Drama de garota judia é tema do romance de estreia da poeta norte-americana Sarah Manguso


‘Very Cold People’ transforma uma infância dolorosa em algo bonito

Por Alexandra Jacobs
Atualização:

Anatomia pode ser destino, como disse Sigmund Freud, mas a geografia também é um fator importante. Os personagens do primeiro romance de Sarah Manguso, Very Cold People, parecem literalmente moldados, como esculturas de gelo, por morarem em uma cidade sombria de Massachusetts. Embora fictícia, a cidade reflete certos aspectos da Nova Inglaterra – como as placas nas casas mais antigas e o sotaque dos patrícios – com absoluta precisão. O nome da cidade, Waitsfield, sugere um lugar cujos moradores estão morrendo de vontade de que algo aconteça ou estão morrendo de vontade de ir embora. (Sem ofensa à Waitsfield da vida real, Vermont, que parece encantadora). “Menininha impaciente!”, pensa a protagonista, Ruthie, sobre o túmulo de um bebê no antigo cemitério local. Sua infância se passa na década de 1980, mas suas restrições e crueldades têm uma vibe do século XVII.

Em seu primeiro romance, personagens de Sarah Mangusoparecem moldados como esculturas de gelo Foto: Hogarth Books

Em Waitsfield, a neve é comum, uma inconveniência constante; ela se “acumula feito poeira” e “cai aos montes” e se empilha nas calçadas. Ruthie está amadurecendo e – aguardamos e confiamos – planejando sua fuga, ao longo de 191 páginas escassas que seriam ainda menos se sua história não fosse narrada em parágrafos curtos, separados por espaços em branco, como versos. Mais conhecida como memorialista e ensaísta, Manguso também escreve poesia, e isso fica evidente na sua ficção. Apesar de lidar com as verdades feias e confusas da vida, sua escrita é compacta e bonita. Ruthie é filha única, judia e italiana em um meio onde ser qualquer coisa que não seja Cabot, Lowell ou algum outro nome Mayflower é considerado algo menor, “não branco”. Na creche, ela tem o que hoje é conhecido como mutismo seletivo. “Eu era simplesmente uma pessoa que não tinha nada para compartilhar, nada que valesse a pena compartilhar”, lembra ela, com pena de sua “grande professora cor-de-rosa” por não entender. Sua família não vive na pobreza extrema (seu pai é contador), mas não há, evidentemente, dinheiro suficiente para o conforto. Na casa deles, cuja pintura “era desbotada, da cor da neve suja”, os banhos têm pouca água e os credores ligam toda hora. Todo mundo tem de economizar: olhar as fotos dos catálogos e revistas muitas vezes substitui a coisa real. A comida é processada ou vencida, e o chá gelado, a limonada e até o leite são todos feitos de pó, como se a neve suja tivesse entrado na cozinha. Ruthie até consegue suportar tudo isto, mas seus pais são perversos, não no sentido da gíria de Massachusetts, mas como os vilões dos livros infantis de Roald Dahl: alternadamente ausentes ou muito presentes na claustrofobia de suas modestas circunstâncias. As cabeceiras batem; os cabelos cheiram, as partes privadas aparecem aqui e ali. Em Very Cold People, alguém sempre parece estar entrando embaraçosamente no banheiro. Tem sangue. E também catarro, vômito e outras efusões corporais. Mesmo o relativo refúgio do auditório da escola durante o ensaio de uma peça evoca “as entranhas de um animal abatido”. A mãe de Ruthie em particular – uma dona de casa depressiva que resmunga e às vezes nem sai da cama – é uma pessoa difícil, um exemplo de consciência de classe que chega a pregar anúncios de casamento de famílias brancas na geladeira, sempre obcecada por sexo e casamento. “Você parece uma noiva”, ela diz a Ruthie, maravilhada, envolvendo-a em lençóis depois de uma operação. Ela também é narcisista e retraída e se recusa a repetir um ocasional gesto afetuoso, como um afago no cabelo ou uma brincadeira com a mangueira do jardim. Alheia até mesmo à cor dos olhos da filha, ela zomba de como a menina fica de aparelho. “Ela queria que eu soubesse que eu era feia”, conclui uma resignada Ruthie. “Ela estava me ajudando a me preparar para o mundo”. Manguso é terrivelmente comovente com a fé da pequena Ruthie em um amor materno que nunca vem e sua compreensão do que o deve ter impossibilitado. Mas aos poucos ela também mostra como na América a identidade feminina pode ser construída com objetos materiais – bonecas, insígnias de escoteira, presilhas, maquiagem, confetes brilhantes (outro eco da neve) – e depois demolida por violações, sexuais ou não. O toque inadequado de um professor de ginástica; o comentário de um vendedor de sapatos; o assustador pai de um amigo, a apalpada no trem de todo dia. Todas essas coisas acontecem em uma época em que tais eventos não eram considerados ofensas denunciáveis, mas apenas uma parte do crescimento – até mesmo da construção do caráter. “Você aprende a comer violência”, Ruthie filosofa sobre seus encontros com o valentão da sala. Mas, inevitavelmente, vai vomitar automutilação disfarçada de calma: arrancar os cabelos, puxar as unhas, cuspir a comida do guardanapo amassado. Quando as enxaquecas chegam, com seus halos ofuscantes, é quase um alívio. Manguso é tão magistral em fazer beleza da velha e chata dor diária que quando as reviravoltas mais dramáticas chegam – suicídios, gravidez na adolescência – quase parecem supérfluas. O livro é um forte compêndio dos abusos de uma infância carente: mil cortes primorosamente observados e sobrevividos. O efeito é cumulativo, e esse romance que é quase uma novela supera seu peso. Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU SERVIÇO ​Very Cold People Sarah Manguso Hogarth - 191 páginas - US $26.

