Sempre que se invoca autores cuja obra se espraia em quase todas as áreas do conhecimento, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) é um dos primeiros nomes que vêm à mente. Para compreender o percurso de elaboração dessa obra monumental e sui generis nada melhor do que apreender a dinâmica interna de sua elaboração. Analisar as questões que o autor colocou para si mesmo e quais as soluções que ele encontrou para as mesmas. É possível assim visualizar a evolução orgânica de sua produção. As conexões subterrâneas entre esses domínios à primeira vista tão heterogêneos.
Nesse sentido, um dos melhores caminhos para adentrar a evolução interna desse autor clássico é a excelente Série Goethe da Editora Unesp, coordenada e concebida por Mario Luiz Frungillo, professor do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp e especialista em literaturas de língua alemã. O objetivo é produzir edições críticas das principais obras do grande poeta e pensador alemão. Para tanto, inicia-se pelas obras que conectam diretamente essa obra à vida de Goethe.
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Havia sido publicada Conversações com Goethe nos Últimos Anos de Sua Vida (1823-1832) de Johann Peter Eckermann, uma transcrição das conversas cotidianas que este autor mantivera ao longo dos dez últimos anos de vida de Goethe. Agora a série traz ao leitor De Minha Vida: Poesia e Verdade, autobiografia na qual Goethe traça um painel de sua vida, desde a primeira infância até os últimos anos. Ambas contam com excelentes traduções e um bom aparato crítico, com apresentações e notas. A primeira, a cargo do próprio Frungillo. A segunda, aos cuidados de Mauricio Mendonça Cardozo.
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São 1.600 páginas de reflexões de Goethe, diretas (autobiografia) e indiretas (conversações). Eckermann foi um escritor e dramaturgo, formado em Filologia e que desde as primeiras leituras se apaixonou pela obra de Goethe. Decidiu então tornar-se seu fiel seguidor e auxiliar a edição de suas obras. As conversações com Eckermann estão divididas em três partes: as duas primeiras foram redigidas em 1836 e a terceira, em 1848. Já De Minha Vida é dividida em 4 partes e em 20 livros, e concebida de modo bem mais esparso. Enquanto as três primeiras partes foram escritas entre os anos de 1811 e 1813, a quarta surgiu entre 1813 e 1831, e foi publicada apenas postumamente.
Embora seja conhecido como poeta e dramaturgo, a obra de Goethe engloba conhecimentos de filosofia, alquimia, teologia, religiões, filologia, literatura, mitologia e, nas ciências naturais, conecta sobretudo com a botânica, a mineralogia e a óptica. Como unificar essa miríade de saberes? A unidade se encontra em uma entidade: a natureza. Goethe é um panteísta, um adepto de um Deus da Natureza. Isso explica suas longas digressões sobre a importância da identidade entre Deus e Natureza (Deus sive Natura), concebida por Espinosa. Como panteísta, Goethe também defende graus de racionalidade distribuída nos animais e nas plantas. Por isso, quando menciona a Bíblia, prefere referir-se a Deus no plural (Elohim).
Seus estudos de ciências naturais não se baseiam apenas em uma teologia natural. Partem da observação empírica dos fenômenos e de uma concepção vitalista do cosmos. A observação do universo encontra padrões nos sistemas orgânicos. E, assim, torna-se possível a passagem da natureza à arte. Não por acaso, Goethe se interessou tanto pelas tipologias e caracterizações da natureza, tais como os quatro volumes da Physiognomia de Lavater, obra para a qual escreveu a morfologia do crânio dos animais, dentre outras contribuições.
Esse estudo do reino da natureza o fez buscar nos antigos a unidade entre a filosofia, a poesia e a religião. Conduziu-o também na juventude à magia, à alquimia, ao hermetismo e à Cabala, sobretudo por vias da obra de Cornelius Agrippa, saberes que estão na raiz de algumas de suas obras. Por outro lado, Goethe chegara à botânica, à teoria das cores e à formulação da lei da metamorfose das plantas por um caminho nem um pouco metafísico: por meio da empiria e da observação. Por isso, trata-se de um artista-cientista tão singular na história das ideias e da arte. Conhecia a fundo a erudição de Buffon e Lineu, bem como a História Natural de Cuvier. Ao mesmo tempo, elogiava os naturalistas Von Martius e Von Humboldt por serem cientistas da imaginação.
Essa irmandade entre ciência e imaginação começou cedo para Goethe, com visitas aos ateliês dos pintores amigos do pai, Johann Kaspar Goethe, e com as investigações na biblioteca familiar, ainda criança. A paixão pelas letras se soma à paixão pelas artes visuais. Os comentários sobre a estrutura das cidades, a arquitetura, os pintores de Frankfurt am Main e o interesse pela produção de seu tempo revelam o embrião do Goethe artista. Chegara a desenhar e a fazer gravuras e pinturas, incentivado pelo pai. O gosto pela arte surge ao mesmo tempo que a descoberta dos livros. A leitura é intercalada às gravuras. Imagem e texto leem e se interpenetram. Nascia o problema do diálogo entre as artes verbais e visuais (ut pictura poesis), que mais tarde vai ocupar o centro de sua atenção por meio do Laocoonte de Lessing, que revoluciona essa questão.
