O final do ano chegou e, com ele, as temidas reuniões em família - quando a intolerância política vista nas redes se condensa em torno da mesa de jantar. Sobre os ânimos acirrados dos últimos anos, Leandro Karnal, professor, historiador e colunista do Estado, sentencia: "estamos precisando mais de divã do que de análises sociológicas".
Para Karnal, em pessoas entusiasmadas em torno de boas bandeiras, como ética e redenção da política, esconde-se muito mais Freud do que sociologia. "É muito mais um sentimento pequeno burguês de reformar o mundo para ele ser digno de mim e de rejeição à própria ideia de país que um sentimento político de renovação", afirmou em entrevista à repórter Julianna Granjeia. A seguir, trechos da conversa.
Estamos vivendo um momento de intolerância política, principalmente nas redes sociais. Como o senhor avalia isso? Por que na internet essa intolerância é tão visível?
A internet tem duas questões importantes: a facilidade da expressão da sua opinião ao custo de um clique. Mas a internet também tem a omissão do sujeito, que facilita muito porque você expressa a sua opinião e não tem um custo a esse respeito. Quem é o João da Silva que escreveu entre 700 mil na minha fanpage? Não sei. Talvez exista, talvez não, mas a internet dilui o eu e ao diluir o sujeito ela tem um poder enorme de deixar diluir todos fantasmas, todos os demônios interiores, todos os medos das pessoas, tudo aquilo que elas desejam e temem pode fluir melhor.
Por isso todos acham que podem opinar sobre tudo?
Sim, faz parte da nossa estrutura democrática desse momento que todos interpretem que a sua opinião é válida. O que está precisando realmente nesse momento é a capacidade de ler, interpretar e o desenvolvimento de uma arte de escutar. Todos querem dizer o que pensam e poucos querem aprender algo novo. Então, eu leio o autor X e eu acho que ele diz exatamente o que eu penso. Eu digo, então, que ele é ótimo. Eu leio o autor Y e ele diz o contrário do que eu penso, então, ele é péssimo, é um babaca, é um idiota. Eu julgo a capacidade argumentativa a partir do meu espelho e da minha identidade. É lógico que isso sempre ocorreu, mas hoje isso está muito a flor da pele. O debate não está inteligente e há poucas pessoas que de fato leem e interpretam. A frase que eu mais detesto nesse momento é o "ele me representa".
Por quê?
Porque significa "ele é igual a mim". É sempre um exercício narcísico de projeção de espelho, de especular. Eu acho que nós temos com os políticos essa relação. Os brasileiros odeiam em alguns políticos o que são e amam em alguns juízes e políticos o que gostariam de ser. Por isso que o ódio é tão intenso. Porque são exatamente a cara do Brasil, eles se comportam como todos os brasileiros. E como é tão insuportável essa visão da medusa, eu petrifico e digo que luto por um Brasil melhor, e canto o hino nacional dizendo que é uma luta pela ética, quando é uma recusa do que eu venho fazendo há anos como personagem, como cidadão, mas sem ter tanto poder como o político. Isso não quer dizer que não seja interessante protestar contra a falta de ética, mas quando você vê alguém berrando na TV com passionalidade, pensando com o fígado, como a gente diz, você entende que ali precisaria mais de divã do que de análise sociológica. E a política pública é um espaço que conduz às dores individuais. E as pessoas transferem para o palco tudo aquilo que as incomoda.
Como chegamos a esse estágio tão narcísico e individualista?
Tem coisas que são mundiais, não são brasileiras. Eu acho que tem a ver com o crescimento de uma determinada noção de infância que não pode mais ser contraditada. Tem a ver com o crescimento da noção de criança, a noção de criança que Rousseau, no Emilio, disse que é o pai do adulto, logo não posso contrariar, traumatizar. Tenho que agradar sempre, especialmente jovens de classe média e alta, que passam a infância sendo tratados como pessoas que não podem ter momentos dolorosos. A ideia de que o mundo seja um lugar bom, que ninguém seja punido, é uma grande fantasia que segundo um autor que é muito caro, o (Contardo) Calligaris, que é meu terapeuta, diz em um texto que como nós não temos mais crença na eternidade, nós transferimos para os filhos essa crença. Como eu não vou viver no paraíso, quem vai viver é o meu filho, contrariando a teoria freudiana que cultura é trauma. Quanto mais civilizado maior a negação do prazer e essa pulsão de morte.
