Ditador Antonio Salazar ganha biografia escrita por um italiano


No fim da vida, o líder português assinava documentos sem saber que estava destituído do poder, recebendo só fake news

Por Paulo Nogueira
Atualização:

O que é o fascismo? Quem é fascista? Segundo as redes sociais, todo mundo que discorda de nós. Mas o totalitarismo foi um fenômeno histórico, social e político. Só que continua um conceito evasivo, como admite Stanley G. Payne, o mais respeitado especialista atual no assunto: “Fascismo permanece o mais vago dos termos políticos importantes”. Escrutinar a vida de líderes fascistas assumidos ajuda a elucidar o conceito. É o caso de António Salazar, o Ditador Que Morreu Duas Vezes, de Marco Ferrari. Que confirma outro expert, Gilbert Allardyce: “Nós concordamos em usar a palavra sem havermos concordado com a definição”.

Como nota Ferrari, o hino da Juventude Fascista Italiana, de 1939, excluía Salazar: “Mussolini, Hitler, Franco, / três chefes uma determinação, / marcharão sempre a par / para salvar a civilização”. Ferrari é italiano, mas conhece Portugal como a palma da mão. Assim como seu compatriota Antônio Tabucchi, que viveu anos em Lisboa, onde morreu em 2012, deixando um memorável retrato do salazarismo: o romance Afirma Pereira. Claro que os ficcionistas portugueses, sobretudo depois da censura, também abordaram o tema, como José Cardoso Pires e seu Dinossauro Excelentíssimo, do qual o ditador luso é o herói epônimo.

O ditador português Antonio Salazar, que chegou a proibir a Coca-Cola e o Fado em Portugal  Foto: Editora Todavia
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António de Oliveira Salazar nasceu em 28 de abril de 1889, na liliputiana aldeia do Vimieiro (580 habitantes), numa família de camponeses. Mais tarde, dirá: “Devo à Providência a graça de ser pobre”. Foi mandado para o seminário, e depois entrou na Universidade de Coimbra, no ano da Proclamação da República (1910). Ingressou na política em 1928, como ministro das Finanças, para em 1932 assumir o poder na condição de presidente do conselho (primeiro-ministro), instalando-se no Palácio de Belém, em Lisboa. Começava o Estado Novo, o regime autoritário que por quase meio século governará Portugal com punho de ferro. Um império que ainda incluía Cabo Verde, Angola, Moçambique (na África), Goa, Damão e Diu (na Índia), Timor-Leste (no sudeste asiático) e Macau (na China).

A doutrina de Salazar era arcaica, ruralista e, mais do que provinciana, tacanha e paroquial: a nação-aldeia. Era tímido e taciturno, detestava viajar para o estrangeiro (morria de medo de avião) e odiava o cosmopolitismo. Chegou a proibir a Coca-Cola, então uma novidade (e que a esquerda, por sua vez, chamava pitorescamente de “a água suja do imperialismo”). Fernando Pessoa, improvisado em publicitário, ainda teve tempo de criar um slogan para aquele exótico refrigerante: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.

Escrevi o livro de modo bastante fluido, como se o ditador morasse em minha cabeça, mesmo que eu não tenha sofrido o horror de sua repressão. Essas páginas são minhas, mas é como se fossem narradas por outro que viveu na ditadura

Marco Ferrari, escritor

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Salazar, apesar de monástico, incentivava o consumo do vinho, pela importância econômica do produto: “Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”. Fernando Pessoa, que fazia a sua parte emborcando tintos e brancos, publicou um único livro em vida, Mensagem, em 1934, concorrendo a um prêmio do Estado Novo. Ficou num estapafúrdio segundo lugar, com a vitória da obra de um padre chauvinista. O poeta, que morreria no ano seguinte, continuou a ironizar o ditador, em versinhos impagáveis: “Este senhor Salazar / É feito de sal e azar. / Se um dia chove, / A água dissolve / O sal, / E sob o céu / Fica só azar, é natural”. Ou: “Coitadinho / do tiraninho! / Não bebe vinho. / Nem sequer sozinho… / Bebe a verdade / E a liberdade. / E com tal agrado/ Que já começam / A escassear no mercado”.

