Elsa Morante defende sua visão de arte e literatura em ensaios que chegam ao Brasil


'Pró ou Contra a Bomba Atômica' mostra que a autora de 'A Ilha de Arturo' também tinha uma prosa ensaística saborosa

Por Rosane Pavam

O novo não envelhece. É aquilo de bom e moderno que, segundo a escritora Elsa Morante (1912-1985), está adormecido na eternidade e deve ressurgir para o combate quando solicitado pelo presente. Para esta romana de ascendência judaica, autora dos clássicos literários La Storia e A Ilha de Arturo, somente com os olhos novos será possível desfazer a insistência humana em patrocinar a própria desintegração. Ela prega a sobrevivência desse ser pleno em 13 ensaios que, produzidos entre 1950 e 1985, foram publicados dois anos após sua morte na coletânea Pró ou Contra a Bomba Atômica, agora disponível no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Davi Pessoa. 

A escritora italiana Elsa Morante Foto: Âyiné

Morante foi casada com o escritor Alberto Moravia entre 1941 e 1961, período no qual desenvolveu amizade com o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini. Para o diretor, atuou como a prisioneira Lisa no filme Desajuste Social (Accattone), de 1961, e junto a ele lutou contra a destruição da tradição popular na Itália do pós-guerra. Eram os três amigos, de certa maneira, representantes da “força do passado” que Pasolini se orgulhava em encarnar.  Havia nesses intelectuais o entendimento de que o que estava enraizado no país, sua tradição cultural, não deveria sucumbir à uniformidade pregada pelos novos tempos de ‘boom’ econômico, em que se destacavam a prática de sonegação fiscal e o surgimento de um italiano médio sem escrúpulos. Eles raciocinavam que a burguesia igualava todos os habitantes do país pelo consumo, destruindo com isso as diferenças de origem, a alegria, o erotismo. Tais monstros burgueses produzidos “pelo sono da razão”, numa paráfrase a Francisco Goya, deveriam ser combatidos pela arte em prol de uma beleza original.  Ensaísta especialíssima, para quem o sublime equivalia a um sentimento religioso, Morante usa seus recursos ficcionais de modo a refletir sobre o caos que drenou o frescor de toda a sociedade, mesmo sabendo que alguns dos conceitos por ela defendidos, como a beleza, perdiam prestígio na reflexão artística de então. Para ela, os opositores que a difamavam como conservadora eram maus críticos, novidadeiros, “escreventes” em lugar de escritores, e não traziam para a arte a essência da renovação. Entre os anos 1950 e 1960, ainda vingava a ideia de que um bom literato deveria submeter-se a cânones “neorrealistas” de engajamento, enquanto Morante julgava ser preciso acordar o ideal clássico e criar um novo Ressurgimento, este sim capaz de reconduzir a vida social à multiplicidade.  Seus ensaios não praticam isenção. Antes, produzidos em tempos de crise, a refletem. E seu ponto de vista crítico é quase geométrico. Para ela, a arte deve ser nítida como as composições renascentistas: “O informe é o contrário da poesia, assim como é o contrário da vida, uma vez que a poesia, do mesmo modo que a vida (e a coisa soa muito comum para ser dita!), deseja realmente dar uma forma e uma ordem absoluta aos objetos do universo, tirando-os do informe e da desordem, isto é, da morte", escreve em O Poeta de Toda a Vida, em homenagem ao escritor Umberto Saba.  Para afinar a leitura desses textos escritos em linguagem direta, é preciso entender que a autora, enquanto cobra a existência social múltipla, quer da arte uma função unificadora. Por exemplo, em relação ao romance, ela acredita que não deve ser restrito à medida de um gênero literário fixado por convenções acadêmicas. “O gosto de inventar a história inexaurível da vida é uma disposição humana natural, comum a todas as épocas e a todos os países (até mesmo as lendas mitológicas e populares são uma espécie de romance coletivo). O romance em prosa, que prevaleceu (embora não exclusivamente) do século 17 em diante, não é nada mais que o sucessor direto do poema narrativo.” Ela lamenta que, segundo a ideia corrente, mereça o título de romance qualquer narrativa em prosa com peso não inferior a cem gramas. “Qualquer um que tenha preenchido trezentas páginas com fofocas ou alongado até a página trezentos uma novelinha agradável presume-se autor de romance.” Morante vê o romancista como alguém além dessas medidas, diverso do tipo que hoje vingou, autoficcional. “Ao romancista (como a qualquer outro artista) não basta a experiência contingente de sua aventura. Sua exploração precisa se transmutar num valor para o mundo: a realidade corruptível precisa ser transformada por ele numa verdade poética incorruptível. Essa é a única razão da arte, e esse é seu realismo necessário.”  