Economista sérvio Branko Milankovic analisa capitalismo contemporâneo em livro


'Capitalismo sem Rivais' projeta possibilidades em um mundo no qual só há um sistema econômico

Por Guilherme Evelin
Atualização:

Dia sim, dia não, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, diz que o “vírus chinês” está causando um massacre mundial e brande ameaças à Organização Mundial de Saúde (OMS), que ele vê sob a tutela da China. Aproveitando-se do vácuo aberto pelos Estados Unidos em meio à maior crise de gerações, a China de Xi Jinping abandona sua postura tradicionalmente retraída e ocupa espaços na cena internacional. A pandemia do novo coronavírus acelerou uma tendência que já estava no horizonte com a ascensão da China: uma disputa entre chineses e norte-americanos pela condição de potência mundial hegemônica. Os especialistas em Relações Internacionais falam em nova Guerra Fria.

Estados Unidos e China disputam influência global em novo cenário Foto: Reuters

Antes da pandemia, em um livro lançado no ano passado no exterior e que acaba de sair no Brasil, Capitalismo sem Rivais – O Futuro do Sistema que Domina o Mundo (Editora Todavia, 376 páginas, R$ 84,90, em pré-venda pela internet), o economista Branko Milanovic retratou a disputa entre Estados Unidos e China, não apenas como geopolítica, mas como um choque de capitalismos. Da colisão dessas duas placas tectônicas em movimento, argumenta o economista, o futuro da economia global emergirá. 

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Cisma

Milanovic parte da constatação de que o capitalismo venceu. Tornou-se o único modo de produção no mundo, ao contrário de outros períodos da humanidade, em que diferentes sistemas conviviam. Mesmo na China oficialmente ”comunista”,mais de 80% da produção é controlada pelo setor privado, o Estado não impõe decisões a respeito de preços e a maior parte dos trabalhadores vende sua força de trabalho em troca de salários. Além disso, os valores do capitalismo foram de tal forma internalizados pelas pessoas que até seus momentos de tempo livre viraram commodities e passaram a ser comercializados. Tal como no grande cisma do cristianismo, que rachou entre as igrejas católicas de Roma e de Constantinopla, ou do islamismo, dividido entre sunitas e xiitas, o capitalismo tem hoje, porém, duas vertentes. Uma é o “capitalismo político”, cujo protótipo é a China, mas que pode ser encontrado também no Vietnã, na Rússia, no Azerbaijão, em Angola e na Argélia. No “capitalismo politico”, não há democracia. O autoritarismo das elites políticas é legitimado pela geração de crescimento econômico e elevação dos padrões de vida das populações. A outra vertente é o “capitalismo meritocrático liberal”, presente no Ocidente, cujo modelo são os Estados Unidos. Na classificação estabelecida por Milanovic, ele é sucedâneo do “capitalismo clássico” e do “capitalismo social-democrata”, predominantes nos séculos 19 e 20. No “capitalismo meritocrático liberal”, há democracia e o mérito, em tese, é a chave da ascensão às elites, que são submetidas ao Estado de Direito. Como observa Milanovic, o extraordinário sucesso econômico da China nas últimas décadas coloca em xeque, porém, o argumento ocidental de que o capitalismo necessita de instituições políticas liberais para se desenvolver. 

Desigualdade

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Nascido em Belgrado, capital da Sérvia, nos tempos da extinta Iugoslávia do Marechal Tito, Milanovic, 66 anos, radicou-se nos Estados Unidos, onde trabalhou como alto funcionário do Banco Mundial e atualmente dá aulas como professor da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny). Nos anos 1990, Milanovic notabilizou-se por ser o primeiro economista a medir, com razoável grau de precisão, a desigualdade global. Em 2016, ele publicou um livro considerado seminal, Desigualdade Global: Uma Nova Abordagem para a Era da Globalização. A obra ajudou, junto com o livro do francês Thomas Piketty, O Capital no Século 21 (Editora Intrínseca), a deslocar para o centro das discussões o tema da desigualdade, antes relegado a segundo plano pelos economistas liberais mais ortodoxos.  No livro de 2016, Milanovic demonstrava como a globalização e a liberalização mundial dos mercados financeiros geraram, dos anos 1980 em diante, novas dinâmicas que aumentaram a desigualdade interna em quase todos os países. Nos Estados Unidos, o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade de renda numa escala de 0 a 1 e que denota maior desigualdade quanto mais próxima de 1, subiu de 0,35, em 1979, para 0,45. Na China, o coeficiente de Gini saltou de 0,30, em 1985, para cerca de 0,50 – próximo aos níveis encontrados na América Latina. A despeito de a globalização ter tirado da pobreza uma massa de trabalhadores, principalmente na Ásia, os vencedores dos últimos 40 anos foram os super-ricos, principalmente os executivos de grandes corporações e os homens das finanças. As classes médias dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina estagnaram ou declinaram, com a desindustralização de suas economias.

