É possível escrever literatura sobre o aquecimento global?


Escritores começam a avaliar a urgência do tema e suas possibilidades narrativas

Por Redação

O romance tem um problema de escala. Há séculos ele se concentra principalmente em temas do dia a dia. Não costuma se preocupar com cataclismas ou erupções tetônicas. Compare a Odisseia, de Homero, com o Ulisses, de James Joyce. Enquanto o épico fala de deuses, massacres e destino de nações, o romance celebra o íntimo e o cotidiano.

Viggo Mortensen e Kodi Smit-McPhee protagonizam 'The Road', baseado no romance pós-apocalíptico de Cormac McCarthy Foto: Dimension Filmes

O romance tem um problema com o tempo. Romances são uma das formas pelas quais uma cultura pensa os desafios que encara, mas frequentemente o formato, mais do que olhar para o futuro, vale-se do passado para iluminar o presente. É verdade que o romance vitoriano analisou a rapidez da industrialização da economia e as mudanças nas estruturas de classe da época. Ainda assim, muitos dos grandes livros do período, de Middlemarch a Um Conto de Duas Cidades, usaram contextos históricos. Hoje os romancistas buscam com frequência temas nas duas Guerras Mundiais, ou mesmo em eras mais remotas.

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Essas tendências são uma desvantagem para o escritor na era da mudança climática - uma crise que é tanto atual como futura. O romancista indiano Amitav Ghosh reconheceu esse obstáculo em The Great Derangement, uma coletânea de ensaios publicada em 2016. Num dos ensaios, que aborda ostensivamente a catástrofe ambiental, Ghosh avalia o papel cultural do romance. A mudança climática, argumenta ele,parece um tema por demais amplo, incerto e abstrato para ser trabalhado em um formato que teme o desconhecido e o provisório – isto é, o futuro. Então, se o romance não se presta a confrontar os maiores perigos que a humanidade enfrenta, conseguirá ele manter sua relevância? 

Tempo é um fator que se apresenta em mais de uma forma. Particularmente desde o Modernismo, que viu Joyce e Virginia Woolf dissecarem as minúcias da vida, o tempo literário está circunscrito. Seja no dia de Mrs Dolaway, ou no longo arco do Bildungsroman, geralmente existe um limite nos horizontes temporais dos romances: a duração da vida de um personagem. O tempo do romance é rigidamente restrito, como se estivesse preso ao passado. Já o salto à frente necessário para se divisar a trajetória climática requer parâmetros mais elásticos. 

Nem toda ficção está sujeita a esses limites. Romances de ficção especulativa e des ficção científica - que Ghosh chama com esnobismo de “puxadinhos genéricos” – vêm tentando abordar abertamente a mudança climática. Os limites desses gêneros são difusos e contestados. O romance de J.G. Ballard The Drowned World (1962), um dos primeiros de ficção científica a falar do medo relacionado ao clima, foi reavaliado e reclassificado à medida que a reputação do autor evoluía. Mas o romance literário há muito se definiu como oposição a outros gêneros, e o futuro e seus riscos são abordados apenas por associação. Ou pelo menos tem sido assim até recentemente. 

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À medida que a divisão entre ficção literária e outros tipos de ficção tem se tornando cada vez mais porosa, o establishment literário começou a reconhecer as possibilidades imaginativas da mudança climática. A Estrada, de Cormac McCarthy (2006), romance no qual pai e filho vagam por um mundo cinzento após um apocalipse não designado, foi um ponto inicial de mudança. O livro é uma espécie de ponte entre os medos de uma geração, que envolviam cogumelos nucleares e certeza de destruição mútua, e os da geração seguinte, como derretimento das calotas polares e incêndios devastadores.

McCarthy escreveu A Estrada após se tornar pai depois dos 50 anos. Contemplando com o filho uma paisagem texana, ele visualizou colinas calcinadas e negras – espetáculo que ele não veria, mas o filho sim. A história pode ser interpretada como uma mensagem de McCarthy para o filho; como uma metáfora da agonia universal de deixar descendentes entregues à própria sorte; ou, ainda, como uma dramatização do horror de uma Terra despojada de tudo pela ação do homem. O livro chama a atenção para o fato de que, em certo sentido, romances são sempre sobre o futuro, que é quando serão lidos. É também uma plataforma para escritores dispostos a se engajar em clima – romancistas como Ian McEwan e Margaret Atwood.