Para Beato Fra Angelico (1395-1455) vão suas palavras mais ternas. O pintor italiano de afrescos com temas bíblicos equivale a um ideal artístico, visto que representou o Renascimento inicial. Um homem que se apaixonou pela luz e a entregou a quem merecia: “Para aqueles que não conhecem a verdadeira, íntima alquimia da luz, as minas terrestres são o lugar do tesouro escondido. E, assim, para a exaltação de seus olhos ignorantes, esse pintor da ordem dos mendigos constrói para a mãe e para a criança, como se fossem dois ídolos, tronos de ouro, quartos ostentados por ouro, pisos de mármore, tapetes orientais.”  A prosa ensaística de Morante tem verve deliciosa e também humor. Para ela, o gato siamês deveria ser coroado rei dos animais. “Estamos certos de que esse título não fará com que ele perca sua discrição natural e sua afabilidade. De fato, como não comeu o fruto da ciência do bem e do mal, ele dá menor importância ao título de rei do que a um peixinho; e jamais empinará sua cabeça.” Também louva a praça Navona, em Roma, por não ser perfeita, ao contrário de suas irmãs, “muito bonitas para que alguém tenha a petulância de ir ali simplesmente tomar um café”.  Contudo, lamenta que os bailes, antes feitos para mirar o céu nos lustres dos salões, evocando ascensão e eminência, agora mirem sob o chão. “Jerônimo Savonarola, para persuadir a austeridade do costume, não poderia inventar meio mais oportuno do que aquele de nossos contemporâneos, os quais imitam, por prazer mundano, o estilo do inferno. Hoje, vamos aos bailes em subsolos magníficos de teto baixo, nos quais o som ensurdecedor exprime furor, agitacão ou sonolência angustiante. Sobre a pista de dança são projetadas luzes de um vermelho sanguíneo ou de um amarelo sulfúreo. E as figuras que dançam parecem fazer referência ao choque das almas culpadas e atormentadas.”  Morante não perdoava nada dos burgueses, nem mesmo um alegado despojamento. “Ó Austeridade, quantos pecados foram cometidos em seu nome!”, exclama no ensaio Defesa de Certa Frivolidade no Hábito Viril contra os Perigos da Austeridade. Segundo ela, os ditadores e os homens de Estado exercem a “leveza rústica” do mesmo modo que os “camisas negras” italianos se tornaram sinônimo de fascismo ao adotar o ‘orbace’, tecido de lã tingido sempre de cor neutra, cinza ou preto. “Leviano quem procura a sobriedade também na gravata!”, escreve. "Façam-na com bordado, renda, cetim e arminho; pintem-na florida e com alguma espécie de surpresa, decorem-na com plumas e fios de ouro e prata. Nenhuma outra será tão audaz. A gravata é a última ponte entre o homem e a fantasia; é o último fosso entre ele e a barbárie.”  Se se ocupassem de suas vestes com mais imaginação, os homens valorizariam a vida de outro modo? Certamente, ela imagina, não teriam pensado na explosão atômica como uma ameaça constante a dividir o mundo. “As famosas bombas são orcas que se encontram dormindo nos bairros mais protegidos da América, da Ásia e da Europa, preservadas, defendidas e mantidas no ócio como se estivessem num harém dos totalitários, dos democráticos e de todos; elas, nosso tesouro atômico mundial, não são a causa potencial da desintegração, mas a manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência.” Eis por que, a seu ver, a arte não cabe nos regimes totalitários: sua razão de existir é integrar, não separar: “A arte é o contrário da desintegração. E por quê? Simplesmente porque a razão da arte, sua justificação, seu único motivo de presença e sobrevivência, ou, caso se prefira, sua função, é exatamente a seguinte: impedir a desintegração da consciência humana.” Como a arte poderia combater a pandemia narcísica?