Lacuna

Milanovic diz que escreveu Capitalismo sem Rivais com a ambição de suprir uma lacuna da historiografia: explicar qual foi o papel histórico dos regimes comunistas, já que eles não levaram as sociedades ao socialismo imaginado por Marx. Numa tese instigante, Milanovic sustenta que, em países como a China e o Vietnã, os partidos comunistas, associados a fortes movimentos nacionalistas, levaram a cabo, no poder, uma série de mudanças que liquidaram resquícios de antigas estruturas semifeudais e permitiram a transição para o capitalismo. Desempenharam assim um papel semelhante às classes burguesas no Ocidente durante o século 19. Capitalismo sem Rivais pode ser lido também como uma sequência do livro anterior de Milanovic sobre o crescimento da desigualdade. Na nova obra, ele explora outros desdobramentos da globalização e as falhas estruturais de cada modelo de capitalismo.  As fragilidades do “capitalismo político” são a necessidade de provar constantemente as vantagens e a maior eficácia de seu modelo para justificar o autoritarismo; a dificuldade de fazer correções de rota em políticas equivocadas; a aplicação arbitrária das leis, quase sempre em benefício das elites; e a corrupção disseminada, pela falta de Estado de Direito. No “capitalismo liberal meritocrático”, segundo Milanovic, os problemas estão ligados à criação de uma espécie de uma classe superior cada vez mais isolada do restante da sociedade.

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Mulheres

Por conta da herança da fase anterior social-democrata, as elites, no “capitalismo liberal democrático”, se tornaram mais diversificadas. Passaram a ser compostas por mulheres e por profissionais altamente educados das mais diferentes áreas que trabalham e cuja renda alta é resultado desse trabalho. Mas, por trás do véu do mérito, diz Milanovic, associadas à diminuição da mobilidade social, estabeleceram-se dinâmicas, como a maior taxa de casamentos entre pessoas do mesmo status, que criaram uma autorreprodução dessa elite em modo contínuo. Ao mesmo tempo, os ricos passaram a investir pesadamente em sua prole e em estabelecer controle político. Ao investir na educação de seus filhos em escolas cada vez mais seletivas, eles permitem que suas futuras gerações mantenham a alta renda e o status associado ao conhecimento. Com o investimento em influência na política, por meio, por exemplo, de financiamento de campanhas eleitorais, “compram” políticas econômicas que favorecem menos regulações, menor tributação da renda e a transmissão de capital entre gerações. O risco é a criação, diz o economista, de uma elite dirigente apartada da sociedade e que trabalha exclusivamente para atender seus únicos interesses. 

Plutocracia

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“A alta desigualdade tende a minar a democracia, porque os ricos tendem a querer preservar seu poder. O risco da apropriação do poder político por uma plutocracia é migrarmos de um sistema em que uma pessoa representa um voto, para um sistema em que uma pessoa representa um dólar ou um real”, disse Milanovic, em conversa com o Estadão, no começo de março. Um possível cenário futuro que pode resultar do choque de capitalismos, segundo Milanovic, é a convergência do modelo liberal meritocrático para algo mais próximo do capitalismo político, com uma elite econômica insularizada exercendo poder livre de restrições. A esse cenário temerário, Milanovic contrapõe a defesa de um “capitalismo do povo”, uma espécie de versão atualizada do capitalismo social-democrata, menos focado em redistribuição de renda, e mais na democratização da educação e do acesso a bens financeiros.

Pandemia

Como a pandemia afetará esse conflito entre capitalismos? A China está vencendo a nova Guerra Fria, como perguntou, numa capa de 18 de abril, a revista The Economist? “É difícil prever. Estamos ainda no escuro”, disse Milanovic, ao falar das incertezas que cercam os rumos da pandemia. Mas ele avalia, que se confirmada a tendência de que os países asiáticos vão se recuperar mais rapidamente, enquanto o Ocidente se debate com um segundo dramático choque em 15 anos após a crise de 2008, o deslocamento do centro gravitacional da economia global para a Ásia se acentuará, assim como a disputa entre os dois modelos, com a crescente assertividade da China em exportar sua influência. Ele acredita também que crises tendem a centralizar o poder e será mais difícil tirá-lo das mãos de quem, como no caso dos dirigentes chineses proclamam, com alguma credibilidade, que conseguiram evitar o pior. Não são bons presságios para quem preza as liberdades e rejeita os autoritarismos. 

