Nem São 9h de sexta-feira e João Varella está com o tempo apertado. O gaúcho de 32 anos toma seu café da manhã, acompanhado do fiel exemplar (em papel) do Estadão, e depois desta entrevista ainda tem de dividir com a esposa-sócia, a argentina Cecília Arbolave, a recepção a um editor francês de quadrinhos, a aprovação das várias capas do seu mais recente lançamento, Fachadas, de Rafael Sica, a agenda da banca que terá na Feira Plana. No fim da tarde se reúne com o quadrinista Rafael Coutinho e o músico Lucas Santtana para o projeto Modo Avião; à noite, finaliza o expediente com uma aula na Escola Miolo(s).
Apenas um dia como outros na vida de um editor independente – muito diferente da vida estável de um editor tradicional ou de um livreiro, um editor independente tem de se preocupar com todas as pontas do negócio, além, claro, de ser um apaixonado por livros. João Varella está nessa vida há 4 anos, depois de abandonar o jornalismo. “A Lote 42 cresce dois dígitos por ano”, afirma. A editora já publicou 27 títulos, cada um com uma página no site da editora, responsável por alavancar as vendas – o restante vai para livrarias de nicho como a Blooks. Sem falar, é claro, da Banca Tatuí, uma banca de jornal reformada para virar banca de livros – ali há cerca de produtos gráficos de 150 outros minieditores – e inusitado palco para shows que se transformou em um dos epicentros da nova cena cultural de Vila Buarque, Santa Cecília, Barra Funda, Higienópolis e arredores.
Nova cena cultural? Novo mercado editorial? Números crescentes? Empreendedorismo com paixão pela cultura? Em plena pior depressão econômica desde os anos 1940, o mundo editorial indie não para de despejar números, títulos, ideias, autores e artistas em um público interessado em novidades. É o outro lado do copo meio vazio em que se tornou o mundo editorial brasileiro, que assiste a uma queda de 10% (uma grandeza de quase R$ 1 bilhão). “O que acontece com as megalivrarias é parte da antecipada falência da estandardização em massa e falta de ousadia do mercado editorial tradicional”, detona Rachel Gontijo, da Bolha Editora e da Feira Pãodeforma.
Sua quase xará, Raquel Menezes, presidente da Libre, liga que une pequenos e médios editores no evento Primavera dos Livros, emenda: “O mercado de livros que depende do circuito de livrarias assiste a uma crise que mostra que a penetração nessas megaestruturas é tão burocrática que elas se fagocitam: não se sustentam sozinhas”. Assim, as feiras independentes demonstram que a criatividade e versatilidade dos artistas gráficos envolvem também a autopublicação e sugerem uma nova forma de se relacionar com o objeto livro para além de ser depositário de conhecimento, saber, entretenimento. São bem-sucedidas: a última Primavera dos Livros levou 300 mil pessoas, enquanto que a Feira Plana teve 12 mil visitas diárias. “O sucesso das feiras independentes está na contramão da crise do mercado pois vai diretamente ao encontro ao público alvo, o que produz e o que consome”, explica Menezes.
“As feiras de publicação nascem de uma demanda dos publicadores (aqui lê-se: artistas, editores, pesquisadores, plataformas coletivas)”, conta Fernanda Grigolin, da Tenda de Livros e editora do Jornal de Borda. “Essas feiras são um mecanismo de contramercado. A lógica das publicações independentes opera horizontalmente com demandas próprias”, explica Grigolin. A estratégia desses e outros editores inclui, além de busca por novos pontos de venda, iniciativas como o IndieBookDay, no dia 18 de março. A data, trazida ao Brasil por Varella e pelo editor da Dublinense, Gustavo Faraon, coincide com o maior evento do mundo microeditorial, a Feira Plana. Criada há cinco anos no Museu da Imagem e do Som, a feira expandiu-se tanto que acabou sendo convidada a se instalar na Bienal do Ibirapuera, onde vai levar 230 expositores – 100 a mais que em 2016. “As grandes livrarias continuam comprando grandes lotes de best-sellers e sobrevivendo da venda de material escolar e mascotinhos. Observamos agora um movimento tangente, correndo pelas bordas”, diz Bia Bittencourt, jornalista que criou e coordena a Plana. “O posicionamento dos livros como mensagem e narrativa do próprio trabalho criam afetos”, analisa.