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*É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’

O novo não envelhece. É aquilo de bom e moderno que, segundo a escritora Elsa Morante (1912-1985), está adormecido na eternidade e deve ressurgir para o combate quando solicitado pelo presente. Para esta romana de ascendência judaica, autora dos clássicos literários La Storia e A Ilha de Arturo, somente com os olhos novos será possível desfazer a insistência humana em patrocinar a própria desintegração. Ela prega a sobrevivência desse ser pleno em 13 ensaios que, produzidos entre 1950 e 1985, foram publicados dois anos após sua morte na coletânea Pró ou Contra a Bomba Atômica, agora disponível no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Davi Pessoa. 

A escritora italiana Elsa Morante Foto: Âyiné

Morante foi casada com o escritor Alberto Moravia entre 1941 e 1961, período no qual desenvolveu amizade com o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini. Para o diretor, atuou como a prisioneira Lisa no filme Desajuste Social (Accattone), de 1961, e junto a ele lutou contra a destruição da tradição popular na Itália do pós-guerra. Eram os três amigos, de certa maneira, representantes da “força do passado” que Pasolini se orgulhava em encarnar.  Havia nesses intelectuais o entendimento de que o que estava enraizado no país, sua tradição cultural, não deveria sucumbir à uniformidade pregada pelos novos tempos de ‘boom’ econômico, em que se destacavam a prática de sonegação fiscal e o surgimento de um italiano médio sem escrúpulos. Eles raciocinavam que a burguesia igualava todos os habitantes do país pelo consumo, destruindo com isso as diferenças de origem, a alegria, o erotismo. Tais monstros burgueses produzidos “pelo sono da razão”, numa paráfrase a Francisco Goya, deveriam ser combatidos pela arte em prol de uma beleza original.  Ensaísta especialíssima, para quem o sublime equivalia a um sentimento religioso, Morante usa seus recursos ficcionais de modo a refletir sobre o caos que drenou o frescor de toda a sociedade, mesmo sabendo que alguns dos conceitos por ela defendidos, como a beleza, perdiam prestígio na reflexão artística de então. Para ela, os opositores que a difamavam como conservadora eram maus críticos, novidadeiros, “escreventes” em lugar de escritores, e não traziam para a arte a essência da renovação. Entre os anos 1950 e 1960, ainda vingava a ideia de que um bom literato deveria submeter-se a cânones “neorrealistas” de engajamento, enquanto Morante julgava ser preciso acordar o ideal clássico e criar um novo Ressurgimento, este sim capaz de reconduzir a vida social à multiplicidade.  Seus ensaios não praticam isenção. Antes, produzidos em tempos de crise, a refletem. E seu ponto de vista crítico é quase geométrico. Para ela, a arte deve ser nítida como as composições renascentistas: “O informe é o contrário da poesia, assim como é o contrário da vida, uma vez que a poesia, do mesmo modo que a vida (e a coisa soa muito comum para ser dita!), deseja realmente dar uma forma e uma ordem absoluta aos objetos do universo, tirando-os do informe e da desordem, isto é, da morte", escreve em O Poeta de Toda a Vida, em homenagem ao escritor Umberto Saba.  Para afinar a leitura desses textos escritos em linguagem direta, é preciso entender que a autora, enquanto cobra a existência social múltipla, quer da arte uma função unificadora. Por exemplo, em relação ao romance, ela acredita que não deve ser restrito à medida de um gênero literário fixado por convenções acadêmicas. “O gosto de inventar a história inexaurível da vida é uma disposição humana natural, comum a todas as épocas e a todos os países (até mesmo as lendas mitológicas e populares são uma espécie de romance coletivo). O romance em prosa, que prevaleceu (embora não exclusivamente) do século 17 em diante, não é nada mais que o sucessor direto do poema narrativo.” Ela lamenta que, segundo a ideia corrente, mereça o título de romance qualquer narrativa em prosa com peso não inferior a cem gramas. “Qualquer um que tenha preenchido trezentas páginas com fofocas ou alongado até a página trezentos uma novelinha agradável presume-se autor de romance.” Morante vê o romancista como alguém além dessas medidas, diverso do tipo que hoje vingou, autoficcional. “Ao romancista (como a qualquer outro artista) não basta a experiência contingente de sua aventura. Sua exploração precisa se transmutar num valor para o mundo: a realidade corruptível precisa ser transformada por ele numa verdade poética incorruptível. Essa é a única razão da arte, e esse é seu realismo necessário.”  Para Beato Fra Angelico (1395-1455) vão suas palavras mais ternas. O pintor italiano de afrescos com temas bíblicos equivale a um ideal artístico, visto que representou o Renascimento inicial. Um homem que se apaixonou pela luz e a entregou a quem merecia: “Para aqueles que não conhecem a verdadeira, íntima alquimia da luz, as minas terrestres são o lugar do tesouro escondido. E, assim, para a exaltação de seus olhos ignorantes, esse pintor da ordem dos mendigos constrói para a mãe e para a criança, como se fossem dois ídolos, tronos de ouro, quartos ostentados por ouro, pisos de mármore, tapetes orientais.”  A prosa ensaística de Morante tem verve deliciosa e também humor. Para ela, o gato siamês deveria ser coroado rei dos animais. “Estamos certos de que esse título não fará com que ele perca sua discrição natural e sua afabilidade. De fato, como não comeu o fruto da ciência do bem e do mal, ele dá menor importância ao título de rei do que a um peixinho; e jamais empinará sua cabeça.” Também louva a praça Navona, em Roma, por não ser perfeita, ao contrário de suas irmãs, “muito bonitas para que alguém tenha a petulância de ir ali simplesmente tomar um café”.  Contudo, lamenta que os bailes, antes feitos para mirar o céu nos lustres dos salões, evocando ascensão e eminência, agora mirem sob o chão. “Jerônimo Savonarola, para persuadir a austeridade do costume, não poderia inventar meio mais oportuno do que aquele de nossos contemporâneos, os quais imitam, por prazer mundano, o estilo do inferno. Hoje, vamos aos bailes em subsolos magníficos de teto baixo, nos quais o som ensurdecedor exprime furor, agitacão ou sonolência angustiante. Sobre a pista de dança são projetadas luzes de um vermelho sanguíneo ou de um amarelo sulfúreo. E as figuras que dançam parecem fazer referência ao choque das almas culpadas e atormentadas.”  Morante não perdoava nada dos burgueses, nem mesmo um alegado despojamento. “Ó Austeridade, quantos pecados foram cometidos em seu nome!”, exclama no ensaio Defesa de Certa Frivolidade no Hábito Viril contra os Perigos da Austeridade. Segundo ela, os ditadores e os homens de Estado exercem a “leveza rústica” do mesmo modo que os “camisas negras” italianos se tornaram sinônimo de fascismo ao adotar o ‘orbace’, tecido de lã tingido sempre de cor neutra, cinza ou preto. “Leviano quem procura a sobriedade também na gravata!”, escreve. "Façam-na com bordado, renda, cetim e arminho; pintem-na florida e com alguma espécie de surpresa, decorem-na com plumas e fios de ouro e prata. Nenhuma outra será tão audaz. A gravata é a última ponte entre o homem e a fantasia; é o último fosso entre ele e a barbárie.”  Se se ocupassem de suas vestes com mais imaginação, os homens valorizariam a vida de outro modo? Certamente, ela imagina, não teriam pensado na explosão atômica como uma ameaça constante a dividir o mundo. “As famosas bombas são orcas que se encontram dormindo nos bairros mais protegidos da América, da Ásia e da Europa, preservadas, defendidas e mantidas no ócio como se estivessem num harém dos totalitários, dos democráticos e de todos; elas, nosso tesouro atômico mundial, não são a causa potencial da desintegração, mas a manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência.” Eis por que, a seu ver, a arte não cabe nos regimes totalitários: sua razão de existir é integrar, não separar: “A arte é o contrário da desintegração. E por quê? Simplesmente porque a razão da arte, sua justificação, seu único motivo de presença e sobrevivência, ou, caso se prefira, sua função, é exatamente a seguinte: impedir a desintegração da consciência humana.” Como a arte poderia combater a pandemia narcísica?