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Anatomia pode ser destino, como disse Sigmund Freud, mas a geografia também é um fator importante. Os personagens do primeiro romance de Sarah Manguso, Very Cold People, parecem literalmente moldados, como esculturas de gelo, por morarem em uma cidade sombria de Massachusetts. Embora fictícia, a cidade reflete certos aspectos da Nova Inglaterra – como as placas nas casas mais antigas e o sotaque dos patrícios – com absoluta precisão. O nome da cidade, Waitsfield, sugere um lugar cujos moradores estão morrendo de vontade de que algo aconteça ou estão morrendo de vontade de ir embora. (Sem ofensa à Waitsfield da vida real, Vermont, que parece encantadora). “Menininha impaciente!”, pensa a protagonista, Ruthie, sobre o túmulo de um bebê no antigo cemitério local. Sua infância se passa na década de 1980, mas suas restrições e crueldades têm uma vibe do século XVII.

Em seu primeiro romance, personagens de Sarah Mangusoparecem moldados como esculturas de gelo Foto: Hogarth Books

Em Waitsfield, a neve é comum, uma inconveniência constante; ela se “acumula feito poeira” e “cai aos montes” e se empilha nas calçadas. Ruthie está amadurecendo e – aguardamos e confiamos – planejando sua fuga, ao longo de 191 páginas escassas que seriam ainda menos se sua história não fosse narrada em parágrafos curtos, separados por espaços em branco, como versos. Mais conhecida como memorialista e ensaísta, Manguso também escreve poesia, e isso fica evidente na sua ficção. Apesar de lidar com as verdades feias e confusas da vida, sua escrita é compacta e bonita. Ruthie é filha única, judia e italiana em um meio onde ser qualquer coisa que não seja Cabot, Lowell ou algum outro nome Mayflower é considerado algo menor, “não branco”. Na creche, ela tem o que hoje é conhecido como mutismo seletivo. “Eu era simplesmente uma pessoa que não tinha nada para compartilhar, nada que valesse a pena compartilhar”, lembra ela, com pena de sua “grande professora cor-de-rosa” por não entender. Sua família não vive na pobreza extrema (seu pai é contador), mas não há, evidentemente, dinheiro suficiente para o conforto. Na casa deles, cuja pintura “era desbotada, da cor da neve suja”, os banhos têm pouca água e os credores ligam toda hora. Todo mundo tem de economizar: olhar as fotos dos catálogos e revistas muitas vezes substitui a coisa real. A comida é processada ou vencida, e o chá gelado, a limonada e até o leite são todos feitos de pó, como se a neve suja tivesse entrado na cozinha. Ruthie até consegue suportar tudo isto, mas seus pais são perversos, não no sentido da gíria de Massachusetts, mas como os vilões dos livros infantis de Roald Dahl: alternadamente ausentes ou muito presentes na claustrofobia de suas modestas circunstâncias. As cabeceiras batem; os cabelos cheiram, as partes privadas aparecem aqui e ali. Em Very Cold People, alguém sempre parece estar entrando embaraçosamente no banheiro. Tem sangue. E também catarro, vômito e outras efusões corporais. Mesmo o relativo refúgio do auditório da escola durante o ensaio de uma peça evoca “as entranhas de um animal abatido”. A mãe de Ruthie em