Agora, o gênero que McCarthy ajudou a galvanizar, também conhecido como “cli-fi”,está ganhando força. O impulso de contar histórias para gerações futuras é visto em dois exemplos recentes. Em The End We Start From, Megan Hunter fala em “uma inundação sem precedentes. Londres inabitável”. A narradora anônima vaga com sua filha bebê, Z, por essa Grã-Bretanha inundada em busca do pai da menina e de segurança. A narrativa se entrelaça com passagens mitológicas, fechando o círculo entre inundações destrutivas de um futuro “cli-fi” e as origens aquáticas de muitas religiões. 

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De modo semelhante, Future Home of the Living God, de Louise Erdrich, é supostamente escrito por uma mulher para seu filho por nascer, preparando-o para o mundo que vai habitar. O termômetro avança como uma bomba programada. O romance termina com uma passagem lírica na qual o narrador relembra as neves de sua juventude. “No inverno seguinte choveu. O frio foi substituído por uma temperatura amena e refrescante, mas apenas choveu. Aquele foi o ano em que perdemos o inverno.”

 Algumas distopias combinam o espectro da devastação climática com outros medos. The Wall, de John Lancaster, imagina um futuro no qual a costa britânica foi ocupada pelo muro (wall) do título, levantado tanto para conter marés destruidoras quanto “os Outros” – hordas de migrantes que chegam de barco em busca de refúgio. A crise da migração e o Brexit contribuem para uma sombria visão da insularidade paranoica. Em American War, Omar El Accad prevê que no fim do século 21 vastas porções dos Estados Unidos estarão cobertas de água. A Flórida desaparece. Uma segunda Guerra Civil estoura na disputa por combustíveis fósseis. 

Romancistas literários começaram a compreender quemudança climática não é só um assunto urgente, mas uma fonte de dramas e enredos. Muito em breve o tema pode sair do território da ficção científica para o domínio do velho realismo. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

O romance tem um problema de escala. Há séculos ele se concentra principalmente em temas do dia a dia. Não costuma se preocupar com cataclismas ou erupções tetônicas. Compare a Odisseia, de Homero, com o Ulisses, de James Joyce. Enquanto o épico fala de deuses, massacres e destino de nações, o romance celebra o íntimo e o cotidiano.

Viggo Mortensen e Kodi Smit-McPhee protagonizam 'The Road', baseado no romance pós-apocalíptico de Cormac McCarthy Foto: Dimension Filmes

O romance tem um problema com o tempo. Romances são uma das formas pelas quais uma cultura pensa os desafios que encara, mas frequentemente o formato, mais do que olhar para o futuro, vale-se do passado para iluminar o presente. É verdade que o romance vitoriano analisou a rapidez da industrialização da economia e as mudanças nas estruturas de classe da época. Ainda assim, muitos dos grandes livros do período, de Middlemarch a Um Conto de Duas Cidades, usaram contextos históricos. Hoje os romancistas buscam com frequência temas nas duas Guerras Mundiais, ou mesmo em eras mais remotas.

Essas tendências são uma desvantagem para o escritor na era da mudança climática - uma crise que é tanto atual como futura. O romancista indiano Amitav Ghosh reconheceu esse obstáculo em The Great Derangement, uma coletânea de ensaios publicada em 2016. Num dos ensaios, que aborda ostensivamente a catástrofe ambiental, Ghosh avalia o papel cultural do romance. A mudança climática, argumenta ele,parece um tema por demais amplo, incerto e abstrato para ser trabalhado em um formato que teme o desconhecido e o provisório – isto é, o futuro. Então, se o romance não se presta a confrontar os maiores perigos que a humanidade enfrenta, conseguirá ele manter sua relevância? 

Tempo é um fator que se apresenta em mais de uma forma. Particularmente desde o Modernismo, que viu Joyce e Virginia Woolf dissecarem as minúcias da vida, o tempo literário está circunscrito. Seja no dia de Mrs Dolaway, ou no longo arco do Bildungsroman, geralmente existe um limite nos horizontes temporais dos romances: a duração da vida de um personagem. O tempo do romance é rigidamente restrito, como se estivesse preso ao passado. Já o salto à frente necessário para se divisar a trajetória climática requer parâmetros mais elásticos. 

Nem toda ficção está sujeita a esses limites. Romances de ficção especulativa e des ficção científica - que Ghosh chama com esnobismo de “puxadinhos genéricos” – vêm tentando abordar abertamente a mudança climática. Os limites desses gêneros são difusos e contestados. O romance de J.G. Ballard The Drowned World (1962), um dos primeiros de ficção científica a falar do medo relacionado ao clima, foi reavaliado e reclassificado à medida que a reputação do autor evoluía. Mas o romance literário há muito se definiu como oposição a outros gêneros, e o futuro e seus riscos são abordados apenas por associação. Ou pelo menos tem sido assim até recentemente. 

