Em 'O Silmarillion', J.R.R. Tolkien medita sobre a origem do Mal


Livro mais ambicioso do autor de 'O Senhor dos Anéis' corresponde a uma espécie de Antigo Testamento da Terra-média

Por André Cáceres

“Muitas crianças inventam, ou começam a inventar, idiomas imaginários. Tenho feito isso desde que aprendi a escrever. Mas nunca parei”, escreve J.R.R. Tolkien em uma carta de 1951 ao editor Milton Waldman, em tradução inédita incluída na nova edição de O Silmarillion (HarperCollins). Em meio à reedição das obras do autor no Brasil, seu mais ambicioso livro, que ele passou a vida escrevendo, reescrevendo e burilando, publicado apenas de maneira póstuma por seu filho Christopher, chega às prateleiras nacionais.

Aquarela de J.R.R. Tolkien ilustra a fortaleza élfica de Gondolin Foto: JRR Tolkien

Trata-se de uma reunião de contos episódicos em sucessão, formando um conjunto de lendas e mitos que corresponde a uma espécie de Antigo Testamento da Terra-média, com as histórias e canções dos “dias antigos”. O Silmarillion inicia com a gênese do mundo e narra a saga do povo élfico para recuperar as Silmarils, joias de rara beleza forjadas pelo elfo Fëanor e roubadas pela entidade maligna Melkor.

continua após a publicidade

Embora tenha um vilão bem definido, essa épica rapsódia passa longe de ser maniqueísta, como muitos acreditam que seja a obra de seu autor. Em O Silmarillion, não há mocinhos: são narrados ao menos três grandes fratricídios, um incesto e diversas traições que levam a verdadeiros genocídios. Mesmo os heróis eternizados nos versos de baladas praticam atos moralmente dúbios, como Túrin Turambar, que mata acidentalmente seu amigo e salvador Beleg e desposa a própria irmã Niënor sem conhecer sua identidade. Afinal, o verdadeiro eixo temático que ecoa por todas as páginas – e sobre o qual Tolkien se debruçou filosófica e religiosamente durante a vida inteira – é a origem do Mal, com M maiúsculo, nos corações dos personagens.

Para compreender de onde vêm essas trevas, é necessário retornar à Criação. O universo de Tolkien tem uma das mais belas cosmogonias dentre todas as mitologias e religiões humanas. No princípio, havia Ilúvatar, cujo pensamento faz surgir como rebentos outras divindades, os Ainur, a quem pede que entoem uma música. “Então, as vozes dos Ainur, tal como harpas e alaúdes, e flautas e trombetas, e violas e órgãos, e tal como incontáveis corais cantando com palavras, começaram a moldar o tema de Ilúvatar em uma grande música; e um som se levantou de intermináveis melodias cambiantes tecidas em harmonia, que passou além da audição para as profundezas e para as alturas, e os lugares da habitação de Ilúvatar se encheram até transbordar, e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e ele não era mais vazio.” No entanto, Melkor, o mais poderoso dos Ainur, começa a imaginar acordes dissonantes, e ocorre uma espécie de duelo musical entre os deuses. É a partir desse embate que o mundo é forjado.

A origem do Mal nesse descompasso sonoro se reflete no mundo palpável: os Ainur “construíram terras, e Melkor as destruiu; vales cavaram, e Melkor os ergueu; montanhas esculpiram, e Melkor as derrubou; mares encheram, e Melkor os derramou”. Corrompendo elfos e humanos com inverdades e intrigas, espalhando sementes sombrias que germinam nas mentes de suas vítimas, Melkor opera pela desinformação. “Longamente esteve a agir, e lento, a princípio, e sem fruto foi seu labor. Mas aquele que semeia mentiras no fim não há de ficar sem colheita e logo poderá descansar do trabalho, de fato, enquanto outros colhem e semeiam em seu lugar. (...) Amargamente os Noldor [uma das raças dos elfos] pagaram pela insensatez de seus ouvidos abertos nos dias que se seguiram.” É graças às fake news de Melkor que os elfos – até então habitantes pacíficosde Valinor, a ilha sagrada onde moram os Valar, como eram chamados os deuses Ainur que decidiram existir no mundo – se rebelam enfurecidos contra as divindades e partem para a Terra-média, onde juram guerrear por suas joias roubadas. Lá, encontram humanos e anões, com quem fazem e desfazem alianças contra Melkor, agora também chamado de Morgoth.