*É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’

O novo não envelhece. É aquilo de bom e moderno que, segundo a escritora Elsa Morante (1912-1985), está adormecido na eternidade e deve ressurgir para o combate quando solicitado pelo presente. Para esta romana de ascendência judaica, autora dos clássicos literários La Storia e A Ilha de Arturo, somente com os olhos novos será possível desfazer a insistência humana em patrocinar a própria desintegração. Ela prega a sobrevivência desse ser pleno em 13 ensaios que, produzidos entre 1950 e 1985, foram publicados dois anos após sua morte na coletânea Pró ou Contra a Bomba Atômica, agora disponível no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Davi Pessoa. 

A escritora italiana Elsa Morante Foto: Âyiné

Morante foi casada com o escritor Alberto Moravia entre 1941 e 1961, período no qual desenvolveu amizade com o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini. Para o diretor, atuou como a prisioneira Lisa no filme Desajuste Social (Accattone), de 1961, e junto a ele lutou contra a destruição da tradição popular na Itália do pós-guerra. Eram os três amigos, de certa maneira, representantes da “força do passado” que Pasolini se orgulhava em encarnar.  Havia nesses intelectuais o entendimento de que o que estava enraizado no país, sua tradição cultural, não deveria sucumbir à uniformidade pregada pelos novos tempos de ‘boom’ econômico, em que se destacavam a prática de sonegação fiscal e o surgimento de um italiano médio sem escrúpulos. Eles raciocinavam que a burguesia igualava todos os habitantes do país pelo consumo, destruindo com isso as diferenças de origem, a alegria, o erotismo. Tais monstros burgueses produzidos “pelo sono da razão”, numa paráfrase a Francisco Goya, deveriam ser combatidos pela arte em prol de uma beleza original.  Ensaísta especialíssima, para quem o sublime equivalia a um sentimento religioso, Morante usa seus recursos ficcionais de modo a refletir sobre o caos que drenou o frescor de toda a sociedade, mesmo sabendo que alguns dos conceitos por ela defendidos, como a beleza, perdiam prestígio na reflexão artística de então. Para ela, os opositores que a difamavam como conservadora eram maus críticos, novidadeiros, “escreventes” em lugar de escritores, e não traziam para a arte a essência da renovação. Entre os anos 1950 e 1960, ainda vingava a ideia de que um bom literato deveria submeter-se a cânones “neorrealistas” de engajamento, enquanto Morante julgava ser preciso acordar o ideal clássico e criar um novo Ressurgimento, este sim capaz de reconduzir a vida social à multiplicidade.  Seus ensaios não praticam isenção. Antes, produzidos em tempos de crise, a refletem. E seu ponto de vista crítico é quase geométrico. Para ela, a arte deve ser nítida como as composições renascentistas: “O informe é o contrário da poesia, assim como é o contrário da vida, uma vez que a poesia, do mesmo modo que a vida (e a coisa soa muito comum para ser dita!), deseja realmente dar uma forma e uma ordem absoluta aos objetos do universo, tirando-os do informe e da desordem, isto é, da morte", escreve em O Poeta de Toda a Vida, em homenagem ao escritor Umberto Saba.  Para afinar a leitura desses textos escritos em linguagem direta, é preciso entender que a autora, enquanto cobra a existência social múltipla, quer da arte uma função unificadora. Por exemplo, em relação ao romance, ela acredita que não deve ser restrito à medida de um gênero literário fixado por convenções acadêmicas. “O gosto de inventar a história inexaurível da vida é uma disposição humana natural, comum a todas as épocas e a todos os países (até mesmo as lendas mitológicas e populares são uma espécie de romance coletivo). O romance em prosa, que prevaleceu (embora não exclusivamente) do século 17 em diante, não é nada mais que o sucessor direto do poema narrativo.” Ela lamenta que, segundo a ideia corrente, mereça o título de romance qualquer narrativa em prosa com peso não inferior a cem gramas. “Qualquer um que tenha preenchido trezentas páginas com fofocas ou alongado até a página trezentos uma novelinha agradável presume-se autor de romance.” Morante vê o romancista como alguém além dessas medidas, diverso do tipo que hoje vingou, autoficcional. “Ao romancista (como a qualquer outro artista) não basta a experiência contingente de sua aventura. Sua exploração precisa se transmutar num valor para o mundo: a realidade corruptível precisa ser transformada por ele numa verdade poética incorruptível. Essa é a única razão da arte, e esse é seu realismo necessário.”  