Em um conto folclórico popularizado pelos irmãos Grimm e baseado nas Mil e uma Noites, o príncipe Omar deixa a ilha de Kaledan para encontrar seu grande amor, a princesa Sheherazade, na China. O reino do protagonista inspirou, muito provavelmente, o paradisíaco planeta de Caladan, de onde a nobre família dos Atreides parte para governar o desértico mundo Arrakis em Duna, clássico da ficção científica lançado em 1965. A obra-prima de Frank Herbert (1920-1986) deu origem a uma série de seis livros que está sendo relançada no País em edições de capa dura com ilustrações de Marc Simonetti.
Há um conto curtíssimo de Jorge Luis Borges chamado O Livro da Areia, de 1975, que descreve um volume de páginas infinitas. A cada vez que é aberto, um trecho inédito se revela. Nunca se encontra a primeira folha, muito menos a derradeira. Segundo o vendedor de bíblias do conto, o título é esse “porque nem o livro nem a areia têm princípio ou fim”. O protagonista compra a obra misteriosa e a esconde “atrás de uns volumes avulsos d'As Mil e uma Noites”. Para Borges, se fossem 999 noites, sentiríamos a falta de uma. “Assim, porém, sentimos que nos dão uma coisa infinita e que para completar ainda nos dão uma noite de vantagem.”
Da mesma maneira, a vertigem de Duna tende ao infinito, seja pelo leque de interpretações possíveis ou pela vastidão de um universo que nunca se esgota. Intrigas palacianas permeiam a superfície narrativa de Duna, cujo complexo jogo político equilibra-se entre o poderio do imperador padixá Shaddam IV, as famílias nobres detentoras de feudos, a Guilda, que monopoliza o transporte espacial, o consórcio mercantil Choam, o corpo deliberativo Landsraad e seitas como a das Bene Gesserit. Todas as facções são abastecidas pelo mélange, substância que causa dependência química, mas concede poderes mentais e clarividência (na época, o LSD era a droga do momento).
A especiaria – encontrada somente em Arrakis, planeta árido e hostil, porém estratégico – é fundamental para a economia do Imperium (antevendo as crises do petróleo no Oriente Médio), uma vez que a humanidade necessita das capacidades sobre-humanas provocadas por ela para tarefas essenciais como fazer cálculos lógicos e pilotar naves sem o auxílio de computadores, banidos após uma antiquíssima guerra contra as máquinas (outra paranoia flagrante nos anos 1960, visto que Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, de Philip K. Dick, foi publicado apenas três anos mais tarde).
Os Atreides (descendentes de Agamemnon, filho de Atreu na mitologia grega) são encarregados de assumir o trono de Arrakis, mas tornam-se alvo de um complô dos Harkonnen, governantes anteriores. O jovem Paul Atreides foge e passa a viver em meio ao povo do deserto – os fremen, que são como beduínos. Ele torna-se uma espécie de profeta, o Muad’Dib, e lidera uma revolução contra o imperador padixá (“padishah” era um título persa usado por sultões e xás na Turquia Otomana e no Irã). A ascensão messiânica no deserto ecoa a vida de Maomé, fundador do Islã; e a faceta militar guarda resquícios da trajetória de Lawrence da Arábia, agente do exército britânico que ajudou a organizar uma revolta árabe contra o Império Otomano na 1.ª Guerra Mundial.
Um artigo do egípcio Khalid M. Baheyeldin lista mais de cem conceitos e vocábulos de Duna que evocam elementos árabes. A pouca debatida herança do Islã na ficção científica norte-americana, no entanto, não é uma exclusividade de Duna. Essa ressonância muçulmana está nos planetas Klendathu, de Tropas Estelares (1959, Robert A. Heinlein) e Tatooine, de Star Wars (1977). A principal obra ocidental do gênero a abordar o tema é The Years of Rice and Salt (Os Anos de Arroz e Sal, 2002), de Kim Stanley Robinson, que imagina uma história alternativa em que a peste negra devastou a Europa e os mouros recolonizaram o Velho Continente.
