleta e a Torre Eiffel.  Durante o jantar, um comensal olhava para a cadeira ao lado e: “Flaubert aproveita a deixa, com sua truculência habitual: ‘O teatro não é uma arte, é um truque. Para começar, é preciso tomar umas doses de absinto. Depois, dizer de qualquer peça: ‘Não é ruim, mas… precisa de cortes!’. Em seguida, repetir: ‘Não que seja ruim… mas não é uma peça!’. O principal é ter um projeto, nunca uma peça…” E ficamos sabendo que Flaubert não aceitou adaptar Madame Bovary para o teatro: “Uma ideia só dá para um formato!” Talvez já fosse o absinto falando. E o tal prêmio? Goncourt é o nome do principal prêmio literário da França, entre os 1500 existentes (quase um para cada autor, que ninguém é de ferro. E OK, é também uma estação de metrô e uma avenida de Paris). Trata-se de um prêmio em dinheiro, de míseros 10 euros, que no entanto suscita cobiça e salivação gorgolejante. No dia do anúncio, o feliz contemplado vira um icônico best seller.  O valor pecuniário são os mesmos 5 mil francos (antigos) iniciais, apenas muito desvalorizados pelo tempo. Os acadêmicos Goncourt (só escritores), em comum acordo, prescindiram dos honorários. Eles elegem os vencedores todos os meses de dezembro (e às vezes em novembro, para robustecer as vendas de Natal), no mesmo restaurante Drouant, em Paris, frequentado por Edmond. Quando Edmond morreu, em 1896, determinou em testamento que seu parceiro Daudet deveria constituir uma sociedade literária e atribuir um prêmio anual de romance. Para pertencer à Academia Goncourt é preciso ser escolhido pelos restantes membros, após a morte ou saída de um destes. É condição obrigatória ser autor de língua francesa, o que permitiu em 1996 a eleição do espanhol Jorge Semprún, que escrevia em francês. Desde 1903 o prêmio já mimoseou autores como Marcel Proust (para vexame e contrição eterna de André Gide, que tinha recusado a publicação de O Caminho de Swann), André Malraux. Simone de Beauvoir, Romain Gary, Patrick Modiano e Marguerite Duras, entre outros. Atualmente, a atribuição do Goncourt garante uma venda de pelo menos 300 mil exemplares. O único escritor que o recusou foi Julien Gracq, em 1951. O Goncourt só por uma vez não foi concedido: em 1914, devido ao início da 1ª Guerra Mundial. O Goncourt de 2020 foi antecipado para maio, a fim de ajudar as livrarias francesas, que reabrem as portas depois da pandemia da covid-19. O vencedor foi Le Tiers Temps, de Maylis Besserie. Na obra, o personagem Samuel Beckett, que se encontra em um lar de idosos, evoca episódios e pessoas que marcaram sua vida. Quem sabe, esperando Godot e dando uma filadinha no Diário, dos Goncourt. *PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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