O senhor costuma dizer que estamos condenado ao diálogo. Como conseguir dialogar em tempos de intolerância?
A condenação que eu digo é uma metáfora para que seria imperioso que nós ouvíssemos. Porque uma parte da população brasileira está convencida por A mais B e com provas evidentes que houve um golpe conservador que derrubou uma presidente inocente para se colocar no poder uma pessoa que tem um projeto conservador. E outra parte está convencida com evidências que derrubamos uma presidente Dilma corrupta e o PT e colocamos um outro projeto, e assim por diante. Vejam, é impossível viver se nós não fizermos as duas partes conversarem. É impossível, por exemplo, não levar em conta que a corrupção é ambidestra: ela não é de esquerda nem de direita. E isso dá para ser demonstrado com números. Nós temos em São Paulo uma inédita aprovação em primeiro turno de um prefeito ligado mais ao mercado do que à carreira política. Provavelmente no mundo inteiro nós teremos, durante os próximos anos, uma ênfase maior em candidatos conservadores.
Por que o conservadorismo aumentou?
Isso é fruto da crise econômica e também é fruto, no caso específico do Brasil, de um fracasso de manipulação de imagem da esquerda e de uma questão administrativa. Logo, cabe aos conservadores, ou à direita, mostrar se tem mais competência para levar adiante um projeto complexo.
Qual o seu palpite?
Eu acredito, pela tradição histórica, sem fazer profecia, que depois de quatro, cinco, seis ou mais anos, a direita estará com a mesma fama que a esquerda está hoje. Isso porque os problemas que nós temos são maiores que a posição política. Ou do que um mandato. Então veja, mal o prefeito eleito em São Paulo anuncia mudanças na Virada Cultural e já há uma chuva de artigos e de críticas a isso. Se ele cortar a Virada Cultural, haverá quem elogie a contenção de gastos, imperiosa nesse momento; se ele mantiver, haverá quem diga que isso é desperdício. Não há uma maneira de agradar a todo mundo, mas há uma maneira de ouvir mais as pessoas.
É o que pressupões a democracia...
Sim, quando é eleito um prefeito, quando é eleito um governador ou um presidente, ele pode não ser o meu voto, mas ele é o eleito e isso significa que, a partir de primeiro de janeiro, o meu prefeito é o prefeito Dória. No caso, não posso nem dizer se votei ou não nele porque eu estava fora do Brasil quando ocorreu a eleição, mas ele é o meu prefeito e nós temos que aprender esse jogo democrático. É preciso aceitar que a minha vitória não é permanente, que o meu voto não é sempre o vencedor e que há outras posturas e que na nossa superstição numérica na democracia acreditamos que uma quantidade de votos corresponde à vontade da maioria e que essa vontade é soberana para isso. É um critério pavoroso e não achamos nenhum melhor até hoje. É um critério horroroso, é literalmente uma superstição numérica. O primeiro grande plebiscito da história tinha como um candidato Jesus, o filho de Deus, e o outro Barrabás. E o povo preferiu Barrabás e crucificaram Jesus. Esse foi o primeiro grande plebiscito que as massas se manifestarem livre e democraticamente sobre a política. As massas mantiveram essa tradição, de indicar o pior, mas o que você faria? Deixaria Pilatos decidir? Ou faria uma votação entre os 11 discípulos sobreviventes à Sexta-Feira Santa, já que Judas tinha se enforcado naquela madrugada? Como diz Churchill, o pior dos sistemas: a democracia. A democracia é um horror e não temos nada melhor. É uma coisa interessante isso, é uma escolha de Adão, Eva ou nada.
O STF vem sendo chamado a decidir cada vez mais questões da nossa democracia. O que o senhor acha dessa judicialização?
É um horror. O fato de nós termos no STF debates sobre problemas de trânsito é um absurdo. Isso tem que terminar. A Suprema Corte nos Estados Unidos é uma instituição que decide a interpretação de uma Constituição muito vaga, que é a Constituição de 1787. A nossa Constituição é muito mais precisa que a americana e a Suprema Corte dos Estados Unidos tem menos processos que o nosso STF. Os ministros do Supremo, independente da opinião que eu possa ter sobre eles, estão submetidos a uma pressão enorme, à uma quantidade desumana de processos, e não é possível dar uma opinião válida sobre tantos processos.