continua após a publicidade

Além do já citado maniqueísmo, outra noção equivocada sobre a obra de Tolkien que pode ser mitigada pela leitura atenta de O Silmarillion é a ideia bastante difundida de que ele não escrevia sobre personagens femininas interessantes. Ao longo das histórias, não faltam mulheres fortes e autodeterminadas, como, entre outras, Lúthien, que liberta seu amante Beren das garras de Morgoth e, com ele, rouba uma de suas Silmarils, em uma façanha inédita; Idril, cuja inteligência evita o extermínio de seu povo quando a fortaleza de Gondolin cai; e Elwing, que desbrava os mares para ir a Valinor, proibida a elfos e humanos, einterceder aos deuses por redenção para a Terra-média. Aliás, muitas dessas histórias (algumas das quais já foram lançadas em obras separadas, como Beren e Lúthien e A Queda de Gondolin) contêm elementos de tragédia grega, lendas arturianas e dramaturgia, soando como uma grande mescla de Sófocles com Shakespeare na voz de bardos medievais.

À medida que os séculos vão se passando, a linguagem se torna menos épica e mais próxima do leitor. Os humanos, mortais, começam a ter mais relevância na narrativa ao lado dos elfos, imortais. E os eventos se tornam menos divinais e mais mundanos. Isso corresponde à visão cristã de Tolkien, que se via num mundo em constante decadência: “Todas as histórias, no fim, são sobre a queda”, escreve na carta a Waldman. Talvez por isso ele medite tanto sobre nossa mortalidade, tida como uma dádiva concedida aos humanos por Ilúvatar: “O fado dos Homens depois da morte, quiçá, não está nas mãos dos Valar, nem foi de todo previsto na Música dos Ainur.”

“Muitas crianças inventam, ou começam a inventar, idiomas imaginários. Tenho feito isso desde que aprendi a escrever. Mas nunca parei”, escreve J.R.R. Tolkien em uma carta de 1951 ao editor Milton Waldman, em tradução inédita incluída na nova edição de O Silmarillion (HarperCollins). Em meio à reedição das obras do autor no Brasil, seu mais ambicioso livro, que ele passou a vida escrevendo, reescrevendo e burilando, publicado apenas de maneira póstuma por seu filho Christopher, chega às prateleiras nacionais.

Aquarela de J.R.R. Tolkien ilustra a fortaleza élfica de Gondolin Foto: JRR Tolkien

Trata-se de uma reunião de contos episódicos em sucessão, formando um conjunto de lendas e mitos que corresponde a uma espécie de Antigo Testamento da Terra-média, com as histórias e canções dos “dias antigos”. O Silmarillion inicia com a gênese do mundo e narra a saga do povo élfico para recuperar as Silmarils, joias de rara beleza forjadas pelo elfo Fëanor e roubadas pela entidade maligna Melkor.

Embora tenha um vilão bem definido, essa épica rapsódia passa longe de ser maniqueísta, como muitos acreditam que seja a obra de seu autor. Em O Silmarillion, não há mocinhos: são narrados ao menos três grandes fratricídios, um incesto e diversas traições que levam a verdadeiros genocídios. Mesmo os heróis eternizados nos versos de baladas praticam atos moralmente dúbios, como Túrin Turambar, que mata acidentalmente seu amigo e salvador Beleg e desposa a própria irmã Niënor sem conhecer sua identidade. Afinal, o verdadeiro eixo temático que ecoa por todas as páginas – e sobre o qual Tolkien se debruçou filosófica e religiosamente durante a vida inteira – é a origem do Mal, com M maiúsculo, nos corações dos personagens.

Para compreender de onde vêm essas trevas, é necessário retornar à Criação. O universo de Tolkien tem uma das mais belas cosmogonias dentre todas as mitologias e religiões humanas. No princípio, havia Ilúvatar, cujo pensamento faz surgir como rebentos outras divindades, os Ainur, a quem pede que entoem uma música. “Então, as vozes dos Ainur, tal como harpas e alaúdes, e flautas e trombetas, e violas e órgãos, e tal como incontáveis corais cantando com palavras, começaram a moldar o tema de Ilúvatar em uma grande música; e um som se levantou de intermináveis melodias cambiantes tecidas em harmonia, que passou além da audição para as profundezas e para as alturas, e os lugares da habitação de Ilúvatar se encheram até transbordar, e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e ele não era mais vazio.” No entanto, Melkor, o mais poderoso dos Ainur, começa a imaginar acordes dissonantes, e ocorre uma espécie de duelo musical entre os deuses. É a partir desse embate que o mundo é forjado.