Era um regime de partido único, a União Nacional. Foram criados o Secretariado de Propaganda Nacional, para a doutrinação política, e a Mocidade Portuguesa (obrigatória dos 7 aos 25 anos), no modelo da Juventude Fascista Italiana. A repressão coube à infame Pide (Polícia Internacional de Defesa do Estado), que montou um campo de concentração em Cabo Verde. O primeiro médico da colônia penal do Tarrafal, logo no primeiro dia rosnou aos prisioneiros: “Não estou aqui para vos curar, mas para emitir vossas certidões de óbito”. Em solo português a prisão política mais sinistra era em Caxias, nos arredores de Lisboa, onde hoje há uma placa: “Hei de passar nas cidades como o vento nas areias / E abrir todas as janelas / E todas as cadeias”.

Retrato do biógrafo italiano Marco Ferrari, autor de 'A Incrível História de António Salazar Foto: Editora Todavia
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São versos do poeta Manuel Alegre, para a fadista Amália Rodrigues e para Maria Bethânia. Os alicerces populistas do regime eram três Fs: Fado, Futebol e Fátima. O salazarismo vampirizou ao máximo a devoção nacional e internacional ao Santuário Mariano na cidade de Fátima, onde em 1917 Nossa Senhora teria aparecido a três pastorinhos. Já na década de 1960, o Benfica, clube popular de Lisboa, inflamou o orgulho nacional, ganhando duas vezes a Liga dos Campeões e chegando a quatro finais. Ao mesmo tempo, a ditadura tentou enquadrar o fado, por meio da censura prévia das letras e da inscrição profissional dos intérpretes. O gênero musical ganhou notoriedade mundial com Amália Rodrigues. Sem querer, a cantora tornou-se um símbolo do Estado Novo, apesar de cantar grandes poetas portugueses oposicionistas, como Davi Mourão Ferreira, Alexandre O’Neil e Manuel Alegre. Um dos principais letristas de Amália, Alain Oulman, foi preso pela Pide e deportado. Com a Revolução dos Cravos, que em 1974 restaurou a democracia, Oulman defendeu Amália das acusações de conivência com a ditadura.

Salazar tinha afinidades com o ditador vizinho, o espanhol Francisco Franco (até a redemocratização em 1975, as mulheres espanholas precisavam da autorização do marido para trabalhar, tirar passaporte, comprar carro e abrir conta bancária – e o esposo ainda podia receber o salário da esposa). Havia também diferenças: nos seus sete encontros, pareciam o Gordo e o Magro. Ambos mantiveram seus países neutros durante a 2.ª Guerra – uma decisão que lhes permitiu morrer na cama, ao contrário de Hitler (que se matou no bunker de Berlim) e de Mussolini, fuzilado e pendurado de cabeça para baixo numa praça de Milão. Como consta no filme Casablanca, Lisboa tornou-se uma rota de fuga para judeus (100 mil passaram por lá) e antifascistas, como Marc Chagall, Béla Bartók e Hannah Arendt – que depois se exilariam nos EUA. O azarado Walter Benjamin preferiu suicidar-se na fronteira dos Pirineus, quando seguia para a capital portuguesa.

Salazar tentou censurar a música e a literatura, mas foi desafiado por poetas, como Fernando Pessoa

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Salazar era severo e seco como bacalhau. Morreu solteiro e sem filhos. Aparentemente (há controvérsias) teve amantes e sem dúvida foi loucamente (botem louca nisso) amado pela inefável d. Maria, a fiel Maria de Jesus Caetano Freire, uma espécie de Cérbero de saias, que pelo tirano viveu de corpo e alma, sem nunca confessar sua paixão – e morreu virgem, em 1981. Passou de criada a governanta – para muitos, governadora, “a mulher mais importante de Portugal no século 20″.

Falava ainda menos que Salazar, e converteu o aristocrático Palácio de Belém numa chácara, com galinhas e coelhos. Todas as manhãs barbeava o seu amado com uma navalha. Analfabeta, fez o primário já adulta, mas controlava as despesas da casa e o acesso das visitas a Salazar.

Salazar recebia jornais falsos no fim de sua vida, para pensar que ainda estava no poder  Foto: Editora Todavia
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No dia 3 de agosto de 1968, ao receber seu pedicuro, o ditador sentou-se precipitadamente numa daquelas cadeiras tipo diretor de cinema, de madeira e lona. E estatelou-se, batendo a cabeça no chão. Sofreu uma hemorragia cerebral, com complicações que causaram sua morte quase dois anos depois. A autoridade de Salazar era tal que ninguém teve coragem de o informar de que já não estava mais no poder, sucedido por Marcelo Caetano. Durante 23 meses, o ex-ditador continuou a assinar documentos de mentirinha, a instruir ministros, a conceder audiências de faz de conta.