particular – uma dona de casa depressiva que resmunga e às vezes nem sai da cama – é uma pessoa difícil, um exemplo de consciência de classe que chega a pregar anúncios de casamento de famílias brancas na geladeira, sempre obcecada por sexo e casamento. “Você parece uma noiva”, ela diz a Ruthie, maravilhada, envolvendo-a em lençóis depois de uma operação. Ela também é narcisista e retraída e se recusa a repetir um ocasional gesto afetuoso, como um afago no cabelo ou uma brincadeira com a mangueira do jardim. Alheia até mesmo à cor dos olhos da filha, ela zomba de como a menina fica de aparelho. “Ela queria que eu soubesse que eu era feia”, conclui uma resignada Ruthie. “Ela estava me ajudando a me preparar para o mundo”. Manguso é terrivelmente comovente com a fé da pequena Ruthie em um amor materno que nunca vem e sua compreensão do que o deve ter impossibilitado. Mas aos poucos ela também mostra como na América a identidade feminina pode ser construída com objetos materiais – bonecas, insígnias de escoteira, presilhas, maquiagem, confetes brilhantes (outro eco da neve) – e depois demolida por violações, sexuais ou não. O toque inadequado de um professor de ginástica; o comentário de um vendedor de sapatos; o assustador pai de um amigo, a apalpada no trem de todo dia. Todas essas coisas acontecem em uma época em que tais eventos não eram considerados ofensas denunciáveis, mas apenas uma parte do crescimento – até mesmo da construção do caráter. “Você aprende a comer violência”, Ruthie filosofa sobre seus encontros com o valentão da sala. Mas, inevitavelmente, vai vomitar automutilação disfarçada de calma: arrancar os cabelos, puxar as unhas, cuspir a comida do guardanapo amassado. Quando as enxaquecas chegam, com seus halos ofuscantes, é quase um alívio. Manguso é tão magistral em fazer beleza da velha e chata dor diária que quando as reviravoltas mais dramáticas chegam – suicídios, gravidez na adolescência – quase parecem supérfluas. O livro é um forte compêndio dos abusos de uma infância carente: mil cortes primorosamente observados e sobrevividos. O efeito é cumulativo, e esse romance que é quase uma novela supera seu peso. Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU SERVIÇO ​Very Cold People Sarah Manguso Hogarth - 191 páginas - US $26.

Anatomia pode ser destino, como disse Sigmund Freud, mas a geografia também é um fator importante. Os personagens do primeiro romance de Sarah Manguso, Very Cold People, parecem literalmente moldados, como esculturas de gelo, por morarem em uma cidade sombria de Massachusetts. Embora fictícia, a cidade reflete certos aspectos da Nova Inglaterra – como as placas nas casas mais antigas e o sotaque dos patrícios – com absoluta precisão. O nome da cidade, Waitsfield, sugere um lugar cujos moradores estão morrendo de vontade de que algo aconteça ou estão morrendo de vontade de ir embora. (Sem ofensa à Waitsfield da vida real, Vermont, que parece encantadora). “Menininha impaciente!”, pensa a protagonista, Ruthie, sobre o túmulo de um bebê no antigo cemitério local. Sua infância se passa na década de 1980, mas suas restrições e crueldades têm uma vibe do século XVII.