À medida que a divisão entre ficção literária e outros tipos de ficção tem se tornando cada vez mais porosa, o establishment literário começou a reconhecer as possibilidades imaginativas da mudança climática. A Estrada, de Cormac McCarthy (2006), romance no qual pai e filho vagam por um mundo cinzento após um apocalipse não designado, foi um ponto inicial de mudança. O livro é uma espécie de ponte entre os medos de uma geração, que envolviam cogumelos nucleares e certeza de destruição mútua, e os da geração seguinte, como derretimento das calotas polares e incêndios devastadores.

McCarthy escreveu A Estrada após se tornar pai depois dos 50 anos. Contemplando com o filho uma paisagem texana, ele visualizou colinas calcinadas e negras – espetáculo que ele não veria, mas o filho sim. A história pode ser interpretada como uma mensagem de McCarthy para o filho; como uma metáfora da agonia universal de deixar descendentes entregues à própria sorte; ou, ainda, como uma dramatização do horror de uma Terra despojada de tudo pela ação do homem. O livro chama a atenção para o fato de que, em certo sentido, romances são sempre sobre o futuro, que é quando serão lidos. É também uma plataforma para escritores dispostos a se engajar em clima – romancistas como Ian McEwan e Margaret Atwood.

Agora, o gênero que McCarthy ajudou a galvanizar, também conhecido como “cli-fi”,está ganhando força. O impulso de contar histórias para gerações futuras é visto em dois exemplos recentes. Em The End We Start From, Megan Hunter fala em “uma inundação sem precedentes. Londres inabitável”. A narradora anônima vaga com sua filha bebê, Z, por essa Grã-Bretanha inundada em busca do pai da menina e de segurança. A narrativa se entrelaça com passagens mitológicas, fechando o círculo entre inundações destrutivas de um futuro “cli-fi” e as origens aquáticas de muitas religiões. 

De modo semelhante, Future Home of the Living God, de Louise Erdrich, é supostamente escrito por uma mulher para seu filho por nascer, preparando-o para o mundo que vai habitar. O termômetro avança como uma bomba programada. O romance termina com uma passagem lírica na qual o narrador relembra as neves de sua juventude. “No inverno seguinte choveu. O frio foi substituído por uma temperatura amena e refrescante, mas apenas choveu. Aquele foi o ano em que perdemos o inverno.”

 Algumas distopias combinam o espectro da devastação climática com outros medos. The Wall, de John Lancaster, imagina um futuro no qual a costa britânica foi ocupada pelo muro (wall) do título, levantado tanto para conter marés destruidoras quanto “os Outros” – hordas de migrantes que chegam de barco em busca de refúgio. A crise da migração e o Brexit contribuem para uma sombria visão da insularidade paranoica. Em American War, Omar El Accad prevê que no fim do século 21 vastas porções dos Estados Unidos estarão cobertas de água. A Flórida desaparece. Uma segunda Guerra Civil estoura na disputa por combustíveis fósseis. 

Romancistas literários começaram a compreender quemudança climática não é só um assunto urgente, mas uma fonte de dramas e enredos. Muito em breve o tema pode sair do território da ficção científica para o domínio do velho realismo. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

O romance tem um problema de escala. Há séculos ele se concentra principalmente em temas do dia a dia. Não costuma se preocupar com cataclismas ou erupções tetônicas. Compare a Odisseia, de Homero, com o Ulisses, de James Joyce. Enquanto o épico fala de deuses, massacres e destino de nações, o romance celebra o íntimo e o cotidiano.

Viggo Mortensen e Kodi Smit-McPhee protagonizam 'The Road', baseado no romance pós-apocalíptico de Cormac McCarthy Foto: Dimension Filmes

O romance tem um problema com o tempo. Romances são uma das formas pelas quais uma cultura pensa os desafios que encara, mas frequentemente o formato, mais do que olhar para o futuro, vale-se do passado para iluminar o presente. É verdade que o romance vitoriano analisou a rapidez da industrialização da economia e as mudanças nas estruturas de classe da época. Ainda assim, muitos dos grandes livros do período, de Middlemarch a Um Conto de Duas Cidades, usaram contextos históricos. Hoje os romancistas buscam com frequência temas nas duas Guerras Mundiais, ou mesmo em eras mais remotas.

Essas tendências são uma desvantagem para o escritor na era da mudança climática - uma crise que é tanto atual como futura. O romancista indiano Amitav Ghosh reconheceu esse obstáculo em The Great Derangement, uma coletânea de ensaios publicada em 2016. Num dos ensaios, que aborda ostensivamente a catástrofe ambiental, Ghosh avalia o papel cultural do romance. A mudança climática, argumenta ele,parece um tema por demais amplo, incerto e abstrato para ser trabalhado em um formato que teme o desconhecido e o provisório – isto é, o futuro. Então, se o romance não se presta a confrontar os maiores perigos que a humanidade enfrenta, conseguirá ele manter sua relevância? 