Diariamente, imprimia-se apenas para Salazar um único exemplar “especial” do Diário de Notícias, então o mais importante jornal português, cuidadosamente expurgado de notícias que desmascarassem a farsa (como menções ao novo primeiro-ministro). O censor era agora vítima da censura que ele próprio criara.

O ditador morreu em julho de 1970, e foi enterrado na sua terra natal. Indiscutivelmente parcimonioso e austero, a casa onde veio ao mundo tem uma placa: “Aqui nasceu o dr. Oliveira Salazar, um senhor que governou e nada roubou”. À 0h25 do dia 25 de abril de 1974, a Rádio Renascença emitiu a canção Grândola Vila Morena, de José Afonso, a senha para a sublevação de jovens oficiais militares que vai depor o regime. Ou a Revolução dos Cravos, já que os canos das espingardas foram enfeitados por populares com flores vermelhas. Hoje, Portugal é um país democrático, moderno e dinâmico – e Lisboa, uma das mais fascinantes cidades do mundo. Até certo ponto, porém, o salazarismo caiu de poder – como o próprio Salazar ao cair da cadeira. Caso único de um déspota derrubado pelo próprio trono.

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A INCRÍVEL HISTÓRIA DE ANTONIO SALAZAR

MARCO FERRARI

TRADUÇÃO DE VASCO GATO

TODAVIA

208 PÁGINAS R$ 74,90 OU R$ 42,90 (E-BOOK)

O que é o fascismo? Quem é fascista? Segundo as redes sociais, todo mundo que discorda de nós. Mas o totalitarismo foi um fenômeno histórico, social e político. Só que continua um conceito evasivo, como admite Stanley G. Payne, o mais respeitado especialista atual no assunto: “Fascismo permanece o mais vago dos termos políticos importantes”. Escrutinar a vida de líderes fascistas assumidos ajuda a elucidar o conceito. É o caso de António Salazar, o Ditador Que Morreu Duas Vezes, de Marco Ferrari. Que confirma outro expert, Gilbert Allardyce: “Nós concordamos em usar a palavra sem havermos concordado com a definição”.

Como nota Ferrari, o hino da Juventude Fascista Italiana, de 1939, excluía Salazar: “Mussolini, Hitler, Franco, / três chefes uma determinação, / marcharão sempre a par / para salvar a civilização”. Ferrari é italiano, mas conhece Portugal como a palma da mão. Assim como seu compatriota Antônio Tabucchi, que viveu anos em Lisboa, onde morreu em 2012, deixando um memorável retrato do salazarismo: o romance Afirma Pereira. Claro que os ficcionistas portugueses, sobretudo depois da censura, também abordaram o tema, como José Cardoso Pires e seu Dinossauro Excelentíssimo, do qual o ditador luso é o herói epônimo.

O ditador português Antonio Salazar, que chegou a proibir a Coca-Cola e o Fado em Portugal  Foto: Editora Todavia

António de Oliveira Salazar nasceu em 28 de abril de 1889, na liliputiana aldeia do Vimieiro (580 habitantes), numa família de camponeses. Mais tarde, dirá: “Devo à Providência a graça de ser pobre”. Foi mandado para o seminário, e depois entrou na Universidade de Coimbra, no ano da Proclamação da República (1910). Ingressou na política em 1928, como ministro das Finanças, para em 1932 assumir o poder na condição de presidente do conselho (primeiro-ministro), instalando-se no Palácio de Belém, em Lisboa. Começava o Estado Novo, o regime autoritário que por quase meio século governará Portugal com punho de ferro. Um império que ainda incluía Cabo Verde, Angola, Moçambique (na África), Goa, Damão e Diu (na Índia), Timor-Leste (no sudeste asiático) e Macau (na China).

A doutrina de Salazar era arcaica, ruralista e, mais do que provinciana, tacanha e paroquial: a nação-aldeia. Era tímido e taciturno, detestava viajar para o estrangeiro (morria de medo de avião) e odiava o cosmopolitismo. Chegou a proibir a Coca-Cola, então uma novidade (e que a esquerda, por sua vez, chamava pitorescamente de “a água suja do imperialismo”). Fernando Pessoa, improvisado em publicitário, ainda teve tempo de criar um slogan para aquele exótico refrigerante: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.