Para Beato Fra Angelico (1395-1455) vão suas palavras mais ternas. O pintor italiano de afrescos com temas bíblicos equivale a um ideal artístico, visto que representou o Renascimento inicial. Um homem que se apaixonou pela luz e a entregou a quem merecia: “Para aqueles que não conhecem a verdadeira, íntima alquimia da luz, as minas terrestres são o lugar do tesouro escondido. E, assim, para a exaltação de seus olhos ignorantes, esse pintor da ordem dos mendigos constrói para a mãe e para a criança, como se fossem dois ídolos, tronos de ouro, quartos ostentados por ouro, pisos de mármore, tapetes orientais.”  A prosa ensaística de Morante tem verve deliciosa e também humor. Para ela, o gato siamês deveria ser coroado rei dos animais. “Estamos certos de que esse título não fará com que ele perca sua discrição natural e sua afabilidade. De fato, como não comeu o fruto da ciência do bem e do mal, ele dá menor importância ao título de rei do que a um peixinho; e jamais empinará sua cabeça.” Também louva a praça Navona, em Roma, por não ser perfeita, ao contrário de suas irmãs, “muito bonitas para que alguém tenha a petulância de ir ali simplesmente tomar um café”.  Contudo, lamenta que os bailes, antes feitos para mirar o céu nos lustres dos salões, evocando ascensão e eminência, agora mirem sob o chão. “Jerônimo Savonarola, para persuadir a austeridade do costume, não poderia inventar meio mais oportuno do que aquele de nossos contemporâneos, os quais imitam, por prazer mundano, o estilo do inferno. Hoje, vamos aos bailes em subsolos magníficos de teto baixo, nos quais o som ensurdecedor exprime furor, agitacão ou sonolência angustiante. Sobre a pista de dança são projetadas luzes de um vermelho sanguíneo ou de um amarelo sulfúreo. E as figuras que dançam parecem fazer referência ao choque das almas culpadas e atormentadas.”  Morante não perdoava nada dos burgueses, nem mesmo um alegado despojamento. “Ó Austeridade, quantos pecados foram cometidos em seu nome!”, exclama no ensaio Defesa de Certa Frivolidade no Hábito Viril contra os Perigos da Austeridade. Segundo ela, os ditadores e os homens de Estado exercem a “leveza rústica” do mesmo modo que os “camisas negras” italianos se tornaram sinônimo de fascismo ao adotar o ‘orbace’, tecido de lã tingido sempre de cor neutra, cinza ou preto. “Leviano quem procura a sobriedade também na gravata!”, escreve. "Façam-na com bordado, renda, cetim e arminho; pintem-na florida e com alguma espécie de surpresa, decorem-na com plumas e fios de ouro e prata. Nenhuma outra será tão audaz. A gravata é a última ponte entre o homem e a fantasia; é o último fosso entre ele e a barbárie.”  Se se ocupassem de suas vestes com mais imaginação, os homens valorizariam a vida de outro modo? Certamente, ela imagina, não teriam pensado na explosão atômica como uma ameaça constante a dividir o mundo. “As famosas bombas são orcas que se encontram dormindo nos bairros mais protegidos da América, da Ásia e da Europa, preservadas, defendidas e mantidas no ócio como se estivessem num harém dos totalitários, dos democráticos e de todos; elas, nosso tesouro atômico mundial, não são a causa potencial da desintegração, mas a manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência.” Eis por que, a seu ver, a arte não cabe nos regimes totalitários: sua razão de existir é integrar, não separar: “A arte é o contrário da desintegração. E por quê? Simplesmente porque a razão da arte, sua justificação, seu único motivo de presença e sobrevivência, ou, caso se prefira, sua função, é exatamente a seguinte: impedir a desintegração da consciência humana.” Como a arte poderia combater a pandemia narcísica?

*É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’

O novo não envelhece. É aquilo de bom e moderno que, segundo a escritora Elsa Morante (1912-1985), está adormecido na eternidade e deve ressurgir para o combate quando solicitado pelo presente. Para esta romana de ascendência judaica, autora dos clássicos literários La Storia e A Ilha de Arturo, somente com os olhos novos será possível desfazer a insistência humana em patrocinar a própria desintegração. Ela prega a sobrevivência desse ser pleno em 13 ensaios que, produzidos entre 1950 e 1985, foram publicados dois anos após sua morte na coletânea Pró ou Contra a Bomba Atômica, agora disponível no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Davi Pessoa. 