A origem do Mal nesse descompasso sonoro se reflete no mundo palpável: os Ainur “construíram terras, e Melkor as destruiu; vales cavaram, e Melkor os ergueu; montanhas esculpiram, e Melkor as derrubou; mares encheram, e Melkor os derramou”. Corrompendo elfos e humanos com inverdades e intrigas, espalhando sementes sombrias que germinam nas mentes de suas vítimas, Melkor opera pela desinformação. “Longamente esteve a agir, e lento, a princípio, e sem fruto foi seu labor. Mas aquele que semeia mentiras no fim não há de ficar sem colheita e logo poderá descansar do trabalho, de fato, enquanto outros colhem e semeiam em seu lugar. (...) Amargamente os Noldor [uma das raças dos elfos] pagaram pela insensatez de seus ouvidos abertos nos dias que se seguiram.” É graças às fake news de Melkor que os elfos – até então habitantes pacíficosde Valinor, a ilha sagrada onde moram os Valar, como eram chamados os deuses Ainur que decidiram existir no mundo – se rebelam enfurecidos contra as divindades e partem para a Terra-média, onde juram guerrear por suas joias roubadas. Lá, encontram humanos e anões, com quem fazem e desfazem alianças contra Melkor, agora também chamado de Morgoth.

Além do já citado maniqueísmo, outra noção equivocada sobre a obra de Tolkien que pode ser mitigada pela leitura atenta de O Silmarillion é a ideia bastante difundida de que ele não escrevia sobre personagens femininas interessantes. Ao longo das histórias, não faltam mulheres fortes e autodeterminadas, como, entre outras, Lúthien, que liberta seu amante Beren das garras de Morgoth e, com ele, rouba uma de suas Silmarils, em uma façanha inédita; Idril, cuja inteligência evita o extermínio de seu povo quando a fortaleza de Gondolin cai; e Elwing, que desbrava os mares para ir a Valinor, proibida a elfos e humanos, einterceder aos deuses por redenção para a Terra-média. Aliás, muitas dessas histórias (algumas das quais já foram lançadas em obras separadas, como Beren e Lúthien e A Queda de Gondolin) contêm elementos de tragédia grega, lendas arturianas e dramaturgia, soando como uma grande mescla de Sófocles com Shakespeare na voz de bardos medievais.

À medida que os séculos vão se passando, a linguagem se torna menos épica e mais próxima do leitor. Os humanos, mortais, começam a ter mais relevância na narrativa ao lado dos elfos, imortais. E os eventos se tornam menos divinais e mais mundanos. Isso corresponde à visão cristã de Tolkien, que se via num mundo em constante decadência: “Todas as histórias, no fim, são sobre a queda”, escreve na carta a Waldman. Talvez por isso ele medite tanto sobre nossa mortalidade, tida como uma dádiva concedida aos humanos por Ilúvatar: “O fado dos Homens depois da morte, quiçá, não está nas mãos dos Valar, nem foi de todo previsto na Música dos Ainur.”

“Muitas crianças inventam, ou começam a inventar, idiomas imaginários. Tenho feito isso desde que aprendi a escrever. Mas nunca parei”, escreve J.R.R. Tolkien em uma carta de 1951 ao editor Milton Waldman, em tradução inédita incluída na nova edição de O Silmarillion (HarperCollins). Em meio à reedição das obras do autor no Brasil, seu mais ambicioso livro, que ele passou a vida escrevendo, reescrevendo e burilando, publicado apenas de maneira póstuma por seu filho Christopher, chega às prateleiras nacionais.

Aquarela de J.R.R. Tolkien ilustra a fortaleza élfica de Gondolin Foto: JRR Tolkien

Trata-se de uma reunião de contos episódicos em sucessão, formando um conjunto de lendas e mitos que corresponde a uma espécie de Antigo Testamento da Terra-média, com as histórias e canções dos “dias antigos”. O Silmarillion inicia com a gênese do mundo e narra a saga do povo élfico para recuperar as Silmarils, joias de rara beleza forjadas pelo elfo Fëanor e roubadas pela entidade maligna Melkor.