Escrevi o livro de modo bastante fluido, como se o ditador morasse em minha cabeça, mesmo que eu não tenha sofrido o horror de sua repressão. Essas páginas são minhas, mas é como se fossem narradas por outro que viveu na ditadura

Marco Ferrari, escritor

Salazar, apesar de monástico, incentivava o consumo do vinho, pela importância econômica do produto: “Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”. Fernando Pessoa, que fazia a sua parte emborcando tintos e brancos, publicou um único livro em vida, Mensagem, em 1934, concorrendo a um prêmio do Estado Novo. Ficou num estapafúrdio segundo lugar, com a vitória da obra de um padre chauvinista. O poeta, que morreria no ano seguinte, continuou a ironizar o ditador, em versinhos impagáveis: “Este senhor Salazar / É feito de sal e azar. / Se um dia chove, / A água dissolve / O sal, / E sob o céu / Fica só azar, é natural”. Ou: “Coitadinho / do tiraninho! / Não bebe vinho. / Nem sequer sozinho… / Bebe a verdade / E a liberdade. / E com tal agrado/ Que já começam / A escassear no mercado”.

Era um regime de partido único, a União Nacional. Foram criados o Secretariado de Propaganda Nacional, para a doutrinação política, e a Mocidade Portuguesa (obrigatória dos 7 aos 25 anos), no modelo da Juventude Fascista Italiana. A repressão coube à infame Pide (Polícia Internacional de Defesa do Estado), que montou um campo de concentração em Cabo Verde. O primeiro médico da colônia penal do Tarrafal, logo no primeiro dia rosnou aos prisioneiros: “Não estou aqui para vos curar, mas para emitir vossas certidões de óbito”. Em solo português a prisão política mais sinistra era em Caxias, nos arredores de Lisboa, onde hoje há uma placa: “Hei de passar nas cidades como o vento nas areias / E abrir todas as janelas / E todas as cadeias”.

Retrato do biógrafo italiano Marco Ferrari, autor de 'A Incrível História de António Salazar Foto: Editora Todavia

São versos do poeta Manuel Alegre, para a fadista Amália Rodrigues e para Maria Bethânia. Os alicerces populistas do regime eram três Fs: Fado, Futebol e Fátima. O salazarismo vampirizou ao máximo a devoção nacional e internacional ao Santuário Mariano na cidade de Fátima, onde em 1917 Nossa Senhora teria aparecido a três pastorinhos. Já na década de 1960, o Benfica, clube popular de Lisboa, inflamou o orgulho nacional, ganhando duas vezes a Liga dos Campeões e chegando a quatro finais. Ao mesmo tempo, a ditadura tentou enquadrar o fado, por meio da censura prévia das letras e da inscrição profissional dos intérpretes. O gênero musical ganhou notoriedade mundial com Amália Rodrigues. Sem querer, a cantora tornou-se um símbolo do Estado Novo, apesar de cantar grandes poetas portugueses oposicionistas, como Davi Mourão Ferreira, Alexandre O’Neil e Manuel Alegre. Um dos principais letristas de Amália, Alain Oulman, foi preso pela Pide e deportado. Com a Revolução dos Cravos, que em 1974 restaurou a democracia, Oulman defendeu Amália das acusações de conivência com a ditadura.

Salazar tinha afinidades com o ditador vizinho, o espanhol Francisco Franco (até a redemocratização em 1975, as mulheres espanholas precisavam da autorização do marido para trabalhar, tirar passaporte, comprar carro e abrir conta bancária – e o esposo ainda podia receber o salário da esposa). Havia também diferenças: nos seus sete encontros, pareciam o Gordo e o Magro. Ambos mantiveram seus países neutros durante a 2.ª Guerra – uma decisão que lhes permitiu morrer na cama, ao contrário de Hitler (que se matou no bunker de Berlim) e de Mussolini, fuzilado e pendurado de cabeça para baixo numa praça de Milão. Como consta no filme Casablanca, Lisboa tornou-se uma rota de fuga para judeus (100 mil passaram por lá) e antifascistas, como Marc Chagall, Béla Bartók e Hannah Arendt – que depois se exilariam nos EUA. O azarado Walter Benjamin preferiu suicidar-se na fronteira dos Pirineus, quando seguia para a capital portuguesa.