A escritora italiana Elsa Morante Foto: Âyiné

Morante foi casada com o escritor Alberto Moravia entre 1941 e 1961, período no qual desenvolveu amizade com o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini. Para o diretor, atuou como a prisioneira Lisa no filme Desajuste Social (Accattone), de 1961, e junto a ele lutou contra a destruição da tradição popular na Itália do pós-guerra. Eram os três amigos, de certa maneira, representantes da “força do passado” que Pasolini se orgulhava em encarnar.  Havia nesses intelectuais o entendimento de que o que estava enraizado no país, sua tradição cultural, não deveria sucumbir à uniformidade pregada pelos novos tempos de ‘boom’ econômico, em que se destacavam a prática de sonegação fiscal e o surgimento de um italiano médio sem escrúpulos. Eles raciocinavam que a burguesia igualava todos os habitantes do país pelo consumo, destruindo com isso as diferenças de origem, a alegria, o erotismo. Tais monstros burgueses produzidos “pelo sono da razão”, numa paráfrase a Francisco Goya, deveriam ser combatidos pela arte em prol de uma beleza original.  Ensaísta especialíssima, para quem o sublime equivalia a um sentimento religioso, Morante usa seus recursos ficcionais de modo a refletir sobre o caos que drenou o frescor de toda a sociedade, mesmo sabendo que alguns dos conceitos por ela defendidos, como a beleza, perdiam prestígio na reflexão artística de então. Para ela, os opositores que a difamavam como conservadora eram maus críticos, novidadeiros, “escreventes” em lugar de escritores, e não traziam para a arte a essência da renovação. Entre os anos 1950 e 1960, ainda vingava a ideia de que um bom literato deveria submeter-se a cânones “neorrealistas” de engajamento, enquanto Morante julgava ser preciso acordar o ideal clássico e criar um novo Ressurgimento, este sim capaz de reconduzir a vida social à multiplicidade.  Seus ensaios não praticam isenção. Antes, produzidos em tempos de crise, a refletem. E seu ponto de vista crítico é quase geométrico. Para ela, a arte deve ser nítida como as composições renascentistas: “O informe é o contrário da poesia, assim como é o contrário da vida, uma vez que a poesia, do mesmo modo que a vida (e a coisa soa muito comum para ser dita!), deseja realmente dar uma forma e uma ordem absoluta aos objetos do universo, tirando-os do informe e da desordem, isto é, da morte", escreve em O Poeta de Toda a Vida, em homenagem ao escritor Umberto Saba.  Para afinar a leitura desses textos escritos em linguagem direta, é preciso entender que a autora, enquanto cobra a existência social múltipla, quer da arte uma função unificadora. Por exemplo, em relação ao romance, ela acredita que não deve ser restrito à medida de um gênero literário fixado por convenções acadêmicas. “O gosto de inventar a história inexaurível da vida é uma disposição humana natural, comum a todas as épocas e a todos os países (até mesmo as lendas mitológicas e populares são uma espécie de romance coletivo). O romance em prosa, que prevaleceu (embora não exclusivamente) do século 17 em diante, não é nada mais que o sucessor direto do poema narrativo.” Ela lamenta que, segundo a ideia corrente, mereça o título de romance qualquer narrativa em prosa com peso não inferior a cem gramas. “Qualquer um que tenha preenchido trezentas páginas com fofocas ou alongado até a página trezentos uma novelinha agradável presume-se autor de romance.” Morante vê o romancista como alguém além dessas medidas, diverso do tipo que hoje vingou, autoficcional. “Ao romancista (como a qualquer outro artista) não basta a experiência contingente de sua aventura. Sua exploração precisa se transmutar num valor para o mundo: a realidade corruptível precisa ser transformada por ele numa verdade poética incorruptível. Essa é a única razão da arte, e esse é seu realismo necessário.”  Para Beato Fra Angelico (1395-1455) vão suas palavras mais ternas. O pintor italiano de afrescos com temas bíblicos equivale a um ideal artístico, visto que representou o Renascimento inicial. Um homem que se apaixonou pela luz e a entregou a quem merecia: “Para aqueles que não conhecem a verdadeira, íntima alquimia da luz, as minas terrestres são o lugar do tesouro escondido. E, assim, para a exaltação de seus olhos ignorantes, esse pintor da ordem dos mendigos constrói para a mãe e para a criança, como se fossem dois ídolos, tronos de ouro, quartos ostentados por ouro, pisos de mármore, tapetes orientais.”  A prosa ensaística de Morante tem verve deliciosa e também humor. Para ela, o gato siamês deveria ser coroado rei dos animais. “Estamos certos de que esse título não fará com que ele perca sua discrição natural e sua afabilidade. De fato, como não comeu o fruto da ciência do bem e do mal, ele dá menor importância ao título de rei do que a um peixinho; e jamais empinará sua cabeça.” Também louva a praça Navona, em Roma, por não ser perfeita, ao contrário de suas irmãs, “muito bonitas para que alguém tenha a petulância de ir ali simplesmente tomar um café”.  Contudo, lamenta que os bailes, antes feitos para mirar o céu nos lustres dos salões, evocando ascensão e eminência, agora mirem sob o chão. “Jerônimo Savonarola, para persuadir a austeridade do costume, não poderia inventar meio mais oportuno do que aquele de nossos contemporâneos, os quais imitam, por prazer mundano, o estilo do inferno. Hoje, vamos aos bailes em subsolos magníficos de teto baixo, nos quais o som ensurdecedor exprime furor, agitacão ou sonolência angustiante. Sobre a pista de dança são projetadas luzes de um vermelho sanguíneo ou de um amarelo sulfúreo. E as figuras que dançam parecem fazer referência ao choque das almas culpadas e atormentadas.”  Morante não perdoava nada dos burgueses, nem mesmo um alegado despojamento. “Ó Austeridade, quantos pecados foram cometidos em seu nome!”, exclama no ensaio Defesa de Certa Frivolidade no Hábito Viril contra os Perigos da Austeridade. Segundo ela, os ditadores e os homens de Estado exercem a “leveza rústica” do mesmo modo que os “camisas negras” italianos se tornaram sinônimo de fascismo ao adotar o ‘orbace’, tecido de lã tingido sempre de cor neutra, cinza ou preto. “Leviano quem procura a sobriedade também na gravata!”, escreve. "Façam-na com bordado, renda, cetim e arminho; pintem-na florida e com alguma espécie de surpresa, decorem-na com plumas e fios de ouro e prata. Nenhuma outra será tão audaz. A gravata é a última ponte entre o homem e a fantasia; é o último fosso entre ele e a barbárie.”  Se se ocupassem de suas vestes com mais imaginação, os homens valorizariam a vida de outro modo? Certamente, ela imagina, não teriam pensado na explosão atômica como uma ameaça constante a dividir o mundo. “As famosas bombas são orcas que se encontram dormindo nos bairros mais protegidos da América, da Ásia e da Europa, preservadas, defendidas e mantidas no ócio como se estivessem num harém dos totalitários, dos democráticos e de todos; elas, nosso tesouro atômico mundial, não são a causa potencial da desintegração, mas a manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência.” Eis por que, a seu ver, a arte não cabe nos regimes totalitários: sua razão de existir é integrar, não separar: “A arte é o contrário da desintegração. E por quê? Simplesmente porque a razão da arte, sua justificação, seu único motivo de presença e sobrevivência, ou, caso se prefira, sua função, é exatamente a seguinte: impedir a desintegração da consciência humana.” Como a arte poderia combater a pandemia narcísica?