Dia sim, dia não, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, diz que o “vírus chinês” está causando um massacre mundial e brande ameaças à Organização Mundial de Saúde (OMS), que ele vê sob a tutela da China. Aproveitando-se do vácuo aberto pelos Estados Unidos em meio à maior crise de gerações, a China de Xi Jinping abandona sua postura tradicionalmente retraída e ocupa espaços na cena internacional. A pandemia do novo coronavírus acelerou uma tendência que já estava no horizonte com a ascensão da China: uma disputa entre chineses e norte-americanos pela condição de potência mundial hegemônica. Os especialistas em Relações Internacionais falam em nova Guerra Fria.

Estados Unidos e China disputam influência global em novo cenário Foto: Reuters

Antes da pandemia, em um livro lançado no ano passado no exterior e que acaba de sair no Brasil, Capitalismo sem Rivais – O Futuro do Sistema que Domina o Mundo (Editora Todavia, 376 páginas, R$ 84,90, em pré-venda pela internet), o economista Branko Milanovic retratou a disputa entre Estados Unidos e China, não apenas como geopolítica, mas como um choque de capitalismos. Da colisão dessas duas placas tectônicas em movimento, argumenta o economista, o futuro da economia global emergirá. 

Cisma

Milanovic parte da constatação de que o capitalismo venceu. Tornou-se o único modo de produção no mundo, ao contrário de outros períodos da humanidade, em que diferentes sistemas conviviam. Mesmo na China oficialmente ”comunista”,mais de 80% da produção é controlada pelo setor privado, o Estado não impõe decisões a respeito de preços e a maior parte dos trabalhadores vende sua força de trabalho em troca de salários. Além disso, os valores do capitalismo foram de tal forma internalizados pelas pessoas que até seus momentos de tempo livre viraram commodities e passaram a ser comercializados. Tal como no grande cisma do cristianismo, que rachou entre as igrejas católicas de Roma e de Constantinopla, ou do islamismo, dividido entre sunitas e xiitas, o capitalismo tem hoje, porém, duas vertentes. Uma é o “capitalismo político”, cujo protótipo é a China, mas que pode ser encontrado também no Vietnã, na Rússia, no Azerbaijão, em Angola e na Argélia. No “capitalismo politico”, não há democracia. O autoritarismo das elites políticas é legitimado pela geração de crescimento econômico e elevação dos padrões de vida das populações. A outra vertente é o “capitalismo meritocrático liberal”, presente no Ocidente, cujo modelo são os Estados Unidos. Na classificação estabelecida por Milanovic, ele é sucedâneo do “capitalismo clássico” e do “capitalismo social-democrata”, predominantes nos séculos 19 e 20. No “capitalismo meritocrático liberal”, há democracia e o mérito, em tese, é a chave da ascensão às elites, que são submetidas ao Estado de Direito. Como observa Milanovic, o extraordinário sucesso econômico da China nas últimas décadas coloca em xeque, porém, o argumento ocidental de que o capitalismo necessita de instituições políticas liberais para se desenvolver. 

Desigualdade

Nascido em Belgrado, capital da Sérvia, nos tempos da extinta Iugoslávia do Marechal Tito, Milanovic, 66 anos, radicou-se nos Estados Unidos, onde trabalhou como alto funcionário do Banco Mundial e atualmente dá aulas como professor da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny). Nos anos 1990, Milanovic notabilizou-se por ser o primeiro economista a medir, com razoável grau de precisão, a desigualdade global. Em 2016, ele publicou um livro considerado seminal, Desigualdade Global: Uma Nova Abordagem para a Era da Globalização. A obra ajudou, junto com o livro do francês Thomas Piketty, O Capital no Século 21 (Editora Intrínseca), a deslocar para o centro das discussões o tema da desigualdade, antes relegado a segundo plano pelos economistas liberais mais ortodoxos.  No livro de 2016, Milanovic demonstrava como a globalização e a liberalização mundial dos mercados financeiros geraram, dos anos 1980 em diante, novas dinâmicas que aumentaram a desigualdade interna em quase todos os países. Nos Estados Unidos, o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade de renda numa escala de 0 a 1 e que denota maior desigualdade quanto mais próxima de 1, subiu de 0,35, em 1979, para 0,45. Na China, o coeficiente de Gini saltou de 0,30, em 1985, para cerca de 0,50 – próximo aos níveis encontrados na América Latina. A despeito de a globalização ter tirado da pobreza uma massa de trabalhadores, principalmente na Ásia, os vencedores dos últimos 40 anos foram os super-ricos, principalmente os executivos de grandes corporações e os homens das finanças. As classes médias dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina estagnaram ou declinaram, com a desindustralização de suas economias.