Salazar tentou censurar a música e a literatura, mas foi desafiado por poetas, como Fernando Pessoa

Salazar era severo e seco como bacalhau. Morreu solteiro e sem filhos. Aparentemente (há controvérsias) teve amantes e sem dúvida foi loucamente (botem louca nisso) amado pela inefável d. Maria, a fiel Maria de Jesus Caetano Freire, uma espécie de Cérbero de saias, que pelo tirano viveu de corpo e alma, sem nunca confessar sua paixão – e morreu virgem, em 1981. Passou de criada a governanta – para muitos, governadora, “a mulher mais importante de Portugal no século 20″.

Falava ainda menos que Salazar, e converteu o aristocrático Palácio de Belém numa chácara, com galinhas e coelhos. Todas as manhãs barbeava o seu amado com uma navalha. Analfabeta, fez o primário já adulta, mas controlava as despesas da casa e o acesso das visitas a Salazar.

Salazar recebia jornais falsos no fim de sua vida, para pensar que ainda estava no poder  Foto: Editora Todavia

No dia 3 de agosto de 1968, ao receber seu pedicuro, o ditador sentou-se precipitadamente numa daquelas cadeiras tipo diretor de cinema, de madeira e lona. E estatelou-se, batendo a cabeça no chão. Sofreu uma hemorragia cerebral, com complicações que causaram sua morte quase dois anos depois. A autoridade de Salazar era tal que ninguém teve coragem de o informar de que já não estava mais no poder, sucedido por Marcelo Caetano. Durante 23 meses, o ex-ditador continuou a assinar documentos de mentirinha, a instruir ministros, a conceder audiências de faz de conta.

Diariamente, imprimia-se apenas para Salazar um único exemplar “especial” do Diário de Notícias, então o mais importante jornal português, cuidadosamente expurgado de notícias que desmascarassem a farsa (como menções ao novo primeiro-ministro). O censor era agora vítima da censura que ele próprio criara.

O ditador morreu em julho de 1970, e foi enterrado na sua terra natal. Indiscutivelmente parcimonioso e austero, a casa onde veio ao mundo tem uma placa: “Aqui nasceu o dr. Oliveira Salazar, um senhor que governou e nada roubou”. À 0h25 do dia 25 de abril de 1974, a Rádio Renascença emitiu a canção Grândola Vila Morena, de José Afonso, a senha para a sublevação de jovens oficiais militares que vai depor o regime. Ou a Revolução dos Cravos, já que os canos das espingardas foram enfeitados por populares com flores vermelhas. Hoje, Portugal é um país democrático, moderno e dinâmico – e Lisboa, uma das mais fascinantes cidades do mundo. Até certo ponto, porém, o salazarismo caiu de poder – como o próprio Salazar ao cair da cadeira. Caso único de um déspota derrubado pelo próprio trono.

A INCRÍVEL HISTÓRIA DE ANTONIO SALAZAR

MARCO FERRARI

TRADUÇÃO DE VASCO GATO

TODAVIA

208 PÁGINAS R$ 74,90 OU R$ 42,90 (E-BOOK)

O que é o fascismo? Quem é fascista? Segundo as redes sociais, todo mundo que discorda de nós. Mas o totalitarismo foi um fenômeno histórico, social e político. Só que continua um conceito evasivo, como admite Stanley G. Payne, o mais respeitado especialista atual no assunto: “Fascismo permanece o mais vago dos termos políticos importantes”. Escrutinar a vida de líderes fascistas assumidos ajuda a elucidar o conceito. É o caso de António Salazar, o Ditador Que Morreu Duas Vezes, de Marco Ferrari. Que confirma outro expert, Gilbert Allardyce: “Nós concordamos em usar a palavra sem havermos concordado com a definição”.

Como nota Ferrari, o hino da Juventude Fascista Italiana, de 1939, excluía Salazar: “Mussolini, Hitler, Franco, / três chefes uma determinação, / marcharão sempre a par / para salvar a civilização”. Ferrari é italiano, mas conhece Portugal como a palma da mão. Assim como seu compatriota Antônio Tabucchi, que viveu anos em Lisboa, onde morreu em 2012, deixando um memorável retrato do salazarismo: o romance Afirma Pereira. Claro que os ficcionistas portugueses, sobretudo depois da censura, também abordaram o tema, como José Cardoso Pires e seu Dinossauro Excelentíssimo, do qual o ditador luso é o herói epônimo.

