Em fase final de novo disco, Nando Reis fala da sensação 'quase de angústia' que sente ao criar música e diz que falta amor e envolvimento das pessoas com o trabalho e até com o futuro do planeta.
Nando Reis está "se escutando". Isto é, gravando disco novo - com previsão de lançamento para o segundo semestre - e acertando os detalhes. Sem lançar criações inéditas desde 2012, ele se dedica a ouvir suas últimas 13 composições. "Esse é o período em que eu mais me ouço. Depois que o disco fica pronto, eu paro. Mas enquanto dura o processo de gravação eu fico completamente obcecado", revela. "Sempre digo que sou um fazedor de discos. Estou muito empolgado."
Mas não é fácil. Como admite nesta entrevista à repórter Marilia Neustein, dada em sua casa, rodeada de árvores, o músico, hoje aos 53 anos e pai de cinco filhos, tem "uma relação de angústia, quase de desespero", com o fazer da música. Nos tempos conturbados que hoje vive o Brasil, ele considera "entediantes" as disputas político-partidárias - lembrando que a disputa "coxinhas versus petistas é a redução de uma coisa muito mais complexa". Ao invés delas, afirma que "se há alguma coisa fundamental a ser revista, rediscutida, é o amor" - referindo-se, no caso, ao envolvimento com o trabalho, com o outro, com o planeta. O que ele engata com um projeto pessoal: "Se eu tivesse outra profissão, gostaria de ser um conservacionista. Quando me aposentar e parar de fazer música, vou cuidar das araucárias".
Convidado a participar do Festival Nivea Viva - que este ano homenageia o rock brasileiro - Nando estará ao lado de nomes como Paula Toller, Paralamas e Pitty. O show chega a São Paulo, última etapa da turnê, em junho. Abaixo, os principais trechos da entrevista.
Você tem dito que gosta de tocar ao lado de quem já conhece e está, no Festival Nivea, ao lado de nomes como Paralamas, Pitty, Paula Toller. Então está em casa? Sim. É uma turma muito boa, que eu conheço bem. Isso não significa que eu esteja fechado a outras pessoas. Mas tocar, pra mim, é uma conversa. Além de fazer o que eu mais gosto, que é música, e encontrar gente com quem já fiz muita coisa, aí tem muita história.
Como você vê hoje a cena do rock no Brasil e no mundo? Tenho certa dificuldade com essa questão, porque tudo é muito misturado. Acho que o rock absorveu coisas de todos os estilos. Além do que, mudaram as formas de gravar e lançar com a internet. Há um volume de produção tão grande que nem tenho o conhecimento de tudo que se faz. E, por ser músico, não tenho exatamente uma isenção. Mas assino revistas com as quais eu me informo, e sei como o rock foi fundamental para a minha formação.
Você consegue escutar música de fundo ou, como muitos músicos, não consegue não prestar atenção e vê isso como trabalho? É impossível eu botar uma música de fundo, principalmente se tem uma voz cantando. Isso passa a ser um elemento de poluição sonora. Mas eu ouço muita música no carro É claro que, indiretamente, é um trabalho, porque a música me alimenta. Mas realmente essa coisa de música de fundo não existe.
E o que está ouvindo agora? Como estou gravando um disco novo, esse é o período durante o qual eu mais me ouço - porque depois que o disco fica pronto, não gosto de me ouvir. Mas, enquanto eu estou em gravação, fico completamente obcecado.
Com a era digital também mudou a questão do tempo e a relação do ouvinte com a música. Como convive com essa mudança? Quando você faz uma música, ela é entregue para servir aos outros, a quem quiser usufruir, apropriar-se dela para seu deleite. A música, de certa maneira, não mais me pertence. Então, não posso querer controlar a forma como as pessoas ouvem. Como ouvinte, tenho a minha própria forma, mas eu respeito todas. Reconheço que a era digital tem uma característica muito curiosa, que é o imediato acesso. Você entra no Youtube, acha a música em que está interessado, ouve, passa para o Ipod, o telefone, se mata de ouvir, enjoa e passa pra outra. Poucas pessoas compram discos e isso parece sempre uma coisa estranha à minha forma de ouvir.
Como? Como fazedor de discos, acho que um álbum tem uma riqueza incrível. Ele é muito mais do que um aglomerado de músicas. A conversa entre elas, a relação interna... Por isso gosto tanto do vinil, ele mostra toda essa composição.
É uma identidade que você constrói, não? Sim, uma identidade. Eu não me sinto nem um pouco obsoleto. O meu trabalho é muito elaborado, é uma tecelagem, uma costura, os músicos, as pessoas, o arranjo, a forma de gravar, os timbres, a mixagem, a capa. Uma série de coisas... Por isso gosto tanto do vinil.