Em seu primeiro romance, personagens de Sarah Mangusoparecem moldados como esculturas de gelo Foto: Hogarth Books

Em Waitsfield, a neve é comum, uma inconveniência constante; ela se “acumula feito poeira” e “cai aos montes” e se empilha nas calçadas. Ruthie está amadurecendo e – aguardamos e confiamos – planejando sua fuga, ao longo de 191 páginas escassas que seriam ainda menos se sua história não fosse narrada em parágrafos curtos, separados por espaços em branco, como versos. Mais conhecida como memorialista e ensaísta, Manguso também escreve poesia, e isso fica evidente na sua ficção. Apesar de lidar com as verdades feias e confusas da vida, sua escrita é compacta e bonita. Ruthie é filha única, judia e italiana em um meio onde ser qualquer coisa que não seja Cabot, Lowell ou algum outro nome Mayflower é considerado algo menor, “não branco”. Na creche, ela tem o que hoje é conhecido como mutismo seletivo. “Eu era simplesmente uma pessoa que não tinha nada para compartilhar, nada que valesse a pena compartilhar”, lembra ela, com pena de sua “grande professora cor-de-rosa” por não entender. Sua família não vive na pobreza extrema (seu pai é contador), mas não há, evidentemente, dinheiro suficiente para o conforto. Na casa deles, cuja pintura “era desbotada, da cor da neve suja”, os banhos têm pouca água e os credores ligam toda hora. Todo mundo tem de economizar: olhar as fotos dos catálogos e revistas muitas vezes substitui a coisa real. A comida é processada ou vencida, e o chá gelado, a limonada e até o leite são todos feitos de pó, como se a neve suja tivesse entrado na cozinha. Ruthie até consegue suportar tudo isto, mas seus pais são perversos, não no sentido da gíria de Massachusetts, mas como os vilões dos livros infantis de Roald Dahl: alternadamente ausentes ou muito presentes na claustrofobia de suas modestas circunstâncias. As cabeceiras batem; os cabelos cheiram, as partes privadas aparecem aqui e ali. Em Very Cold People, alguém sempre parece estar entrando embaraçosamente no banheiro. Tem sangue. E também catarro, vômito e outras efusões corporais. Mesmo o relativo refúgio do auditório da escola durante o ensaio de uma peça evoca “as entranhas de um animal abatido”. A mãe de Ruthie em particular – uma dona de casa depressiva que resmunga e às vezes nem sai da cama – é uma pessoa difícil, um exemplo de consciência de classe que chega a pregar anúncios de casamento de famílias brancas na geladeira, sempre obcecada por sexo e casamento. “Você parece uma noiva”, ela diz a Ruthie, maravilhada, envolvendo-a em lençóis depois de uma operação. Ela também é narcisista e retraída e se recusa a repetir um ocasional gesto afetuoso, como um afago no cabelo ou uma brincadeira com a mangueira do jardim. Alheia até mesmo à cor dos olhos da filha, ela zomba de como a menina fica de aparelho. “Ela queria que eu soubesse que eu era feia”, conclui uma resignada Ruthie. “Ela estava me ajudando a me preparar para o mundo”. Manguso é terrivelmente comovente com a fé da pequena Ruthie em um amor materno que nunca vem e sua compreensão do que o deve ter impossibilitado. Mas aos poucos ela também mostra como na América a identidade feminina pode ser construída com objetos materiais – bonecas, insígnias de escoteira, presilhas, maquiagem, confetes brilhantes (outro eco da neve) – e depois demolida por violações, sexuais ou não. O toque inadequado de um professor de ginástica; o comentário de um vendedor de sapatos; o assustador pai de um amigo, a apalpada no trem de todo dia. Todas essas coisas acontecem em uma época em que tais eventos não eram considerados ofensas denunciáveis, mas apenas uma parte do crescimento – até mesmo da construção do caráter. “Você aprende a comer violência”, Ruthie filosofa sobre seus encontros com o valentão da sala. Mas, inevitavelmente, vai vomitar automutilação disfarçada de calma: arrancar os cabelos, puxar as unhas, cuspir a comida do guardanapo amassado. Quando as enxaquecas chegam, com seus halos ofuscantes, é quase um alívio. Manguso é tão magistral em fazer beleza da velha e chata dor diária que quando as reviravoltas mais dramáticas chegam – suicídios, gravidez na adolescência – quase parecem supérfluas. O livro é um forte compêndio dos abusos de uma infância carente: mil cortes primorosamente observados e sobrevividos. O efeito é cumulativo, e esse romance que é quase uma novela supera seu peso. Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU SERVIÇO ​Very Cold People Sarah Manguso Hogarth - 191 páginas - US $26.