Seguiram-se o estudo de italiano, latim, grego, inglês e hebraico. A curiosidade pelas línguas antigas o levou à mitologia e à Bíblia. E também o conduziu à tomada de consciência da vocação de poeta. Dentre muitos dos ensinamentos que Goethe retém das obras de seus mestres Lessing, Winckelmann e Kant, um dos mais importantes é a perfeição orgânica. A biologia pressupõe uma relação entre ontogênese e filogênese, entre o geral e o específico, entre a origem das espécies e a origem dos indivíduos. Essa relação pode ser detectada por meio da analogia das formas dos seres vivos e também por meio da lei de finalidade (telos). O ser belo seria aquele que consegue alcançar o ápice de seu desenvolvimento natural, ou seja, sua finalidade interna. Por seu lado, as enteléquias são espécies de almas materiais dispersas no mundo. Entidades eternas que, embora presentes no corpo terreno, não se corrompem.
Se a natureza aspira às perfeição em suas obras, o artista aspiraria a uma segunda ordem de perfeição nessa segunda natureza que é a arte: captar as enteléquias e imitar a lei da finalidade. Essa ciência da natureza levou Goethe a criar uma teoria das cores baseada nas seguintes teses: a luz não é uma mistura de cores; as cores não podem gerar cores, pois as cores são uma mistura de luz e sombra; a sombra é parte da luz. E a criar também uma teoria da imagem. Os seres vivos são imagens da perfeição da natureza assim como as obras de arte são imagens da perfectibilidade da natureza humana. Essa concepção dinâmica da natureza é o que diferencia o Tempestade e Ímpeto (Sturm und Drang), do qual Goethe tomou parte, do Iluminismo francês, mais racionalista e mecanicista.
Em relação à literatura, pode-se acompanhar nas conversações e na autobiografia a gênese de algumas obras. O interesse pelo mito de Götz von Berlichingen surge ainda na adolescência e toma forma em uma obra homônima de 1773. As composições das duas partes do Fausto são pontuadas e diluídas ao longo do fluxo da vida. As reflexões sobre Lúcifer como poder criador emanado de Deus e o conceito de Segunda Queda são chaves importantes para compreender essa obra na qual Goethe trabalhou por 60 anos. A elaboração de Os Anos de Aprendizagem de Wilheim Meister pode ser cotejada com motivações biográficas e formativas do poeta. Outro tema recorrente é a violação deliberada da lei das três unidades de Aristóteles. Essa lei não é nada sem a apreensibilidade, definida por Goethe como um princípio de compreensão geral do drama que transcende o escopo da unidade de espaço, tempo e ação. Ademais, se a natureza é viva e divina, o ritmo da poesia tampouco é problema de metro, mas de atmosfera (Stimmung).
A reincidente glorificação de Shakespeare, que teria enriquecido o drama com a lei da variação, inexistente nas tragédias gregas, demonstra a centralidade do bardo na obra deste outro bardo. As remissões a Fielding, Byron e Walter Scott perfazem o leque de elogios à literatura inglesa. E oferecem um contraponto crítico importante à literatura alemã de sua época, norteada sobretudo por Klopstock. Sob o ponto de vista intelectual, dois encontros foram decisivos para a sua vida: Herder e Schiller. Ambos modificaram sua compreensão da poesia, da literatura e do drama.
As conversações e a autobiografia podem ser vistos como excelentes fios condutores da obra como um todo. Fornecem dados importantes tanto para a concepção de tragédia romântica de Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774), que projetou Goethe como um escritor conhecido em toda Europa, quanto para o pandemônio de referências do Fausto I (1806) e do Fausto II (1832), sobretudo da Noite de Valpurgis Clássica (Segundo Ato). Levantam pistas sobre a teoria animista e o pampsiquismo de As Afinidades Eletivas (1809) e sobre a inspiração persa e indiana do conjunto de poemas do Divã Oriente-Ocidente (1827). O mesmo ocorre em relação à prosa de viagem e à produção científica, como em Viagem a Itália (1813-1817), Metamorfose das Plantas (1790) e Teoria das Cores (1810).
Henrich Heine chamava Eckermann de “papagaio de Goethe”. “Este é o meu Goethe”, dizia Eckermann. Outra fonte de interesse formal destas conversações refere-se ao estatuto de Eckermann como autor-fiador da memória do amigo. Na medida do possível, cabe sempre um renovado interesse sobre o que haveria de fidedigno e de construção ficcional nessas conversas transcritas. Segundo Goethe, quanto mais inapreensível e incomensurável ao entendimento for uma obra de arte, melhor ela será. Curiosamente, essa definição de arte é idêntica à definição que ele nos oferece de demoníaco: algo que não pode ser decifrado a partir do entendimento e da razão. O demoníaco não é o oposto da natureza. Ele é o enigma da vida e do mundo. Manifesta-se nas mais variadas formas e em toda natureza, tanto no visível quanto no invisível. Poderíamos identificar nessa convergência entre a arte e o demoníaco um sinal da divina convergência entre poesia e verdade? Em caso positivo, a despeito da literalidade, as conversações com Eckermann e a autobiografia podem ser lidas como ficção. Ao passo que o Fausto seria sua verdadeira autobiografia.
*Rodrigo Petronio é escritor e filósofo, doutor em literatura comparada (Uerj) e professor titular da Faap