Tempo é um fator que se apresenta em mais de uma forma. Particularmente desde o Modernismo, que viu Joyce e Virginia Woolf dissecarem as minúcias da vida, o tempo literário está circunscrito. Seja no dia de Mrs Dolaway, ou no longo arco do Bildungsroman, geralmente existe um limite nos horizontes temporais dos romances: a duração da vida de um personagem. O tempo do romance é rigidamente restrito, como se estivesse preso ao passado. Já o salto à frente necessário para se divisar a trajetória climática requer parâmetros mais elásticos. 

Nem toda ficção está sujeita a esses limites. Romances de ficção especulativa e des ficção científica - que Ghosh chama com esnobismo de “puxadinhos genéricos” – vêm tentando abordar abertamente a mudança climática. Os limites desses gêneros são difusos e contestados. O romance de J.G. Ballard The Drowned World (1962), um dos primeiros de ficção científica a falar do medo relacionado ao clima, foi reavaliado e reclassificado à medida que a reputação do autor evoluía. Mas o romance literário há muito se definiu como oposição a outros gêneros, e o futuro e seus riscos são abordados apenas por associação. Ou pelo menos tem sido assim até recentemente. 

À medida que a divisão entre ficção literária e outros tipos de ficção tem se tornando cada vez mais porosa, o establishment literário começou a reconhecer as possibilidades imaginativas da mudança climática. A Estrada, de Cormac McCarthy (2006), romance no qual pai e filho vagam por um mundo cinzento após um apocalipse não designado, foi um ponto inicial de mudança. O livro é uma espécie de ponte entre os medos de uma geração, que envolviam cogumelos nucleares e certeza de destruição mútua, e os da geração seguinte, como derretimento das calotas polares e incêndios devastadores.

McCarthy escreveu A Estrada após se tornar pai depois dos 50 anos. Contemplando com o filho uma paisagem texana, ele visualizou colinas calcinadas e negras – espetáculo que ele não veria, mas o filho sim. A história pode ser interpretada como uma mensagem de McCarthy para o filho; como uma metáfora da agonia universal de deixar descendentes entregues à própria sorte; ou, ainda, como uma dramatização do horror de uma Terra despojada de tudo pela ação do homem. O livro chama a atenção para o fato de que, em certo sentido, romances são sempre sobre o futuro, que é quando serão lidos. É também uma plataforma para escritores dispostos a se engajar em clima – romancistas como Ian McEwan e Margaret Atwood.

Agora, o gênero que McCarthy ajudou a galvanizar, também conhecido como “cli-fi”,está ganhando força. O impulso de contar histórias para gerações futuras é visto em dois exemplos recentes. Em The End We Start From, Megan Hunter fala em “uma inundação sem precedentes. Londres inabitável”. A narradora anônima vaga com sua filha bebê, Z, por essa Grã-Bretanha inundada em busca do pai da menina e de segurança. A narrativa se entrelaça com passagens mitológicas, fechando o círculo entre inundações destrutivas de um futuro “cli-fi” e as origens aquáticas de muitas religiões. 

De modo semelhante, Future Home of the Living God, de Louise Erdrich, é supostamente escrito por uma mulher para seu filho por nascer, preparando-o para o mundo que vai habitar. O termômetro avança como uma bomba programada. O romance termina com uma passagem lírica na qual o narrador relembra as neves de sua juventude. “No inverno seguinte choveu. O frio foi substituído por uma temperatura amena e refrescante, mas apenas choveu. Aquele foi o ano em que perdemos o inverno.”

 Algumas distopias combinam o espectro da devastação climática com outros medos. The Wall, de John Lancaster, imagina um futuro no qual a costa britânica foi ocupada pelo muro (wall) do título, levantado tanto para conter marés destruidoras quanto “os Outros” – hordas de migrantes que chegam de barco em busca de refúgio. A crise da migração e o Brexit contribuem para uma sombria visão da insularidade paranoica. Em American War, Omar El Accad prevê que no fim do século 21 vastas porções dos Estados Unidos estarão cobertas de água. A Flórida desaparece. Uma segunda Guerra Civil estoura na disputa por combustíveis fósseis. 

Romancistas literários começaram a compreender quemudança climática não é só um assunto urgente, mas uma fonte de dramas e enredos. Muito em breve o tema pode sair do território da ficção científica para o domínio do velho realismo. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ

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