O ditador português Antonio Salazar, que chegou a proibir a Coca-Cola e o Fado em Portugal  Foto: Editora Todavia

António de Oliveira Salazar nasceu em 28 de abril de 1889, na liliputiana aldeia do Vimieiro (580 habitantes), numa família de camponeses. Mais tarde, dirá: “Devo à Providência a graça de ser pobre”. Foi mandado para o seminário, e depois entrou na Universidade de Coimbra, no ano da Proclamação da República (1910). Ingressou na política em 1928, como ministro das Finanças, para em 1932 assumir o poder na condição de presidente do conselho (primeiro-ministro), instalando-se no Palácio de Belém, em Lisboa. Começava o Estado Novo, o regime autoritário que por quase meio século governará Portugal com punho de ferro. Um império que ainda incluía Cabo Verde, Angola, Moçambique (na África), Goa, Damão e Diu (na Índia), Timor-Leste (no sudeste asiático) e Macau (na China).

A doutrina de Salazar era arcaica, ruralista e, mais do que provinciana, tacanha e paroquial: a nação-aldeia. Era tímido e taciturno, detestava viajar para o estrangeiro (morria de medo de avião) e odiava o cosmopolitismo. Chegou a proibir a Coca-Cola, então uma novidade (e que a esquerda, por sua vez, chamava pitorescamente de “a água suja do imperialismo”). Fernando Pessoa, improvisado em publicitário, ainda teve tempo de criar um slogan para aquele exótico refrigerante: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”.

Escrevi o livro de modo bastante fluido, como se o ditador morasse em minha cabeça, mesmo que eu não tenha sofrido o horror de sua repressão. Essas páginas são minhas, mas é como se fossem narradas por outro que viveu na ditadura

Marco Ferrari, escritor

Salazar, apesar de monástico, incentivava o consumo do vinho, pela importância econômica do produto: “Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses”. Fernando Pessoa, que fazia a sua parte emborcando tintos e brancos, publicou um único livro em vida, Mensagem, em 1934, concorrendo a um prêmio do Estado Novo. Ficou num estapafúrdio segundo lugar, com a vitória da obra de um padre chauvinista. O poeta, que morreria no ano seguinte, continuou a ironizar o ditador, em versinhos impagáveis: “Este senhor Salazar / É feito de sal e azar. / Se um dia chove, / A água dissolve / O sal, / E sob o céu / Fica só azar, é natural”. Ou: “Coitadinho / do tiraninho! / Não bebe vinho. / Nem sequer sozinho… / Bebe a verdade / E a liberdade. / E com tal agrado/ Que já começam / A escassear no mercado”.

Era um regime de partido único, a União Nacional. Foram criados o Secretariado de Propaganda Nacional, para a doutrinação política, e a Mocidade Portuguesa (obrigatória dos 7 aos 25 anos), no modelo da Juventude Fascista Italiana. A repressão coube à infame Pide (Polícia Internacional de Defesa do Estado), que montou um campo de concentração em Cabo Verde. O primeiro médico da colônia penal do Tarrafal, logo no primeiro dia rosnou aos prisioneiros: “Não estou aqui para vos curar, mas para emitir vossas certidões de óbito”. Em solo português a prisão política mais sinistra era em Caxias, nos arredores de Lisboa, onde hoje há uma placa: “Hei de passar nas cidades como o vento nas areias / E abrir todas as janelas / E todas as cadeias”.

Retrato do biógrafo italiano Marco Ferrari, autor de 'A Incrível História de António Salazar Foto: Editora Todavia

São versos do poeta Manuel Alegre, para a fadista Amália Rodrigues e para Maria Bethânia. Os alicerces populistas do regime eram três Fs: Fado, Futebol e Fátima. O salazarismo vampirizou ao máximo a devoção nacional e internacional ao Santuário Mariano na cidade de Fátima, onde em 1917 Nossa Senhora teria aparecido a três pastorinhos. Já na década de 1960, o Benfica, clube popular de Lisboa, inflamou o orgulho nacional, ganhando duas vezes a Liga dos Campeões e chegando a quatro finais. Ao mesmo tempo, a ditadura tentou enquadrar o fado, por meio da censura prévia das letras e da inscrição profissional dos intérpretes. O gênero musical ganhou notoriedade mundial com Amália Rodrigues. Sem querer, a cantora tornou-se um símbolo do Estado Novo, apesar de cantar grandes poetas portugueses oposicionistas, como Davi Mourão Ferreira, Alexandre O’Neil e Manuel Alegre. Um dos principais letristas de Amália, Alain Oulman, foi preso pela Pide e deportado. Com a Revolução dos Cravos, que em 1974 restaurou a democracia, Oulman defendeu Amália das acusações de conivência com a ditadura.