Embora tenha um vilão bem definido, essa épica rapsódia passa longe de ser maniqueísta, como muitos acreditam que seja a obra de seu autor. Em O Silmarillion, não há mocinhos: são narrados ao menos três grandes fratricídios, um incesto e diversas traições que levam a verdadeiros genocídios. Mesmo os heróis eternizados nos versos de baladas praticam atos moralmente dúbios, como Túrin Turambar, que mata acidentalmente seu amigo e salvador Beleg e desposa a própria irmã Niënor sem conhecer sua identidade. Afinal, o verdadeiro eixo temático que ecoa por todas as páginas – e sobre o qual Tolkien se debruçou filosófica e religiosamente durante a vida inteira – é a origem do Mal, com M maiúsculo, nos corações dos personagens.

Para compreender de onde vêm essas trevas, é necessário retornar à Criação. O universo de Tolkien tem uma das mais belas cosmogonias dentre todas as mitologias e religiões humanas. No princípio, havia Ilúvatar, cujo pensamento faz surgir como rebentos outras divindades, os Ainur, a quem pede que entoem uma música. “Então, as vozes dos Ainur, tal como harpas e alaúdes, e flautas e trombetas, e violas e órgãos, e tal como incontáveis corais cantando com palavras, começaram a moldar o tema de Ilúvatar em uma grande música; e um som se levantou de intermináveis melodias cambiantes tecidas em harmonia, que passou além da audição para as profundezas e para as alturas, e os lugares da habitação de Ilúvatar se encheram até transbordar, e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e ele não era mais vazio.” No entanto, Melkor, o mais poderoso dos Ainur, começa a imaginar acordes dissonantes, e ocorre uma espécie de duelo musical entre os deuses. É a partir desse embate que o mundo é forjado.

A origem do Mal nesse descompasso sonoro se reflete no mundo palpável: os Ainur “construíram terras, e Melkor as destruiu; vales cavaram, e Melkor os ergueu; montanhas esculpiram, e Melkor as derrubou; mares encheram, e Melkor os derramou”. Corrompendo elfos e humanos com inverdades e intrigas, espalhando sementes sombrias que germinam nas mentes de suas vítimas, Melkor opera pela desinformação. “Longamente esteve a agir, e lento, a princípio, e sem fruto foi seu labor. Mas aquele que semeia mentiras no fim não há de ficar sem colheita e logo poderá descansar do trabalho, de fato, enquanto outros colhem e semeiam em seu lugar. (...) Amargamente os Noldor [uma das raças dos elfos] pagaram pela insensatez de seus ouvidos abertos nos dias que se seguiram.” É graças às fake news de Melkor que os elfos – até então habitantes pacíficosde Valinor, a ilha sagrada onde moram os Valar, como eram chamados os deuses Ainur que decidiram existir no mundo – se rebelam enfurecidos contra as divindades e partem para a Terra-média, onde juram guerrear por suas joias roubadas. Lá, encontram humanos e anões, com quem fazem e desfazem alianças contra Melkor, agora também chamado de Morgoth.

Além do já citado maniqueísmo, outra noção equivocada sobre a obra de Tolkien que pode ser mitigada pela leitura atenta de O Silmarillion é a ideia bastante difundida de que ele não escrevia sobre personagens femininas interessantes. Ao longo das histórias, não faltam mulheres fortes e autodeterminadas, como, entre outras, Lúthien, que liberta seu amante Beren das garras de Morgoth e, com ele, rouba uma de suas Silmarils, em uma façanha inédita; Idril, cuja inteligência evita o extermínio de seu povo quando a fortaleza de Gondolin cai; e Elwing, que desbrava os mares para ir a Valinor, proibida a elfos e humanos, einterceder aos deuses por redenção para a Terra-média. Aliás, muitas dessas histórias (algumas das quais já foram lançadas em obras separadas, como Beren e Lúthien e A Queda de Gondolin) contêm elementos de tragédia grega, lendas arturianas e dramaturgia, soando como uma grande mescla de Sófocles com Shakespeare na voz de bardos medievais.

À medida que os séculos vão se passando, a linguagem se torna menos épica e mais próxima do leitor. Os humanos, mortais, começam a ter mais relevância na narrativa ao lado dos elfos, imortais. E os eventos se tornam menos divinais e mais mundanos. Isso corresponde à visão cristã de Tolkien, que se via num mundo em constante decadência: “Todas as histórias, no fim, são sobre a queda”, escreve na carta a Waldman. Talvez por isso ele medite tanto sobre nossa mortalidade, tida como uma dádiva concedida aos humanos por Ilúvatar: “O fado dos Homens depois da morte, quiçá, não está nas mãos dos Valar, nem foi de todo previsto na Música dos Ainur.”

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.