Autor de uma tese sobre o fenômeno do mercado editorial independente, José Muniz Jr. teoriza o “oligopólio em franja”: um número reduzido de grandes players no centro do sistema, dominando os gêneros mais rentáveis, e uma infinidade de pequenas empresas nas bordas, dedicando-se aos nichos de públicos restritos. “Esse fenômeno das feiras independentes lembra a revalorização do comércio local, do pequeno produtor, da pequena escala, do artesanal, do slow e do contato direto entre produtor e comprador. Tendências visíveis no caso dos alimentos orgânicos e da produção de cervejas artesanais. Há ao mesmo tempo a ênfase no empreendedorismo”, ressalta Muniz.
A produção independente de livros é de fato uma tendência relevante do mercado, conforme Julia Fagá, da editora Ubu. “Com a maior aproximação de editoras e leitores que a internet e as feiras ajudam a proporcionar, há mais espaço de fato para segmentar e ter editoras focadas em atender seu público específico. Isso requer das editoras clareza sobre sua identidade e o catálogo que querem constituir, além de uma comunicação direta com seus leitores”.
Outro modelo se solidifica: os pequenos pontos comerciais que oferecem produtos editoriais e gráficos de nicho. “É algo que vemos em grandes cidades com livrarias especializadas em ficção científica, HQs, ciências sociais, artes, livros raros etc. Essas livrarias têm um público cativo e vendedores preparados para atendê-lo”, descreve Fabiano Curi, editor da Carambaia. “Vi em Shangai uma pequena livraria voltada para literatura latino-americana. Em San Francisco, há várias livrarias de bairro especializadas. Em Nova York, as pequenas estão saindo de Manhattan e indo para regiões menos caras”, diz Curi.
“É preciso defender o direito de as pessoas terem uma livraria perto de casa”, diz Haroldo Ceravolo, da Alameda Editorial. “Nesse sentido, acho que a experiência bem sucedida do preço único do livro, adotado pela França e pela Alemanha, entre outros países, é algo que deve ser adotado com urgência no Brasil”, pede, sendo ecoado por Raquel Menezes. “Essa lei é indispensável para ressaltar o valor simbólico do livro em nossa cultura e, assim, garantir a sobrevivência das editoras e das livrarias de rua”, afirma Menezes. Porém não é uma posição unânime, conforme ressalta Curi: “É uma forma de tentar limitar a força da Amazon, e também pode ser uma forma de prolongar a perda de força das livrarias”, defende.
Bem longe da zona de conforto de grandes editoras e livrarias gigantes, há quem comemore a quebra das megastores, como o poeta Fabiano Calixto, responsável pela Desvairada, primeira feira só de livros de poesia a se realizar no país, em 24 e 25 de março. “Ao optar pelo mercado e deixar de lado a cultura, as megastores prestaram um desserviço. Recebem dinheiro público para manter negócios, ficam com 50% do preço de capa, não pagam o transporte, demoram 120 dias para pagar o que venderam, não assumem riscos”, arrepia Calixto. Para o poeta, a Desvairada se dirige ao público que está cansado de megastores. “É um gesto contra o eterno blablablá de que ‘poesia não vende’. Se livros de poesia vendem menos, não quer dizer que não devam ser editados.”
Ao lado da Feira Plana e da Primavera dos Livros, a Desvairada é um evento para quem busca arte de alta voltagem. Pois é: assim como quem sofre um enfarte precisa do choque de um desfibrilador, o que uma economia em frangalhos como a do mercado editorial precisa é de eletricidade.
*Ronaldo Bressane é escritor, jornalista e autor de 'Mnemomáquina' (Demônio Negro) e 'V.I.S.H.N.U.' (Companhia das Letras)