Poderia ser o título de um novo filme do universo cinemático da Marvel, mas O Homem Invisível é um romance basilar e uma narrativa fundadora da ficção científica, lançado em 1897 pelo inglês Herbert George Wells (1866-1946). Pioneiro, como Júlio Verne, já escrevia histórias desse gênero antes mesmo de ser concebido como tal.
O panorama da Belle Époque, de otimismo com relação à ciência, está reproduzido tanto nos sistemas sociais criados por H. G. Wells como nas ambições de suas premissas. O Homem Invisível, assim como A Máquina do Tempo (1895) e A Guerra dos Mundos (1898), externa o fascínio pelos avanços da tecnologia em verdadeiras investigações morais travestidas de simples folhetins de aventura. Wells cursou biologia na Normal School of Science, em Londres, onde teve contato com disciplinas que o auxiliaram a escrever com a erudição característica em seus livros. Durante essa época, foi aluno do cientista Thomas Henry Huxley, avô do escritor Aldous Huxley, que seguiu Wells na ficção especulativa publicando, entre outros, Admirável Mundo Novo (1932).
A invisibilidade como temática literária já havia sido abordada em contos de horror, como em The Damned Thing (1893), de Ambrose Bierce. Contudo H. G. Wells se destaca por fornecer detalhes técnicos e o embasamento teórico que o distingue de outros autores de fantasia.
Reeditado pela Zahar no ano em que a obra de H. G. Wells entra em domínio público, com tradução e comentários de Alexandre Barbosa de Souza e Rodrigo Lacerda, O Homem Invisível trata de um cientista que descobre como tornar invisíveis certos tipos de tecidos e substâncias, o que o permite também ser transformado.
O livro é calcado em uma espécie de contrato faustiano. Assim como Fausto barganha o poder com o diabo na lenda alemã, entregando a ele sua alma em troca de um grande poder, o Dr. Griffin, sem nome até mais da metade do livro, almeja o dom para se tornar impune de qualquer ato, mesmo que para obtê-lo tenha de abrir mão de sua própria identidade perante a sociedade.
Irresistível a princípio, a invisibilidade, que deveria ser o auge do cientista, revela-se a pedra fundamental de sua bancarrota. Griffin é obrigado a andar sem roupas e passar fome a fim de manter-se oculto, já que as roupas e a comida o denunciam. Depois de diversas desventuras, ele percebe que sua ambição o levou à decadência.
Sentindo-se injustiçado, Griffin questiona o próprio triunfo: quando deveria estar em seu ápice, literalmente desaparece aos olhos dos outros. Seu atributo o permite alcançar tudo o que deseja, mas ele nunca é capaz de desfrutar de suas conquistas. Invisível, o personagem esvazia-se e torna-se oco. Desiludido, Griffin se recolhe para pesquisar uma cura para sua invisibilidade, e é nesse ponto que Wells inicia o livro.
Um excluído social por definição, o protagonista se esforça para passar despercebido, usando ataduras na face e óculos escuros. Torna-se, porém, o centro das atenções de Iping, vilarejo no interior da Inglaterra. No conflito entre a discrição urbana e a hospitalidade rural, o individualismo de Griffin desperta a curiosidade dos provincianos e ele se torna mais visível que nunca.
Vítima do próprio progresso ao ceder à ciência seu próprio corpo, torna-se metáfora do ciclo de ambição e ruína que a humanidade enfrentaria com a criação da bomba e pelo qual o mundo globalizado passa hoje com as mudanças climáticas provocadas pelo irrefreável avanço da tecnologia. Essa crítica, vinda de um livro escrito antes mesmo da 1ª Guerra Mundial, é surpreendentemente visionária, assim como está à frente de sua época o estilo narrativo direto e econômico que antecipa o que viria a ser regra na literatura do século 20 após os tentos de autores como Franz Kafka e Ernest Hemingway. A influência que o livro exerceu nas décadas seguintes se faz notar pelas numerosas adaptações para o cinema, como o filme homônimo de 1933 e O Homem Sem Sombra (2000), de Paul Verhoeven, além de séries na televisão britânica e norte-americana e um personagem livremente inspirado em Griffin em A Liga Extraordinária, quadrinho de Alan Moore.
Embora escreva de maneira simples, H. G. Wells expira erudição ao incluir expressões em francês, italiano e latim sem desaguar no pedantismo. Locais, lojas, jornais e pessoas reais são referenciados para conferir mais credibilidade à narração e permitir que o tema, por mais fantasioso que seja, não impeça o leitor de imergir na história. As notas de rodapé bem colocadas na edição comentada da Zahar contextualizam a obra na Inglaterra do século 19 e até evidenciam deslizes e imprecisões do autor.
Em um mundo assolado por histórias de super-heróis com inconsequentes poderes sobre-humanos, voltar a H. G. Wells nos faz perscrutar as desvantagens de ser invisível, um desvio na sociedade, por meio de um protagonista marginal que está mais para vilão que para mocinho. Mesmo escrito há 120 anos, O Homem Invisível ainda tem muito a nos dizer sobre o preço do progresso.
É jornalista, escritor, colaborador do 'Aliás' e autor do livro 'Cela 108', da editora Multifoco
O Homem Invisível Autor: H. G. WellsTradução: Alexandre Barbosa de Souza e Rodrigo LacerdaEditora: Zahar 200 páginas R$ 49,90