Lacuna

Milanovic diz que escreveu Capitalismo sem Rivais com a ambição de suprir uma lacuna da historiografia: explicar qual foi o papel histórico dos regimes comunistas, já que eles não levaram as sociedades ao socialismo imaginado por Marx. Numa tese instigante, Milanovic sustenta que, em países como a China e o Vietnã, os partidos comunistas, associados a fortes movimentos nacionalistas, levaram a cabo, no poder, uma série de mudanças que liquidaram resquícios de antigas estruturas semifeudais e permitiram a transição para o capitalismo. Desempenharam assim um papel semelhante às classes burguesas no Ocidente durante o século 19. Capitalismo sem Rivais pode ser lido também como uma sequência do livro anterior de Milanovic sobre o crescimento da desigualdade. Na nova obra, ele explora outros desdobramentos da globalização e as falhas estruturais de cada modelo de capitalismo.  As fragilidades do “capitalismo político” são a necessidade de provar constantemente as vantagens e a maior eficácia de seu modelo para justificar o autoritarismo; a dificuldade de fazer correções de rota em políticas equivocadas; a aplicação arbitrária das leis, quase sempre em benefício das elites; e a corrupção disseminada, pela falta de Estado de Direito. No “capitalismo liberal meritocrático”, segundo Milanovic, os problemas estão ligados à criação de uma espécie de uma classe superior cada vez mais isolada do restante da sociedade.

Mulheres

Por conta da herança da fase anterior social-democrata, as elites, no “capitalismo liberal democrático”, se tornaram mais diversificadas. Passaram a ser compostas por mulheres e por profissionais altamente educados das mais diferentes áreas que trabalham e cuja renda alta é resultado desse trabalho. Mas, por trás do véu do mérito, diz Milanovic, associadas à diminuição da mobilidade social, estabeleceram-se dinâmicas, como a maior taxa de casamentos entre pessoas do mesmo status, que criaram uma autorreprodução dessa elite em modo contínuo. Ao mesmo tempo, os ricos passaram a investir pesadamente em sua prole e em estabelecer controle político. Ao investir na educação de seus filhos em escolas cada vez mais seletivas, eles permitem que suas futuras gerações mantenham a alta renda e o status associado ao conhecimento. Com o investimento em influência na política, por meio, por exemplo, de financiamento de campanhas eleitorais, “compram” políticas econômicas que favorecem menos regulações, menor tributação da renda e a transmissão de capital entre gerações. O risco é a criação, diz o economista, de uma elite dirigente apartada da sociedade e que trabalha exclusivamente para atender seus únicos interesses. 

Plutocracia

“A alta desigualdade tende a minar a democracia, porque os ricos tendem a querer preservar seu poder. O risco da apropriação do poder político por uma plutocracia é migrarmos de um sistema em que uma pessoa representa um voto, para um sistema em que uma pessoa representa um dólar ou um real”, disse Milanovic, em conversa com o Estadão, no começo de março. Um possível cenário futuro que pode resultar do choque de capitalismos, segundo Milanovic, é a convergência do modelo liberal meritocrático para algo mais próximo do capitalismo político, com uma elite econômica insularizada exercendo poder livre de restrições. A esse cenário temerário, Milanovic contrapõe a defesa de um “capitalismo do povo”, uma espécie de versão atualizada do capitalismo social-democrata, menos focado em redistribuição de renda, e mais na democratização da educação e do acesso a bens financeiros.

Pandemia

Como a pandemia afetará esse conflito entre capitalismos? A China está vencendo a nova Guerra Fria, como perguntou, numa capa de 18 de abril, a revista The Economist? “É difícil prever. Estamos ainda no escuro”, disse Milanovic, ao falar das incertezas que cercam os rumos da pandemia. Mas ele avalia, que se confirmada a tendência de que os países asiáticos vão se recuperar mais rapidamente, enquanto o Ocidente se debate com um segundo dramático choque em 15 anos após a crise de 2008, o deslocamento do centro gravitacional da economia global para a Ásia se acentuará, assim como a disputa entre os dois modelos, com a crescente assertividade da China em exportar sua influência. Ele acredita também que crises tendem a centralizar o poder e será mais difícil tirá-lo das mãos de quem, como no caso dos dirigentes chineses proclamam, com alguma credibilidade, que conseguiram evitar o pior. Não são bons presságios para quem preza as liberdades e rejeita os autoritarismos. 