*É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’

O novo não envelhece. É aquilo de bom e moderno que, segundo a escritora Elsa Morante (1912-1985), está adormecido na eternidade e deve ressurgir para o combate quando solicitado pelo presente. Para esta romana de ascendência judaica, autora dos clássicos literários La Storia e A Ilha de Arturo, somente com os olhos novos será possível desfazer a insistência humana em patrocinar a própria desintegração. Ela prega a sobrevivência desse ser pleno em 13 ensaios que, produzidos entre 1950 e 1985, foram publicados dois anos após sua morte na coletânea Pró ou Contra a Bomba Atômica, agora disponível no Brasil pela editora Âyiné, com tradução de Davi Pessoa. 

A escritora italiana Elsa Morante Foto: Âyiné

Morante foi casada com o escritor Alberto Moravia entre 1941 e 1961, período no qual desenvolveu amizade com o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini. Para o diretor, atuou como a prisioneira Lisa no filme Desajuste Social (Accattone), de 1961, e junto a ele lutou contra a destruição da tradição popular na Itália do pós-guerra. Eram os três amigos, de certa maneira, representantes da “força do passado” que Pasolini se orgulhava em encarnar.  Havia nesses intelectuais o entendimento de que o que estava enraizado no país, sua tradição cultural, não deveria sucumbir à uniformidade pregada pelos novos tempos de ‘boom’ econômico, em que se destacavam a prática de sonegação fiscal e o surgimento de um italiano médio sem escrúpulos. Eles raciocinavam que a burguesia igualava todos os habitantes do país pelo consumo, destruindo com isso as diferenças de origem, a alegria, o erotismo. Tais monstros burgueses produzidos “pelo sono da razão”, numa paráfrase a Francisco Goya, deveriam ser combatidos pela arte em prol de uma beleza original.  Ensaísta especialíssima, para quem o sublime equivalia a um sentimento religioso, Morante usa seus recursos ficcionais de modo a refletir sobre o caos que drenou o frescor de toda a sociedade, mesmo sabendo que alguns dos conceitos por ela defendidos, como a beleza, perdiam prestígio na reflexão artística de então. Para ela, os opositores que a difamavam como conservadora eram maus críticos, novidadeiros, “escreventes” em lugar de escritores, e não traziam para a arte a essência da renovação. Entre os anos 1950 e 1960, ainda vingava a ideia de que um bom literato deveria submeter-se a cânones “neorrealistas” de engajamento, enquanto Morante julgava ser preciso acordar o ideal clássico e criar um novo Ressurgimento, este sim capaz de reconduzir a vida social à multiplicidade.  Seus ensaios não praticam isenção. Antes, produzidos em tempos de crise, a refletem. E seu ponto de vista crítico é quase geométrico. Para ela, a arte deve ser nítida como as composições renascentistas: “O informe é o contrário da poesia, assim como é o contrário da vida, uma vez que a poesia, do mesmo modo que a vida (e a coisa soa muito comum para ser dita!), deseja realmente dar uma forma e uma ordem absoluta aos objetos do universo, tirando-os do informe e da desordem, isto é, da morte", escreve em O Poeta de Toda a Vida, em homenagem ao escritor Umberto Saba.  Para afinar a leitura desses textos escritos em linguagem direta, é preciso entender que a autora, enquanto cobra a existência social múltipla, quer da arte uma função unificadora. Por exemplo, em relação ao romance, ela acredita que não deve ser restrito à medida de um gênero literário fixado por convenções acadêmicas. “O gosto de inventar a história inexaurível da vida é uma disposição humana natural, comum a todas as épocas e a todos os países (até mesmo as lendas mitológicas e populares são uma espécie de romance coletivo). O romance em prosa, que prevaleceu (embora não exclusivamente) do século 17 em diante, não é nada mais que o sucessor direto do poema narrativo.” Ela lamenta que, segundo a ideia corrente, mereça o título de romance qualquer narrativa em prosa com peso não inferior a cem gramas. “Qualquer um que tenha preenchido trezentas páginas com fofocas ou alongado até a página trezentos uma novelinha agradável presume-se autor de romance.” Morante vê o romancista como alguém além dessas medidas, diverso do tipo que hoje vingou, autoficcional. “Ao romancista (como a qualquer outro artista) não basta a experiência contingente de sua aventura. Sua exploração precisa se transmutar num valor para o mundo: a realidade corruptível precisa ser transformada por ele numa verdade poética incorruptível. Essa é a única razão da arte, e esse é seu realismo necessário.”  