Anatomia pode ser destino, como disse Sigmund Freud, mas a geografia também é um fator importante. Os personagens do primeiro romance de Sarah Manguso, Very Cold People, parecem literalmente moldados, como esculturas de gelo, por morarem em uma cidade sombria de Massachusetts. Embora fictícia, a cidade reflete certos aspectos da Nova Inglaterra – como as placas nas casas mais antigas e o sotaque dos patrícios – com absoluta precisão. O nome da cidade, Waitsfield, sugere um lugar cujos moradores estão morrendo de vontade de que algo aconteça ou estão morrendo de vontade de ir embora. (Sem ofensa à Waitsfield da vida real, Vermont, que parece encantadora). “Menininha impaciente!”, pensa a protagonista, Ruthie, sobre o túmulo de um bebê no antigo cemitério local. Sua infância se passa na década de 1980, mas suas restrições e crueldades têm uma vibe do século XVII.

Em seu primeiro romance, personagens de Sarah Mangusoparecem moldados como esculturas de gelo Foto: Hogarth Books

Em Waitsfield, a neve é comum, uma inconveniência constante; ela se “acumula feito poeira” e “cai aos montes” e se empilha nas calçadas. Ruthie está amadurecendo e – aguardamos e confiamos – planejando sua fuga, ao longo de 191 páginas escassas que seriam ainda menos se sua história não fosse narrada em parágrafos curtos, separados por espaços em branco, como versos. Mais conhecida como memorialista e ensaísta, Manguso também escreve poesia, e isso fica evidente na sua ficção. Apesar de lidar com as verdades feias e confusas da vida, sua escrita é compacta e bonita. Ruthie é filha única, judia e italiana em um meio onde ser qualquer coisa que não seja Cabot, Lowell ou algum outro nome Mayflower é considerado algo menor, “não branco”. Na creche, ela tem o que hoje é conhecido como mutismo seletivo. “Eu era simplesmente uma pessoa que não tinha nada para compartilhar, nada que valesse a pena compartilhar”, lembra ela, com pena de sua “grande professora cor-de-rosa” por não entender. Sua família não vive na pobreza extrema (seu pai é contador), mas não há, evidentemente, dinheiro suficiente para o conforto. Na casa deles, cuja pintura “era desbotada, da cor da neve suja”, os banhos têm pouca água e os credores ligam toda hora. Todo mundo tem de economizar: olhar as fotos dos catálogos e revistas muitas vezes substitui a coisa real. A comida é processada ou vencida, e o chá gelado, a limonada e até o leite são todos feitos de pó, como se a neve suja tivesse entrado na cozinha. Ruthie até consegue suportar tudo isto, mas seus pais são perversos, não no sentido da gíria de Massachusetts, mas como os vilões dos livros infantis de Roald Dahl: alternadamente ausentes ou muito presentes na claustrofobia de suas modestas circunstâncias. As cabeceiras batem; os cabelos cheiram, as partes privadas aparecem aqui e ali. Em Very Cold People, alguém sempre parece estar entrando embaraçosamente no banheiro. Tem sangue. E também catarro, vômito e outras efusões corporais. Mesmo o relativo refúgio do auditório da escola durante o ensaio de uma peça evoca “as entranhas de um animal abatido”. A mãe de Ruthie em particular – uma dona de casa depressiva que resmunga e às vezes nem sai da cama – é uma pessoa difícil, um exemplo de consciência de classe que chega a pregar anúncios de casamento de famílias brancas na geladeira, sempre obcecada por sexo e casamento. “Você parece uma noiva”, ela diz a Ruthie, maravilhada, envolvendo-a em lençóis depois de uma operação. Ela também é narcisista e retraída e se recusa a repetir um ocasional gesto afetuoso, como um afago no cabelo ou uma brincadeira com a mangueira do jardim. Alheia até mesmo à cor dos olhos da filha, ela zomba de como a menina fica de aparelho. “Ela queria que eu soubesse que eu era feia”, conclui uma resignada Ruthie. “Ela estava me ajudando a me preparar para o mundo”. Manguso é terrivelmente comovente com a fé da pequena Ruthie em um amor materno que nunca vem e sua compreensão do que o deve ter impossibilitado. Mas aos poucos ela também mostra como na América a identidade feminina pode ser construída com objetos materiais – bonecas, insígnias de escoteira, presilhas, maquiagem, confetes brilhantes (outro eco da neve) – e depois demolida por violações, sexuais ou não. O toque inadequado de um professor de ginástica; o comentário de um vendedor de sapatos; o assustador pai de um amigo, a apalpada no trem de todo dia. Todas essas coisas acontecem em uma época em que tais eventos não eram considerados ofensas denunciáveis, mas apenas uma parte do crescimento – até mesmo da construção do caráter. “Você aprende a comer violência”, Ruthie filosofa sobre seus encontros com o valentão da sala. Mas, inevitavelmente, vai vomitar automutilação disfarçada de calma: arrancar os cabelos, puxar as unhas, cuspir a comida do guardanapo amassado. Quando as enxaquecas chegam, com seus halos ofuscantes, é quase um alívio. Manguso é tão magistral em fazer beleza da velha e chata dor diária que quando as reviravoltas mais dramáticas chegam – suicídios, gravidez na adolescência – quase parecem supérfluas. O livro é um forte compêndio dos abusos de uma infância carente: mil cortes primorosamente observados e sobrevividos. O efeito é cumulativo, e esse romance que é quase uma novela supera seu peso. Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU SERVIÇO ​Very Cold People Sarah Manguso Hogarth - 191 páginas - US $26.

Anatomia pode ser destino, como disse Sigmund Freud, mas a geografia também é um fator importante. Os personagens do primeiro romance de Sarah Manguso, Very Cold People, parecem literalmente moldados, como esculturas de gelo, por morarem em uma cidade sombria de Massachusetts. Embora fictícia, a cidade reflete certos aspectos da Nova Inglaterra – como as placas nas casas mais antigas e o sotaque dos patrícios – com absoluta precisão. O nome da cidade, Waitsfield, sugere um lugar cujos moradores estão morrendo de vontade de que algo aconteça ou estão morrendo de vontade de ir embora. (Sem ofensa à Waitsfield da vida real, Vermont, que parece encantadora). “Menininha impaciente!”, pensa a protagonista, Ruthie, sobre o túmulo de um bebê no antigo cemitério local. Sua infância se passa na década de 1980, mas suas restrições e crueldades têm uma vibe do século XVII.

Em seu primeiro romance, personagens de Sarah Mangusoparecem moldados como esculturas de gelo Foto: Hogarth Books