Dia sim, dia não, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, diz que o “vírus chinês” está causando um massacre mundial e brande ameaças à Organização Mundial de Saúde (OMS), que ele vê sob a tutela da China. Aproveitando-se do vácuo aberto pelos Estados Unidos em meio à maior crise de gerações, a China de Xi Jinping abandona sua postura tradicionalmente retraída e ocupa espaços na cena internacional. A pandemia do novo coronavírus acelerou uma tendência que já estava no horizonte com a ascensão da China: uma disputa entre chineses e norte-americanos pela condição de potência mundial hegemônica. Os especialistas em Relações Internacionais falam em nova Guerra Fria.

Estados Unidos e China disputam influência global em novo cenário Foto: Reuters

Antes da pandemia, em um livro lançado no ano passado no exterior e que acaba de sair no Brasil, Capitalismo sem Rivais – O Futuro do Sistema que Domina o Mundo (Editora Todavia, 376 páginas, R$ 84,90, em pré-venda pela internet), o economista Branko Milanovic retratou a disputa entre Estados Unidos e China, não apenas como geopolítica, mas como um choque de capitalismos. Da colisão dessas duas placas tectônicas em movimento, argumenta o economista, o futuro da economia global emergirá. 

Cisma

Milanovic parte da constatação de que o capitalismo venceu. Tornou-se o único modo de produção no mundo, ao contrário de outros períodos da humanidade, em que diferentes sistemas conviviam. Mesmo na China oficialmente ”comunista”,mais de 80% da produção é controlada pelo setor privado, o Estado não impõe decisões a respeito de preços e a maior parte dos trabalhadores vende sua força de trabalho em troca de salários. Além disso, os valores do capitalismo foram de tal forma internalizados pelas pessoas que até seus momentos de tempo livre viraram commodities e passaram a ser comercializados. Tal como no grande cisma do cristianismo, que rachou entre as igrejas católicas de Roma e de Constantinopla, ou do islamismo, dividido entre sunitas e xiitas, o capitalismo tem hoje, porém, duas vertentes. Uma é o “capitalismo político”, cujo protótipo é a China, mas que pode ser encontrado também no Vietnã, na Rússia, no Azerbaijão, em Angola e na Argélia. No “capitalismo politico”, não há democracia. O autoritarismo das elites políticas é legitimado pela geração de crescimento econômico e elevação dos padrões de vida das populações. A outra vertente é o “capitalismo meritocrático liberal”, presente no Ocidente, cujo modelo são os Estados Unidos. Na classificação estabelecida por Milanovic, ele é sucedâneo do “capitalismo clássico” e do “capitalismo social-democrata”, predominantes nos séculos 19 e 20. No “capitalismo meritocrático liberal”, há democracia e o mérito, em tese, é a chave da ascensão às elites, que são submetidas ao Estado de Direito. Como observa Milanovic, o extraordinário sucesso econômico da China nas últimas décadas coloca em xeque, porém, o argumento ocidental de que o capitalismo necessita de instituições políticas liberais para se desenvolver. 

Desigualdade

Nascido em Belgrado, capital da Sérvia, nos tempos da extinta Iugoslávia do Marechal Tito, Milanovic, 66 anos, radicou-se nos Estados Unidos, onde trabalhou como alto funcionário do Banco Mundial e atualmente dá aulas como professor da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny). Nos anos 1990, Milanovic notabilizou-se por ser o primeiro economista a medir, com razoável grau de precisão, a desigualdade global. Em 2016, ele publicou um livro considerado seminal, Desigualdade Global: Uma Nova Abordagem para a Era da Globalização. A obra ajudou, junto com o livro do francês Thomas Piketty, O Capital no Século 21 (Editora Intrínseca), a deslocar para o centro das discussões o tema da desigualdade, antes relegado a segundo plano pelos economistas liberais mais ortodoxos.  No livro de 2016, Milanovic demonstrava como a globalização e a liberalização mundial dos mercados financeiros geraram, dos anos 1980 em diante, novas dinâmicas que aumentaram a desigualdade interna em quase todos os países. Nos Estados Unidos, o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade de renda numa escala de 0 a 1 e que denota maior desigualdade quanto mais próxima de 1, subiu de 0,35, em 1979, para 0,45. Na China, o coeficiente de Gini saltou de 0,30, em 1985, para cerca de 0,50 – próximo aos níveis encontrados na América Latina. A despeito de a globalização ter tirado da pobreza uma massa de trabalhadores, principalmente na Ásia, os vencedores dos últimos 40 anos foram os super-ricos, principalmente os executivos de grandes corporações e os homens das finanças. As classes médias dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina estagnaram ou declinaram, com a desindustralização de suas economias.