Para Beato Fra Angelico (1395-1455) vão suas palavras mais ternas. O pintor italiano de afrescos com temas bíblicos equivale a um ideal artístico, visto que representou o Renascimento inicial. Um homem que se apaixonou pela luz e a entregou a quem merecia: “Para aqueles que não conhecem a verdadeira, íntima alquimia da luz, as minas terrestres são o lugar do tesouro escondido. E, assim, para a exaltação de seus olhos ignorantes, esse pintor da ordem dos mendigos constrói para a mãe e para a criança, como se fossem dois ídolos, tronos de ouro, quartos ostentados por ouro, pisos de mármore, tapetes orientais.”  A prosa ensaística de Morante tem verve deliciosa e também humor. Para ela, o gato siamês deveria ser coroado rei dos animais. “Estamos certos de que esse título não fará com que ele perca sua discrição natural e sua afabilidade. De fato, como não comeu o fruto da ciência do bem e do mal, ele dá menor importância ao título de rei do que a um peixinho; e jamais empinará sua cabeça.” Também louva a praça Navona, em Roma, por não ser perfeita, ao contrário de suas irmãs, “muito bonitas para que alguém tenha a petulância de ir ali simplesmente tomar um café”.  Contudo, lamenta que os bailes, antes feitos para mirar o céu nos lustres dos salões, evocando ascensão e eminência, agora mirem sob o chão. “Jerônimo Savonarola, para persuadir a austeridade do costume, não poderia inventar meio mais oportuno do que aquele de nossos contemporâneos, os quais imitam, por prazer mundano, o estilo do inferno. Hoje, vamos aos bailes em subsolos magníficos de teto baixo, nos quais o som ensurdecedor exprime furor, agitacão ou sonolência angustiante. Sobre a pista de dança são projetadas luzes de um vermelho sanguíneo ou de um amarelo sulfúreo. E as figuras que dançam parecem fazer referência ao choque das almas culpadas e atormentadas.”  Morante não perdoava nada dos burgueses, nem mesmo um alegado despojamento. “Ó Austeridade, quantos pecados foram cometidos em seu nome!”, exclama no ensaio Defesa de Certa Frivolidade no Hábito Viril contra os Perigos da Austeridade. Segundo ela, os ditadores e os homens de Estado exercem a “leveza rústica” do mesmo modo que os “camisas negras” italianos se tornaram sinônimo de fascismo ao adotar o ‘orbace’, tecido de lã tingido sempre de cor neutra, cinza ou preto. “Leviano quem procura a sobriedade também na gravata!”, escreve. "Façam-na com bordado, renda, cetim e arminho; pintem-na florida e com alguma espécie de surpresa, decorem-na com plumas e fios de ouro e prata. Nenhuma outra será tão audaz. A gravata é a última ponte entre o homem e a fantasia; é o último fosso entre ele e a barbárie.”  Se se ocupassem de suas vestes com mais imaginação, os homens valorizariam a vida de outro modo? Certamente, ela imagina, não teriam pensado na explosão atômica como uma ameaça constante a dividir o mundo. “As famosas bombas são orcas que se encontram dormindo nos bairros mais protegidos da América, da Ásia e da Europa, preservadas, defendidas e mantidas no ócio como se estivessem num harém dos totalitários, dos democráticos e de todos; elas, nosso tesouro atômico mundial, não são a causa potencial da desintegração, mas a manifestação necessária desse desastre já ativo em nossa consciência.” Eis por que, a seu ver, a arte não cabe nos regimes totalitários: sua razão de existir é integrar, não separar: “A arte é o contrário da desintegração. E por quê? Simplesmente porque a razão da arte, sua justificação, seu único motivo de presença e sobrevivência, ou, caso se prefira, sua função, é exatamente a seguinte: impedir a desintegração da consciência humana.” Como a arte poderia combater a pandemia narcísica?

*É JORNALISTA, PESQUISADORA E AUTORA DE ‘O SONHO INTACTO’ E ‘O CINEASTA HISTORIADOR’

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