O senhor acha que está havendo uma confusão entre os poderes?
Sim, nós precisamos reler Montesquieu. Os poderes estão divididos. O Ministério Público propôs as dez medidas contra a corrupção, e tem plena liberdade legal para fazer o que todo cidadão pode fazer, que é propor leis para o Congresso. Mas quem vota as leis é o Congresso, não o Ministério Público. Não concordei (com esse processo), como eu também não concordei com algumas medidas que foram feitas na calada da noite pelo Congresso, mas isso faz parte da democracia.
O que o senhor acha do descrédito da população com a política?
Me preocupa muito. O Legislativo é sempre a alma e o coração da democracia. Quando as pessoas falam "fecha o Congresso, intervenção militar", elas estão combatendo o incêndio com querosene. Elas precisam reforçar o Congresso e não podem jogar fora a criança com a água do banho. O fato de haver congressistas podres, corruptos e ineptos - muitos - não invalida nem a ideia do Legislativo, nem da democracia e nem as funções que cada um dos poderes tem. O Executivo está lançando projetos de lei em excesso, a Suprema Corte está decidindo sobre leis que deveriam ser decididas pelo Congresso e o Congresso está não reconhecendo medidas da Suprema Corte. Ou seja, é preciso que todos releiam Montesquieu. Uma das almas da democracia são os três poderes mutuamente dependentes e soberanos. Mutuamente separados e dependentes um do outro.
Como o senhor vê quando a população lança um juiz à presidência ou trata como super herói?
O sebastianismo é uma característica da nossa política, que vem ao lado de um messianismo. É preciso que os militares venham para acabar com tudo que os outros não acabaram, é preciso que a democracia venha, é preciso que Lula volte para colocar o Brasil nos eixos, outros propõe que é Fernando Henrique e, admire você, na minha página, tem campanha Leandro Karnal para presidente. Ou seja, nós estamos em um momento muito escasso de heróis. O que aparecer no mercado e não babar verde está indo. É o sinal mais evidente de que nós estamos descrentes do processo democrático e que queremos xerifes que pareçam éticos para impor a vontade daquilo que eu considero o correto.
Por que isso ocorre?
A nossa corrupção está fazendo as pessoas imaginarem que virá do horizonte alguém que irá nos salvar. E não virá. Não virá. Um juiz Moro, usando como fantasia distópica, assumindo o poder sem o controle de uma máquina partidária, não terá nenhuma base no Congresso. Resultado: ele repetirá um pouco Collor com seu partido surgindo do nada, incapaz de dialogar com o Congresso. As soluções têm que ser coletivas e é preciso se dar conta que não depende de uma pessoa só, mesmo que ela seja honesta e competente. Depende de uma transformação do sistema. Não existe nenhum obstáculo e nenhuma antipatia na candidatura do Moro. A minha antipatia é com o sebastianismo. O que tornou Portugal um país subdesenvolvido durante tanto tempo é a crença de que a força viria de fora, de uma salvação externa, de um Dom Sebastião.
Herdamos o sebastianismo dos nossos colonizadores?
Sim. Herdamos a ideia de que vai chegar um salvador, que ora pode encarnar em Collor, ora pode encarnar em Lula, ora pode encarnar nos militares, ora em um juiz. A minha resistência não é onde encarna, mas se as pessoas de fato se dão conta que nem o homem mais brilhante do Brasil, o mais probo, o mais ético, o menos venal seria capaz de sozinho resolver essa questão. Aí, a democracia tem que corresponder à concepção política atual, porque se não eu estaria impondo a minha vontade pretensamente mais esclarecida, pretensamente mais ilustrada que a dos outros para importar a ideia de um governo de filósofos. Foi tentada por Platão e foi um desastre. Porque ser um administrador não é exatamente alguém que conheça grego, alemão ou Platão. Infelizmente, com muita frequência, as pessoas notadamente honestas são absolutamente incompetentes. E, algumas vezes, o mal, muito mais carismático.