Lacuna

Milanovic diz que escreveu Capitalismo sem Rivais com a ambição de suprir uma lacuna da historiografia: explicar qual foi o papel histórico dos regimes comunistas, já que eles não levaram as sociedades ao socialismo imaginado por Marx. Numa tese instigante, Milanovic sustenta que, em países como a China e o Vietnã, os partidos comunistas, associados a fortes movimentos nacionalistas, levaram a cabo, no poder, uma série de mudanças que liquidaram resquícios de antigas estruturas semifeudais e permitiram a transição para o capitalismo. Desempenharam assim um papel semelhante às classes burguesas no Ocidente durante o século 19. Capitalismo sem Rivais pode ser lido também como uma sequência do livro anterior de Milanovic sobre o crescimento da desigualdade. Na nova obra, ele explora outros desdobramentos da globalização e as falhas estruturais de cada modelo de capitalismo.  As fragilidades do “capitalismo político” são a necessidade de provar constantemente as vantagens e a maior eficácia de seu modelo para justificar o autoritarismo; a dificuldade de fazer correções de rota em políticas equivocadas; a aplicação arbitrária das leis, quase sempre em benefício das elites; e a corrupção disseminada, pela falta de Estado de Direito. No “capitalismo liberal meritocrático”, segundo Milanovic, os problemas estão ligados à criação de uma espécie de uma classe superior cada vez mais isolada do restante da sociedade.

Mulheres

Por conta da herança da fase anterior social-democrata, as elites, no “capitalismo liberal democrático”, se tornaram mais diversificadas. Passaram a ser compostas por mulheres e por profissionais altamente educados das mais diferentes áreas que trabalham e cuja renda alta é resultado desse trabalho. Mas, por trás do véu do mérito, diz Milanovic, associadas à diminuição da mobilidade social, estabeleceram-se dinâmicas, como a maior taxa de casamentos entre pessoas do mesmo status, que criaram uma autorreprodução dessa elite em modo contínuo. Ao mesmo tempo, os ricos passaram a investir pesadamente em sua prole e em estabelecer controle político. Ao investir na educação de seus filhos em escolas cada vez mais seletivas, eles permitem que suas futuras gerações mantenham a alta renda e o status associado ao conhecimento. Com o investimento em influência na política, por meio, por exemplo, de financiamento de campanhas eleitorais, “compram” políticas econômicas que favorecem menos regulações, menor tributação da renda e a transmissão de capital entre gerações. O risco é a criação, diz o economista, de uma elite dirigente apartada da sociedade e que trabalha exclusivamente para atender seus únicos interesses. 

Plutocracia

“A alta desigualdade tende a minar a democracia, porque os ricos tendem a querer preservar seu poder. O risco da apropriação do poder político por uma plutocracia é migrarmos de um sistema em que uma pessoa representa um voto, para um sistema em que uma pessoa representa um dólar ou um real”, disse Milanovic, em conversa com o Estadão, no começo de março. Um possível cenário futuro que pode resultar do choque de capitalismos, segundo Milanovic, é a convergência do modelo liberal meritocrático para algo mais próximo do capitalismo político, com uma elite econômica insularizada exercendo poder livre de restrições. A esse cenário temerário, Milanovic contrapõe a defesa de um “capitalismo do povo”, uma espécie de versão atualizada do capitalismo social-democrata, menos focado em redistribuição de renda, e mais na democratização da educação e do acesso a bens financeiros.

Pandemia

Como a pandemia afetará esse conflito entre capitalismos? A China está vencendo a nova Guerra Fria, como perguntou, numa capa de 18 de abril, a revista The Economist? “É difícil prever. Estamos ainda no escuro”, disse Milanovic, ao falar das incertezas que cercam os rumos da pandemia. Mas ele avalia, que se confirmada a tendência de que os países asiáticos vão se recuperar mais rapidamente, enquanto o Ocidente se debate com um segundo dramático choque em 15 anos após a crise de 2008, o deslocamento do centro gravitacional da economia global para a Ásia se acentuará, assim como a disputa entre os dois modelos, com a crescente assertividade da China em exportar sua influência. Ele acredita também que crises tendem a centralizar o poder e será mais difícil tirá-lo das mãos de quem, como no caso dos dirigentes chineses proclamam, com alguma credibilidade, que conseguiram evitar o pior. Não são bons presságios para quem preza as liberdades e rejeita os autoritarismos. 