Em Waitsfield, a neve é comum, uma inconveniência constante; ela se “acumula feito poeira” e “cai aos montes” e se empilha nas calçadas. Ruthie está amadurecendo e – aguardamos e confiamos – planejando sua fuga, ao longo de 191 páginas escassas que seriam ainda menos se sua história não fosse narrada em parágrafos curtos, separados por espaços em branco, como versos. Mais conhecida como memorialista e ensaísta, Manguso também escreve poesia, e isso fica evidente na sua ficção. Apesar de lidar com as verdades feias e confusas da vida, sua escrita é compacta e bonita. Ruthie é filha única, judia e italiana em um meio onde ser qualquer coisa que não seja Cabot, Lowell ou algum outro nome Mayflower é considerado algo menor, “não branco”. Na creche, ela tem o que hoje é conhecido como mutismo seletivo. “Eu era simplesmente uma pessoa que não tinha nada para compartilhar, nada que valesse a pena compartilhar”, lembra ela, com pena de sua “grande professora cor-de-rosa” por não entender. Sua família não vive na pobreza extrema (seu pai é contador), mas não há, evidentemente, dinheiro suficiente para o conforto. Na casa deles, cuja pintura “era desbotada, da cor da neve suja”, os banhos têm pouca água e os credores ligam toda hora. Todo mundo tem de economizar: olhar as fotos dos catálogos e revistas muitas vezes substitui a coisa real. A comida é processada ou vencida, e o chá gelado, a limonada e até o leite são todos feitos de pó, como se a neve suja tivesse entrado na cozinha. Ruthie até consegue suportar tudo isto, mas seus pais são perversos, não no sentido da gíria de Massachusetts, mas como os vilões dos livros infantis de Roald Dahl: alternadamente ausentes ou muito presentes na claustrofobia de suas modestas circunstâncias. As cabeceiras batem; os cabelos cheiram, as partes privadas aparecem aqui e ali. Em Very Cold People, alguém sempre parece estar entrando embaraçosamente no banheiro. Tem sangue. E também catarro, vômito e outras efusões corporais. Mesmo o relativo refúgio do auditório da escola durante o ensaio de uma peça evoca “as entranhas de um animal abatido”. A mãe de Ruthie em particular – uma dona de casa depressiva que resmunga e às vezes nem sai da cama – é uma pessoa difícil, um exemplo de consciência de classe que chega a pregar anúncios de casamento de famílias brancas na geladeira, sempre obcecada por sexo e casamento. “Você parece uma noiva”, ela diz a Ruthie, maravilhada, envolvendo-a em lençóis depois de uma operação. Ela também é narcisista e retraída e se recusa a repetir um ocasional gesto afetuoso, como um afago no cabelo ou uma brincadeira com a mangueira do jardim. Alheia até mesmo à cor dos olhos da filha, ela zomba de como a menina fica de aparelho. “Ela queria que eu soubesse que eu era feia”, conclui uma resignada Ruthie. “Ela estava me ajudando a me preparar para o mundo”. Manguso é terrivelmente comovente com a fé da pequena Ruthie em um amor materno que nunca vem e sua compreensão do que o deve ter impossibilitado. Mas aos poucos ela também mostra como na América a identidade feminina pode ser construída com objetos materiais – bonecas, insígnias de escoteira, presilhas, maquiagem, confetes brilhantes (outro eco da neve) – e depois demolida por violações, sexuais ou não. O toque inadequado de um professor de ginástica; o comentário de um vendedor de sapatos; o assustador pai de um amigo, a apalpada no trem de todo dia. Todas essas coisas acontecem em uma época em que tais eventos não eram considerados ofensas denunciáveis, mas apenas uma parte do crescimento – até mesmo da construção do caráter. “Você aprende a comer violência”, Ruthie filosofa sobre seus encontros com o valentão da sala. Mas, inevitavelmente, vai vomitar automutilação disfarçada de calma: arrancar os cabelos, puxar as unhas, cuspir a comida do guardanapo amassado. Quando as enxaquecas chegam, com seus halos ofuscantes, é quase um alívio. Manguso é tão magistral em fazer beleza da velha e chata dor diária que quando as reviravoltas mais dramáticas chegam – suicídios, gravidez na adolescência – quase parecem supérfluas. O livro é um forte compêndio dos abusos de uma infância carente: mil cortes primorosamente observados e sobrevividos. O efeito é cumulativo, e esse romance que é quase uma novela supera seu peso. Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU SERVIÇO ​Very Cold People Sarah Manguso Hogarth - 191 páginas - US $26.

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