A rivalidade doentia entre Antonio Salieri e Wolfgang Amadeus Mozart, ainda que exagerada, acabou pautando a própria maneira como os dois compositores foram compreendidos e analisados ao longo das décadas. Em resumo, fez com que pairasse sobre o primeiro a pecha do autor menor que, sentindo-se ameaçado, acabaria envenenando o pequeno gênio que monopolizava a atenção do meio musical de sua época.
As próprias circunstâncias misteriosas da morte de Mozart, ocorrida enquanto o compositor escrevia seu ‘Réquiem’, foram terreno fértil para que brotassem versões das mais diferentes sobre seu desaparecimento. O fato, porém, é que não há prova documental de que Salieri o teria envenenado. Faz diferença? No caso de obras de ficção, como peças, livros ou filmes, talvez seja mais interessante pensar que a história de um personagem real é também a história do modo como ele é visto e compreendido pela sensibilidade de cada época. E, que, assim, a forma como entendemos e interpretamos Mozart hoje diz muito a respeito não apenas dele mas também, ou principalmente, de nós mesmos.
A versão do assassinato de Mozart foi cristalizada no imaginário contemporâneo pelo filme ‘Amadeus’, de Milos Forman, que por sua vez se baseou na peça de Peter Shaffer. A relação entre os dois músicos, no entanto, já inspirara autores muito tempo antes, em especial o russo Aleksander Pushkin, que ainda no século 19 escreveu a peça ‘Mozart e Salieri’, que seria mais tarde transformada em ópera por Rimsky-Korsakov. E agora chega aos palcos brasileiros ‘Um Réquiem para Antonio’, de Dib Carneiro Neto.
Shaffer foca na rivalidade entre os autores; Pushkin, como anota o crítico Lauro Machado Coelho, aborda o conflito a princípio insuperável entre o gênio e o mero talento. Carneiro Neto segue em um caminho diferente e original. O cenário da narrativa é a mente de Salieri – é nela que se dá seu encontro com Mozart. Este é o ponto de partida para que o dramaturgo crie um jogo de espelhos e projeções – e isso importa mais do que a verdade factual, ainda que seja notável a atenção dispensada pelo autor a episódios reais e o cuidado com que aproxima seu Mozart do personagem revelado por sua farta correspondência.
No final das contas, ‘Um Réquiem para Antonio’ utiliza dois personagens bem marcados no imaginário coletivo para tratar da descoberta de si próprio por meio do outro – ou, seria melhor dizer, do difícil diálogo entre traumas, desejos, sonhos e expectativas que formam esse espaço maior do que a verdade ou a ficção que é a mente humana.