Dia sim, dia não, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, diz que o “vírus chinês” está causando um massacre mundial e brande ameaças à Organização Mundial de Saúde (OMS), que ele vê sob a tutela da China. Aproveitando-se do vácuo aberto pelos Estados Unidos em meio à maior crise de gerações, a China de Xi Jinping abandona sua postura tradicionalmente retraída e ocupa espaços na cena internacional. A pandemia do novo coronavírus acelerou uma tendência que já estava no horizonte com a ascensão da China: uma disputa entre chineses e norte-americanos pela condição de potência mundial hegemônica. Os especialistas em Relações Internacionais falam em nova Guerra Fria.

Estados Unidos e China disputam influência global em novo cenário Foto: Reuters

Antes da pandemia, em um livro lançado no ano passado no exterior e que acaba de sair no Brasil, Capitalismo sem Rivais – O Futuro do Sistema que Domina o Mundo (Editora Todavia, 376 páginas, R$ 84,90, em pré-venda pela internet), o economista Branko Milanovic retratou a disputa entre Estados Unidos e China, não apenas como geopolítica, mas como um choque de capitalismos. Da colisão dessas duas placas tectônicas em movimento, argumenta o economista, o futuro da economia global emergirá. 

Cisma

Milanovic parte da constatação de que o capitalismo venceu. Tornou-se o único modo de produção no mundo, ao contrário de outros períodos da humanidade, em que diferentes sistemas conviviam. Mesmo na China oficialmente ”comunista”,mais de 80% da produção é controlada pelo setor privado, o Estado não impõe decisões a respeito de preços e a maior parte dos trabalhadores vende sua força de trabalho em troca de salários. Além disso, os valores do capitalismo foram de tal forma internalizados pelas pessoas que até seus momentos de tempo livre viraram commodities e passaram a ser comercializados. Tal como no grande cisma do cristianismo, que rachou entre as igrejas católicas de Roma e de Constantinopla, ou do islamismo, dividido entre sunitas e xiitas, o capitalismo tem hoje, porém, duas vertentes. Uma é o “capitalismo político”, cujo protótipo é a China, mas que pode ser encontrado também no Vietnã, na Rússia, no Azerbaijão, em Angola e na Argélia. No “capitalismo politico”, não há democracia. O autoritarismo das elites políticas é legitimado pela geração de crescimento econômico e elevação dos padrões de vida das populações. A outra vertente é o “capitalismo meritocrático liberal”, presente no Ocidente, cujo modelo são os Estados Unidos. Na classificação estabelecida por Milanovic, ele é sucedâneo do “capitalismo clássico” e do “capitalismo social-democrata”, predominantes nos séculos 19 e 20. No “capitalismo meritocrático liberal”, há democracia e o mérito, em tese, é a chave da ascensão às elites, que são submetidas ao Estado de Direito. Como observa Milanovic, o extraordinário sucesso econômico da China nas últimas décadas coloca em xeque, porém, o argumento ocidental de que o capitalismo necessita de instituições políticas liberais para se desenvolver. 

Desigualdade

Nascido em Belgrado, capital da Sérvia, nos tempos da extinta Iugoslávia do Marechal Tito, Milanovic, 66 anos, radicou-se nos Estados Unidos, onde trabalhou como alto funcionário do Banco Mundial e atualmente dá aulas como professor da Universidade da Cidade de Nova York (Cuny). Nos anos 1990, Milanovic notabilizou-se por ser o primeiro economista a medir, com razoável grau de precisão, a desigualdade global. Em 2016, ele publicou um livro considerado seminal, Desigualdade Global: Uma Nova Abordagem para a Era da Globalização. A obra ajudou, junto com o livro do francês Thomas Piketty, O Capital no Século 21 (Editora Intrínseca), a deslocar para o centro das discussões o tema da desigualdade, antes relegado a segundo plano pelos economistas liberais mais ortodoxos.  No livro de 2016, Milanovic demonstrava como a globalização e a liberalização mundial dos mercados financeiros geraram, dos anos 1980 em diante, novas dinâmicas que aumentaram a desigualdade interna em quase todos os países. Nos Estados Unidos, o coeficiente de Gini, que mede a desigualdade de renda numa escala de 0 a 1 e que denota maior desigualdade quanto mais próxima de 1, subiu de 0,35, em 1979, para 0,45. Na China, o coeficiente de Gini saltou de 0,30, em 1985, para cerca de 0,50 – próximo aos níveis encontrados na América Latina. A despeito de a globalização ter tirado da pobreza uma massa de trabalhadores, principalmente na Ásia, os vencedores dos últimos 40 anos foram os super-ricos, principalmente os executivos de grandes corporações e os homens das finanças. As classes médias dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina estagnaram ou declinaram, com a desindustralização de suas economias.

