Aquela foi uma semana em que o terrorismo de Estado brasileiro pretendia dar um novo e decisivo passo: o de completar a caçada aos “comunistas da imprensa” - como diriam seus mentores militares, seus beleguins civis, seus empresários bajuladores, seus políticos interesseiros. Inaugurado em 13 de dezembro de 1968, com o AI-5, Ato Institucional n.º 5, e com a apreensão violenta e ilegal de toda a edição do jornal O Estado de S. Paulo, por causa do seu editorial Instituições em Frangalhos, onde se denunciava a formalização da ditadura no Brasil, o regime se aperfeiçoara nas ações militares e policiais, desumanas e alheias à lei, contra as guerrilhas de esquerda, urbanas e rurais, deixando milhares de vítimas nas ruas, nas matas e nos porões da tortura. E legou histórias terríveis que muitos sobreviventes contariam anos depois - inclusive a da presidente Dilma Rousseff. Vencida a guerrilha, desmanteladas suas organizações, era chegada a fase de intimidar ao máximo as oposições políticas que, embora moderadamente, ainda se manifestavam nos jornais e revistas, pois rádios e TVs eram firmemente controlados pela ditadura. Assim se garantiria para muito mais tempo, se não para sempre, o regime do AI-5, de arbítrio e tirania política. Caso contrário, a ditadura teria mais inimigos firmes a combater e aos poucos seu arbítrio e tirania se enfraqueceriam, como acontece com todas as ditaduras. A propaganda ditatorial se encarregara de incutir na opinião pública a ideia de que a guerrilha não era um movimento interno, de oposição ao governo ditatorial. Vinha de fora, tinha inspiração internacional, e se destinava a implantar o comunismo. Era a maneira como o comunismo e seus agentes pretendiam tomar conta do Brasil. Pensavam os estrategistas militares, os policiais da tortura e os políticos aproveitadores do regime que a opinião pública apoiaria a caçada aos “comunistas da imprensa, inimigos do Brasil”. Facilitava a tarefa de “limpeza” que tinham em mente e silenciava muitos jornalistas que não sendo nem comunistas nem de esquerda também não aprovavam o regime do AI-5. A deposição e morte do presidente Salvador Allende, no Chile, dois anos antes, e o golpe vitorioso do general Augusto Pinochet estimulavam a direita brasileira a não temer reações adversas das comunidades democráticas internacionais. Esse era o ambiente pesado na semana de 20 a 24 de outubro de 1975 e que culminaria no sábado, 25, com a tortura e o assassinato do nosso competente colega, meu especial amigo, escritor, desenhista e cineasta, cujas potencialidades estavam apenas emergindo, Vladimir Herzog, Vlado como era seu nome na família e na Iugoslávia, onde nascera na região que hoje é a Croácia. Eram seis horas da manhã de sexta-feira, 24 de outubro de 1975. Toca o telefone. Minha mulher, Olinda, atende. Fala baixo um ou dois minutos. Volta para o quarto com o olhar aflito: “Marco, levaram o Konder. Era a Yara no telefone”. Era também o aviso que eu previa. Levanto da cama meio sonado e dou início ao plano que havia preparado. A caçada aos “comunistas” da imprensa se acelerava. Vários colegas estavam presos desde a semana anterior. Antes, na terça-feira, ou quarta, não lembro direito, num jantar na casa do cônsul da Inglaterra em São Paulo, encontro o Vlado e o Rodolfo Konder - colegas meus na revista Visão, e o Vlado, também na TV Cultura, onde eu mesmo era comentarista econômico no programa Hora da Notícia, que o Vlado editava, apresentado pelo âncora Nemércio Nogueira. O cônsul se despedia do posto e voltaria em breve para o seu país. Eu e o Konder estivéramos na Inglaterra, em maio, a convite do governo inglês, numa viagem de 15 dias que incluiu Londres e Edimburgo, na Escócia. Vlado morara na Inglaterra e havia trabalhado na BBC de Londres, assim como Fernando Pacheco Jordão, então diretor de jornalismo da Cultura, cuja filha, Bia, dele e da esposa Fátima, nascera na Inglaterra. Essas nossas ligações com a Inglaterra justificavam o convite para o jantar. Na saída, já na rua, Clarice Herzog, mulher do Vlado, me pede para ir com eles até o carro, estacionado logo abaixo. Entramos, eu no banco de trás, Vlado, que não sabia guiar, no de passageiro, Clarice na direção. Os dois disseram que na segunda-feira anterior o Paulo Markun, preso havia já uns 15 dias no DOI-Codi, fora liberado para ir ao batizado da sua filhinha Anna, recém nascida. Markun era casado com a Diléa (então Markun, hoje Frate), que também estava presa no DOI-Codi. Na Igreja, Markun passou um recado para nós: seríamos presos no fim de semana, principalmente o Vlado. Era o que ouvira dizer naquele porão de torturas. Seríamos presos porque, segundo os malfeitores daquela seita, éramos da “célula do Vlado”. Célula era o apelido, na época, de grupos de comunistas que se reuniam. Vlado me pergunta que atitude tomar: “Dê o fora” - respondi - “para qualquer lugar, com Clarice e as crianças. Na semana que vem você volta”. Vlado argumentou que não tinha medo porque não tinha nada a esconder. Não era um criminoso. “E, além disso, de que adianta? Na semana que vem me prendem do mesmo jeito.” Ponderei que passado o fim de semana seria politicamente difícil, para a ditadura, prender jornalistas brasileiros, pois estariam presentes no Rio de Janeiro cerca de 400 jornalistas estrangeiros, cobrindo uma convenção internacional dos agentes de viagem. Eles espalhariam para o mundo inteiro qualquer notícia de prisões de jornalistas brasileiros. A ditadura tinha que se conter. Foi o que eu disse ao Vlado, na tentativa de aconselhá-lo a se esconder. E foi como nos despedimos naquela noite.