A preocupação ecológica coloca o épico de Herbert à frente de seu tempo em uma época em que quase ninguém falava sobre mudanças climáticas. Quem visitasse as praias da cidade de Florence, no estado americano de Oregon, no início da década de 1960, possivelmente veria o autor estudando as formações de areia do litoral. Desde o início do século 20, um projeto do Departamento de Agricultura dos EUA para estabilizar as dunas da região consistia em introduzir uma planta que impedia a areia de invadir as ruas e casas no entorno. No entanto, essa vegetação intrusa cumpriu a tarefa melhor do que o esperado e começou a ameaçar o bioma, espremendo as dunas contra o mar, de modo que a cidade passou a sofrer com ressacas, pois as ondas deixaram de ser barradas pelos bancos de areia. Até hoje, o governo ainda não solucionou o problema ambiental das dunas de Oregon, mas a possibilidade de a humanidade alterar um ecossistema intrigou Herbert. No cerne de Duna está a ideia de que o ambiente modifica o homem e é modificado por ele.
Não é por acaso que, entre as mais de 50 páginas de apêndices ao final do primeiro livro da saga, além de notas cartográficas, há um anexo sobre a religião e outro sobre a ecologia de Arrakis. O universo de Duna possui uma construção de mundo cujo detalhamento, quase sem precedentes na literatura, rivaliza com obras da alta fantasia, como as de J.R.R. Tolkien e Andrzej Sapkowski. O clima árido permeia as páginas desde as detalhadas descrições até expressões dos fremen, como o xingamento “você tem mãos úmidas” e as rugas, chamadas de “rastros de areia”. Quando Paul chora por uma perda, parece extraordinário que ele “derrame água pelos mortos”, uma vez que a água é um recurso extremamente escasso em Arrakis. Em dado momento, um sujeito alista-se na Jihad de Muad’Dibpor ter ouvido que levaria a cruzada a planetas em que existia “uma coisa chamada mar”
Duna e Messias de Duna, podem ser lidos como um único romance completo, de ascensão e manutenção de poder, sendo que a sequência trabalha bem as personagens em seus momentos íntimos, introspectivos, com um ritmo narrativo radicalmente mais cadenciado. Filhos de Duna, o terceiro, deve ser publicado no final de agosto.
O primeiro cineasta a tentar captar a grandiosidade de Duna foi o chileno Alejandro Jodorowsky (diretor de A Montanha Sagrada), nos anos 1970. Ele recrutou Chris Foss, capista de livros de Asimov e “Doc” Smith; o artista gráfico soturno H.R. Giger; e o quadrinista francês Jean Giraud, que fez os figurinos e um roteiro completo em quadrinhos do longa, com mais de 3 mil desenhos. Jodo elencou Orson Welles, Mick Jagger e Salvador Dalí (que pediu 100 mil dólares para cada minuto em que aparecesse na película) em um projeto com trilha sonora do Pink Floyd e orçamento astronômico para a época. É claro que o filme não saiu do papel.
O fiasco de Jodorowsky, porém, inspirou diretamente Star Wars e Alien: O Oitavo Passageiro (Ridley Scott utilizou os mesmos artistas convocados pelo chileno), e indiretamente Blade Runner e Matrix, sendo um dos filmes mais influentes da história sem nunca ter sido rodado. Duna finalmente foi adaptado em 1984 por David Lynch (diretor de Twin Peaks), mas a bilheteria não chegou a pagar o longa. Nos próximos anos, o épico ganhará uma refilmagem pelas mãos do canadense Denis Villeneuve, que dirigiu A Chegada e Blade Runner 2049.
Mais do que a influência dos irmãos Grimm e das Mil e uma Noites, a ambiciosa saga de Frank Herbert usou a mitologia grega, a história da ascensão e declínio do império bizantino e uma miríade de referências literárias e culturais para inaugurar uma série de proporções monumentais, fugindo dos estereótipos exóticos do Islã e sem se render ao orientalismo que, como nos informa Edward Said, assola a cultura ocidental. Duna permanece relevante em tempos de falência dos tratados ambientais e é um livro necessário em uma era de tensão, na qual xenofobia e anti-islamismo dominam discursos inflamados. Cabe a nós o ensinamento maior de um religião antiga de Duna que une o catolicismo zen-sunita e as tradições budislâmicas: “Não desfigurarás a alma.”
Duna Autor: Frank HerbertTradução: Maria do Carmo ZaniniEditora: Aleph 680 páginas R$ 69,90
Messias de Duna Autor: Frank HerbertTradução: Maria do Carmo ZaniniEditora: Aleph 272 páginas R$ 49,90