Como encara o modo como os fãs se relacionam com a sua música e com você? Ás vezes, a relação com a obra é muito íntima, mas nem sempre se pode dizer o mesmo da relação entre o fã e o artista... É um desequilíbrio. Sinto da mesma forma com as pessoas que eu admiro. É óbvio que a canção é uma forma, é uma expressão que nem sempre se comunica com o mundo da mesma maneira como eu me comunico. A música tem um profundo impacto na minha vida. Eu sou quem sou pelos discos que ouvi. E sinto isso como ouvinte também. O Caetano e o Gilberto Gil, por exemplo, tiveram um impacto profundo na minha vida. Sou um conhecedor da obra dos caras. Então, voltando à sua pergunta, acho muito curioso notar a quantidade de pessoas que chegam para mim e dizem que casaram ao som de Pra Você Guardei o Amor.
Acha curioso por quê? Acho essa música triste. Ela foi escrita do ponto de vista de quem procura e convive muito tempo com o não-encontro. Mas muita gente vê nessa canção uma alegria de quem estava esperando e encontrou sua cara metade. Eu entendo, acho isso bonito. É muito gratificante.
Lenine já disse que, para ele, fazer música é um mistério. E para você? Totalmente. Eu acho tudo misterioso. E é o que me motiva a fazer música - que é a minha profissão, com a qual eu tenho uma relação quase de angústia e desespero.
Por quê é assim? Porque fico sempre pensando se farei uma próxima que vai me agradar tanto ou ser tão bela quanto as que eu já fiz e que eu julgo belas. Você disse há algum tempo, em uma entrevista, que sua música era politizada no sentido de que "ela diz tudo aquilo" que você acha fundamental, que é "a defesa da individualidade".
Pode usar essa frase, porque acho isso mesmo. Acredita que, hoje, as pessoas estão vivendo a ilusão de serem mais politizadas? Detesto tudo o que já tem uma resposta prévia, dogmas. Não gosto dessa discussão político-partidária, ela é profundamente entediante. Essa coisa de "coxinhas versus petistas" é uma redução de uma coisa muito mais complexa. Posso estar de acordo com algumas coisas e em desacordo com outras. É mais fragmentado. Me envolvo, sou leitor de jornais, tenho minha posição. Mas isso tudo está muito longe de ser uma atitude política com a vida. No meu entender uma atitude política com a vida é saber quem você é e o que você de fato pensa. Isso não significa ser egoísta, pelo contrário. Quero dizer que ao indivíduo têm que ser fornecidas as condições para que ele faça a sua livre escolha e monte o seu trajeto. Dar ao indivíduo condições de ser. E aí é liberdade.
Uma cineasta indagou há alguns dias, na internet, se alguém estaria interessado em um filme de amor, no meio dos acontecimentos políticos atuais. Acha que a arte poderia ajudar a fazer uma reflexão sobre o atual momento? Nunca pensei em fazer nada como contraponto da realidade. Faço aquilo que me impacta. Acredito, sim, que a maioria das pessoas está interessada nisso (amor). Muito mais, até, do que nessa própria excitação que tomou conta do noticiário. Há uma tendência a se pensar que uma história de amor, um filme ou uma música de amor é uma maneira superficial de falar de um romancezinho. Não é nada disso. Aliás, é completamente pertinente essa discussão. Porque o que mais está em voga hoje é o oposto da relação amorosa com as coisas. Tudo aqui é uma relação de destruição e ódio.
Está se referindo ao modo como andam atualmente as coisas na política? Você vê, nessa coisa política, antagonismos que não se reconhecem, não se toleram e partem para destruir. É um reflexo de como as discussões políticas são feitas. Isso é o avesso dessa questão toda. Tanta loucura que tomou conta do Brasil nesse cenário de corrupção que, em última análise, trata-se de uma falta de apreço, de zelo e de uma relação amorosa com o seu ofício, entendeu? Um sujeito que assalta um cofre público, assalta merenda, tem uma relação predatória, nociva, completamente hedionda e provida de sentimentos opostos ao que seria uma relação de apreço e cuidado. Do que seria seu próprio dever como homem público. A forma amorosa, o envolvimento, é a coisa de maior urgência no mundo. Se há alguma coisa fundamental a ser revista, rediscutida, é o amor. É só você reparar: a destruição do planeta é que é, fundamentalmente, a coisa mais grave a ser corrigida. E é falta de amor.
Você, aliás, é um defensor das árvores. Já gravou até um vídeo reclamando contra o corte de árvores. Sim, foi aqui na rua. Depenaram. Uma coisa absurda. Sou totalmente envolvido. Quer saber? Se eu tivesse outra profissão, gostaria de ser um conservacionista, cuidar do reflorestamento das araucárias. Essa é a minha pira. Eu vou me aposentar, parar de fazer música e cuidar das araucárias.
Além desse jardim à sua volta, você tem alguma casa fora de São Paulo que... Você tocou num ponto... Moramos aqui há 31 anos. Eu plantei umas 20 árvores. É algo que estou pensando... Tenho 53 anos e penso mudar o ritmo da minha vida. Meu projeto a curto prazo é reorganizar a minha vida e ter uma casa no mato. Amo minha profissão, mas fiz um cálculo: estou há 34 anos trabalhando e fazendo show quase semanalmente. É um show, em média, a cada 3 dias. Nos últimos 33 anos de profissão, é como se eu tivesse ficado 11 anos fora de casa. É muito tempo.