Em São Paulo, o DOI-Codi era o porrete do terrorismo de Estado. Dirigido por figuras bárbaras e obedientes como oficiais da SS nazista, a exemplo do delegado Sérgio Paranhos Fleury, transformado em herói da ditadura por ter matado o guerrilheiro Carlos Marighella numa emboscada, à queima-roupa, sem lhe dar voz de prisão; o recém-falecido coronel Brilhante Ustra (na época, major) chefe dos torturadores da Rua Tutoia; e, acima de todos, pelo conspirador sedicioso, general Ednardo D’Ávila Mello, que pretendia derrubar o então presidente general Ernesto Geisel, tido por ele como “molenga” no combate ao Grande Satã, que era o comunismo internacional no Brasil. Ao me recompor, na madrugada daquela sexta-feira, depois do telefonema da Yara, pedi à Olinda que preparasse as crianças, fechasse a casa, tomasse um táxi e fosse me encontrar na loja de pneus DPaschoal na Rua Clélia - era esse o plano e o código. Dali partimos para a fazenda da minha sogra no interior. Não tivemos notícia nenhuma na sexta-feira. No sábado pela manhã ouvimos pelo rádio a notícia de que Vladimir Herzog tinha se “suicidado” nas dependências do DOI-Codi e as “autoridades” do II Exército estavam à procura dos “comunistas” da “célula” dele, mencionados na notícia do rádio. Acho que foi a primeira vez na minha vida adulta que chorei de fato, e muito, já aos 39 anos de idade. Não apenas pela perda do amigo fraterno, gentil e franzino e do grande jornalista. Mas pela trágica ironia. Menino judeu, Vlado fugira para a Itália, com a família, durante a guerra, para escapar da ferocidade nazista na Croácia onde nascera. Era um ano mais novo que eu. Quando a guerra terminou eu tinha 9 anos, Vlado 8. Contou-me uma imagem do final da guerra quando, na estrada perto da aldeia, viu um batalhão das SS alemãs que se retirava. Pois, na vida adulta, foi barbaramente seviciado e assassinado pelos “SS” do DOI-Codi em São Paulo. Na lista da célula, divulgada pelo rádio, estava o meu nome. Pensei que teria dois caminhos: 1) retornar a São Paulo para enfrentar o que houvesse; 2) ir para Brasília e pedir asilo político na embaixada da Iugoslávia que, naqueles dias, abrigava refugiados brasileiros e que, a partir de 1990, se desintegraria como nação numa medonha e destruidora guerra civil. No domingo telefonei para o Dr. Ruy Mesquita, meu patrão no Jornal da Tarde. Falei que iria para a embaixada da Iugoslávia. Ele respondeu quase como numa ordem: “Nada disso. Venha para São Paulo e para o jornal. E fique no jornal. Não vá para sua casa”. Foi o que fizemos. Eu e minha mulher. Meus filhos, Alexandre e Julia, ainda pequenos, 7 e 3 anos, ficaram com os avós. No jornal, Ruy Mesquita me disse que naquela noite eu dormiria na casa dele. Telefonou para o ministro da Justiça de então, Armando Falcão, e disse que “o repórter que vocês estão procurando está aqui na minha frente, se você quiser, mande uma patrulha invadir o jornal para prendê-lo”. Armando Falcão disse que mais tarde voltaria a ligar. Ligou para dizer que eu deveria me apresentar no dia seguinte - segunda-feira, 27 de outubro de 1975 - ao comando do II Exército. Assim fiz, acompanhado do próprio Ruy Mesquita, do Audálio Dantas, então presidente do Sindicato dos Jornalistas, até hoje meu grande amigo, de minha mulher, Olinda Malmegrin Rocha, que muito mais tarde, alcançada pela Doença de Alzheimer, faleceria em 2012, com 70 anos. Sou casado hoje com Ana Luisa Trigo, jornalista como eu. Fomos recebidos pelo general Ferreira Marques, a quem Ruy Mesquita disse o seguinte (lembro até hoje): “General, viemos entregar o meu repórter que vocês estão procurando. Diante de mim e do meu jornal, a partir deste momento, consideraremos o senhor pessoalmente responsável pelo que vier a acontecer com ele”. A “visita” foi encerrada em clima tenso, com o general dizendo que estávamos diante de um oficial do Exército cuja palavra e civilidade pairavam acima de qualquer julgamento. Ali fiquei, para uma semana de depoimentos sobre minha vida inteira. E dali ouvia as repercussões políticas e cívicas da histórica missa ecumênica convocada pelo cardeal Arns. Mal previa eu, naquele fusca dos Herzog, após o jantar do cônsul, que os 400 jornalistas estrangeiros presentes no Rio dariam ao mundo notícia muito mais grave do que prisões de colegas brasileiros - a do assassinato de Vladimir Herzog - e muito mais dolorosa para nós todos. No dia 31 de outubro, após a missa na Praça da Sé, cujo profundo silêncio repercutiu no mundo inteiro, teria início a caminhada histórica que livrou o Brasil, para sempre, do terrorismo e da intolerância de Estado. Mas que ainda teria tempo de mais um assassinato: o do Manuel Fiel Filho, três meses depois, e nas mesmas condições da morte do Vlado Herzog.*MARCO ANTONIO ROCHA É JORNALISTA