Salazar tinha afinidades com o ditador vizinho, o espanhol Francisco Franco (até a redemocratização em 1975, as mulheres espanholas precisavam da autorização do marido para trabalhar, tirar passaporte, comprar carro e abrir conta bancária – e o esposo ainda podia receber o salário da esposa). Havia também diferenças: nos seus sete encontros, pareciam o Gordo e o Magro. Ambos mantiveram seus países neutros durante a 2.ª Guerra – uma decisão que lhes permitiu morrer na cama, ao contrário de Hitler (que se matou no bunker de Berlim) e de Mussolini, fuzilado e pendurado de cabeça para baixo numa praça de Milão. Como consta no filme Casablanca, Lisboa tornou-se uma rota de fuga para judeus (100 mil passaram por lá) e antifascistas, como Marc Chagall, Béla Bartók e Hannah Arendt – que depois se exilariam nos EUA. O azarado Walter Benjamin preferiu suicidar-se na fronteira dos Pirineus, quando seguia para a capital portuguesa.

Salazar tentou censurar a música e a literatura, mas foi desafiado por poetas, como Fernando Pessoa

Salazar era severo e seco como bacalhau. Morreu solteiro e sem filhos. Aparentemente (há controvérsias) teve amantes e sem dúvida foi loucamente (botem louca nisso) amado pela inefável d. Maria, a fiel Maria de Jesus Caetano Freire, uma espécie de Cérbero de saias, que pelo tirano viveu de corpo e alma, sem nunca confessar sua paixão – e morreu virgem, em 1981. Passou de criada a governanta – para muitos, governadora, “a mulher mais importante de Portugal no século 20″.

Falava ainda menos que Salazar, e converteu o aristocrático Palácio de Belém numa chácara, com galinhas e coelhos. Todas as manhãs barbeava o seu amado com uma navalha. Analfabeta, fez o primário já adulta, mas controlava as despesas da casa e o acesso das visitas a Salazar.

Salazar recebia jornais falsos no fim de sua vida, para pensar que ainda estava no poder  Foto: Editora Todavia

No dia 3 de agosto de 1968, ao receber seu pedicuro, o ditador sentou-se precipitadamente numa daquelas cadeiras tipo diretor de cinema, de madeira e lona. E estatelou-se, batendo a cabeça no chão. Sofreu uma hemorragia cerebral, com complicações que causaram sua morte quase dois anos depois. A autoridade de Salazar era tal que ninguém teve coragem de o informar de que já não estava mais no poder, sucedido por Marcelo Caetano. Durante 23 meses, o ex-ditador continuou a assinar documentos de mentirinha, a instruir ministros, a conceder audiências de faz de conta.

Diariamente, imprimia-se apenas para Salazar um único exemplar “especial” do Diário de Notícias, então o mais importante jornal português, cuidadosamente expurgado de notícias que desmascarassem a farsa (como menções ao novo primeiro-ministro). O censor era agora vítima da censura que ele próprio criara.

O ditador morreu em julho de 1970, e foi enterrado na sua terra natal. Indiscutivelmente parcimonioso e austero, a casa onde veio ao mundo tem uma placa: “Aqui nasceu o dr. Oliveira Salazar, um senhor que governou e nada roubou”. À 0h25 do dia 25 de abril de 1974, a Rádio Renascença emitiu a canção Grândola Vila Morena, de José Afonso, a senha para a sublevação de jovens oficiais militares que vai depor o regime. Ou a Revolução dos Cravos, já que os canos das espingardas foram enfeitados por populares com flores vermelhas. Hoje, Portugal é um país democrático, moderno e dinâmico – e Lisboa, uma das mais fascinantes cidades do mundo. Até certo ponto, porém, o salazarismo caiu de poder – como o próprio Salazar ao cair da cadeira. Caso único de um déspota derrubado pelo próprio trono.

A INCRÍVEL HISTÓRIA DE ANTONIO SALAZAR

MARCO FERRARI

TRADUÇÃO DE VASCO GATO

TODAVIA

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