Lacuna

Milanovic diz que escreveu Capitalismo sem Rivais com a ambição de suprir uma lacuna da historiografia: explicar qual foi o papel histórico dos regimes comunistas, já que eles não levaram as sociedades ao socialismo imaginado por Marx. Numa tese instigante, Milanovic sustenta que, em países como a China e o Vietnã, os partidos comunistas, associados a fortes movimentos nacionalistas, levaram a cabo, no poder, uma série de mudanças que liquidaram resquícios de antigas estruturas semifeudais e permitiram a transição para o capitalismo. Desempenharam assim um papel semelhante às classes burguesas no Ocidente durante o século 19. Capitalismo sem Rivais pode ser lido também como uma sequência do livro anterior de Milanovic sobre o crescimento da desigualdade. Na nova obra, ele explora outros desdobramentos da globalização e as falhas estruturais de cada modelo de capitalismo.  As fragilidades do “capitalismo político” são a necessidade de provar constantemente as vantagens e a maior eficácia de seu modelo para justificar o autoritarismo; a dificuldade de fazer correções de rota em políticas equivocadas; a aplicação arbitrária das leis, quase sempre em benefício das elites; e a corrupção disseminada, pela falta de Estado de Direito. No “capitalismo liberal meritocrático”, segundo Milanovic, os problemas estão ligados à criação de uma espécie de uma classe superior cada vez mais isolada do restante da sociedade.

Mulheres

Por conta da herança da fase anterior social-democrata, as elites, no “capitalismo liberal democrático”, se tornaram mais diversificadas. Passaram a ser compostas por mulheres e por profissionais altamente educados das mais diferentes áreas que trabalham e cuja renda alta é resultado desse trabalho. Mas, por trás do véu do mérito, diz Milanovic, associadas à diminuição da mobilidade social, estabeleceram-se dinâmicas, como a maior taxa de casamentos entre pessoas do mesmo status, que criaram uma autorreprodução dessa elite em modo contínuo. Ao mesmo tempo, os ricos passaram a investir pesadamente em sua prole e em estabelecer controle político. Ao investir na educação de seus filhos em escolas cada vez mais seletivas, eles permitem que suas futuras gerações mantenham a alta renda e o status associado ao conhecimento. Com o investimento em influência na política, por meio, por exemplo, de financiamento de campanhas eleitorais, “compram” políticas econômicas que favorecem menos regulações, menor tributação da renda e a transmissão de capital entre gerações. O risco é a criação, diz o economista, de uma elite dirigente apartada da sociedade e que trabalha exclusivamente para atender seus únicos interesses. 

Plutocracia

“A alta desigualdade tende a minar a democracia, porque os ricos tendem a querer preservar seu poder. O risco da apropriação do poder político por uma plutocracia é migrarmos de um sistema em que uma pessoa representa um voto, para um sistema em que uma pessoa representa um dólar ou um real”, disse Milanovic, em conversa com o Estadão, no começo de março. Um possível cenário futuro que pode resultar do choque de capitalismos, segundo Milanovic, é a convergência do modelo liberal meritocrático para algo mais próximo do capitalismo político, com uma elite econômica insularizada exercendo poder livre de restrições. A esse cenário temerário, Milanovic contrapõe a defesa de um “capitalismo do povo”, uma espécie de versão atualizada do capitalismo social-democrata, menos focado em redistribuição de renda, e mais na democratização da educação e do acesso a bens financeiros.

Pandemia

Como a pandemia afetará esse conflito entre capitalismos? A China está vencendo a nova Guerra Fria, como perguntou, numa capa de 18 de abril, a revista The Economist? “É difícil prever. Estamos ainda no escuro”, disse Milanovic, ao falar das incertezas que cercam os rumos da pandemia. Mas ele avalia, que se confirmada a tendência de que os países asiáticos vão se recuperar mais rapidamente, enquanto o Ocidente se debate com um segundo dramático choque em 15 anos após a crise de 2008, o deslocamento do centro gravitacional da economia global para a Ásia se acentuará, assim como a disputa entre os dois modelos, com a crescente assertividade da China em exportar sua influência. Ele acredita também que crises tendem a centralizar o poder e será mais difícil tirá-lo das mãos de quem, como no caso dos dirigentes chineses proclamam, com alguma credibilidade, que conseguiram evitar o pior. Não são bons presságios para quem preza as liberdades e rejeita os autoritarismos. 

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