Se tem um cara que plantou árvore, fez filho e principalmente escreveu livro, foi o inglês Graham Greene. Foram 25 romances, quatro livros de viagens, oito peças, dez roteiros, centenas de contos, antologias de críticas de cinema e literatura, quatro volumes de histórias infantis, diários, cartas e autobiografia. A Biblioteca Britânica lista 245 títulos do autor, cuja obra está sendo reeditada pela Biblioteca Azul, selo da editora Globo.
E ainda descolou tempo para trotar pelo mundo inteiro (vi-o uma vez, já no finzinho, tomando um Cointreau em um boteco de Vevey, na Suíça, pertinho da casa de outro formidável ancião, Charlie Chaplin, que ele visitava dia sim, dia não. Moleque, tive a decência de não importuná-lo com minhas veleidades). E foi espião, recrutado pelo MI6 durante a 2ª. Guerra – a espionagem é a moldura de alguns de seus romances, e ele conferiu pedigree literário ao subgênero. Kim Philby (agente duplo, a serviço da KGB, protagonista do mais estrondoso caso de traição da história dos serviços secretos) era chefe e amigo de Greene, que escreveu o prefácio das memórias do traidor, My Silent War. Greene foi membro do Partido Comunista Britânico (somando todos, talvez não lotassem um patinete) durante quatro semanas. Mas, por causa disso, o serviço de imigração dos EUA o deportou para Cuba, onde escreveu Nosso Homem em Havana. Talvez a cotação de Greene tenha minguado um tiquinho, pois vivemos numa época em que os hermeneutas tendem a ser ateus (não que para se apreciar a Divina Comédia ou Kierkegaard – para não falar em Bach ou Gaudí – a gente precise ser beato). E ele era católico, o que explica o tema recorrente da sua obra: a natureza esfíngica do bem e do mal. Converteu-se assim: “Comecei a acreditar no Céu porque já acreditava no Inferno”. Sim, um devoto atormentado, quase sacrílego: desde muito jovem (e por quase toda a vida, inclusive depois das sessões de psicanálise) praticou a roleta russa. Como morreu em 1991, aos 86 anos, pode ser considerado sortudo quase inexpugnável. O século 20 deixou um belo pé-de-meia de autores católicos: Chesterton, Evelyn Waugh, Robert Lowell, François Mauriac, Bernanos, Tolkien, Muriel Sparks, Paul Claudel, Flannery O’Connor, entre muitos outros. Aquelas que são para mim as três melhores obras de Greene abordam o desafio da fé, sempre de forma excruciante: O Nó da Questão, Fim de Caso e O Poder e a Glória, que se desenrola no México. Quando Greene pousou no estado de Tabasco, o México estava quicando na zona do agrião. Pouco antes, também desembarcara no pedaço Leon Trotski – o muralista Diego Rivera convencera o presidente Cardenas a conceder asilo político ao revolucionário perseguido por Stalin (o que não impediu que a mulher de Rivera, Frida Khalo, tirasse uma casquinha do pai da “revolução permanente”). Na cidade de Guernevaca, vivia – conservado em álcool – o grande escritor britânico Malcolm Lowry, que em breve encetaria o clássico À Sombra do Vulcão. Um pouco mais tarde, chegará Luis Buñuel. O gatilho da visita de Greene é estrambólico. Ele escreveu uma crítica a um filme com Shirley Temple, então de oito anos, e foi processado pela Fox. Fixou-se uma multa de 3500 libras, das quais 500 saíram do bolso do crítico, que ainda assim receou ser preso. E se mandou para o México, observando in loco a campanha institucional contra o catolicismo, com o incêndio de igrejas e o fuzilamento de sacerdotes (ao mesmo tempo que se proibia o consumo de bebidas alcoólicas). O personagem principal de O Poder e a Glória é a quintessência do anti-herói: um sacerdote bebum, todo borrado de medo. Como este crítico/professor costuma ensinar a seus alunos, o protagonista perfeito tem defeitos. E eis a astúcia de Greene, a de ser o advogado do diabo: o antagonista do padre é aparentemente mais virtuoso – um tenente da polícia que jurou eliminar o “ópio do povo”. Aliás, Greene radicalizará esse ardil em Fim de Caso, no qual o próprio narrador na primeira pessoa é blasfemo, e acabará capitulando (mas não se convertendo) perante o Todo-Poderoso. Lembra aquele epigrama de García Márquez: “Não acredito em Deus, mas tenho medo Dele.” Nem o sacerdote (um último moicano, quando todos seus pares ou fugiram ou apostasiaram) nem o tenente têm nomes próprios, mas nunca se reduzem a arquétipos conceituais ou a abstrações doutrinárias. São indivíduos concretos, não marionetes ou bonecos de ventríloquo a serviço da ideologia do autor. A primeira obrigação da literatura é contar uma boa história, jamais o proselitismo. O tenente, de um altruísmo teórico e ascético, atesta como os fins mais puros se tornam os meios mais espúrios: “Tomaria um homem em cada aldeia como refém. Se os aldeões não quisessem denunciar o padre logo que ele aparecesse, os reféns seriam fuzilados. E depois iriam buscar mais. Estava perfeitamente preparado para concretizar um massacre para o bem deles: primeiro a Igreja, depois os estrangeiros e a seguir os políticos”. Quando a missão é cumprida, a sensação é ambígua: “O tenente sentia-se melancólico, como se, agora que o último padre estava preso, nada mais restasse em que pensar. A mola da ação havia rebentado. Pensava nas semanas de perseguição como uma época feliz que findara para sempre. Sentia-se sem finalidade, como se a vida houvesse fugido do mundo.” Mas este exterminador fervilha de matizes: dá esmolas e permite que o condenado se confesse para outro prelado (um apóstata casado, que tira o corpo fora). Já o protagonista é um caleidoscópio moral, e são as deficiências que o humanizam – errar é humano. “O menino saiu da cabana e veio olhá-lo. Todos o olhavam, era como nas touradas, quando o animal está exausto e os espectadores esperam seu próximo movimento. Não tinham o coração duro. Apenas saboreavam este espetáculo pouco comum: uma miséria maior que a deles”. O padre anônimo prevaricou a ponto de gerar um filho, que abandonou junto com a mãe. Decerto também por isso, o romance foi posto no índex pelo Santo Ofício. No desfecho, rola um paralelismo oblíquo com Jesus no jardim de Getsemâni. Com a diferença de que se o sacerdote pede a Deus que afaste dele aquele cálice, também emborca a cachaça (contra a lei) que o tenente lhe oferece. São duas doutrinas antitéticas, cada uma com suas boas intenções e seus rasgos de opressão e obscurantismo. Mas o padre consegue distinguir o indivíduo do coletivo – só há existência no particular, com sua visceralidade telúrica. “O padre desmontou e desatou a rir. Começava a sentir-se feliz. É uma das mais estranhas conclusões a que um homem pode chegar: a de que a vida, seja como for que a levemos, contém momentos de alegria. Há sempre comparações que se podem fazer com tempos piores, e o pêndulo não deixa de oscilar, mesmo no perigo e na miséria.” Parafraseando a oração canônica, é por essas e outras que a literatura mostra seu poder e glória para sempre.*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)