'Em uma sociedade totalitária, tudo fica sem rosto', diz Roger Scruton


Filósofo e escritor conservador veio ao Brasil para lançar seus novos livros

Por Eduardo Wolf
Atualização:

Quando Sir Roger Scruton chegou para nossa conversa, não era fácil distinguir se seu cansaço se devia às conferências já proferidas nos dias anteriores ou às reiteradas entrevistas concedidas. As perguntas eram basicamente as mesmas: a direita populista, Donald Trump, Bolsonaro. Cansa. Enquanto nos acomodávamos, pergunto se a tendência de jornalistas a indagarem convidados estrangeiros sobre matéria local – Bolsonaro, neste caso – era usual em outros países. “É comum, sim, mas está pior agora. É como se ficassem à espera do que eu possa dizer para servir de ultraje a um ou outro grupo”. 

Filósofo conservador popular, autor de mais de 50 obras, muitas das quais tratando expressamente do conservadorismo, é de se esperar que Sir Roger seja requisitado a opinar sobre os temas correntes da política que interessam à vida pública. O que não deixa de ser um desperdício: com vasta obra dedicada à estética, compositor (inclusive de óperas) e romancista, seus interesses intelectuais mais vivazes passam longe de governos e governantes: “Meu coração está na dimensão estética do Ser. Sempre esteve”. Esta entrevista, parceria do Estado da Arte com o Spotniks, bem o comprova. 

O filósofo conservador inglês Roger Scruton Foto: JOHN LAWRENCE/THE TELEGRAPH
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Há um momento muito bonito em seu romance As Memórias de Underground em que os personagens se apaixonam, e o Sr. descreve o modo como eles olham um para o outro e se percebem como pessoas. Esse é um tema frequente em seus trabalhos filosóficos, seja em Sexual Desire, um livro dos anos 80, seja em O Rosto de Deus, que é recente. Como foi a experiência de escrever literariamente sobre temas que o Sr. trabalha filosoficamente em sua obra? Roger Scruton: Excelente pergunta. Quando falamos do modo pelo qual as pessoas subitamente se veem transfiguradas na visão do amor, não estamos falando de algo diferente daquilo que elas estão vendo, mas sim que elas estão vendo [as mesmas coisas] de um modo novo. Os amantes podem olhar para os olhos um do outro, para o rosto um do outro, e os animais também podem fazer isso. Mas os amantes podem, além disso, olhar nos olhos um do outro, o que não quer dizer que estejam olhando para alguma outra coisa. Este modo de olhar é como se fosse um chamado ao outro para que apareça e transfigure o mundo. Essa experiência foi muito importante para mim, quando estava escrevendo esse livro, porque eu estava escrevendo sobre a experiência da sociedade totalitária [o livro se passa na Praga comunista], na qual, deliberadamente, tudo fica sem rosto – não apenas as pessoas, mas também as coisas, as paisagens, as casas, as ocupações das pessoas. Tudo é tornado impessoal, uma forma de controle, e exatamente por essa razão, quando a luz de um outro self brilha através dessa impessoalidade, ela porta um esplendor particular, mais forte do que qualquer coisa que se poderia encontrar em uma sociedade livre como a nossa. 

Como o Sr. se envolveu com o chamado “underground”, o ambiente de resistência aos regimes comunistas no Leste Europeu nos anos 1980, como foi o caso da extinta Checoslováquia, onde se passa o romance? Roger Scruton: Ah, uma colega pediu-me, pois ela tinha alguns amigos que se encontravam em seminários privados em Praga. Pediu-me para ir até lá falar com eles em uma dessas atividades. Também fui convidado para ir à Polônia por essa mesma época. Então eu fiz essa viagem, e fiquei chocado com o que encontrei, a sensação de desolação, e, no caso tcheco, a perseguição a meus colegas [professores, intelectuais], que tinham sido escorraçados de seus trabalhos e ganhavam vida varrendo as ruas, coisas assim. E com tudo isso, ainda queriam se reunir, debater ideias. Assim, passamos a nos encontrar – outros fizeram o mesmo que eu –, tentar ajudá-los.

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Muito de sua obra sobre política parece-me depender de considerações éticas e estéticas, que seriam mais fundamentais, e não o contrário, apesar de suas obras políticas serem mais populares. O Sr. concorda com isso? Roger Scruton: Com certeza. Meu coração está na dimensão estética do Ser. Sempre esteve. Meu interesse por Filosofia nasceu disso. A filosofia política nunca foi o meu verdadeiro interesse. Um colega de esquerda me pediu para escrever The Meaning of Conservatism (no Brasil, O que é Conservadorismo) porque ele estava coordenando uma coleção de livros sobre filosofia política e não conhecia ninguém que pudesse escrever sobre o assunto, então eu o escrevi. Foi um erro (risos), porque eu acabei preso a essa coisa toda de ser identificado como um intelectual conservador. E é claro que eu sou um conservador, mas meu coração está na literatura, está em tentar compreender o mundo. A política é apenas uma parte disso. 

Este ano, o Sr. sofreu um vil ataque da revista New Statesman, que, em uma entrevista fraudulenta, atribuiu ao Sr. declarações e opiniões que, depois se comprovou, não eram suas. O Partido Conservador, no entanto, demitiu-o de uma posição (não-remunerada) na comissão Building Better, Building Beautiful, tudo em função da fúria da turba digital em redes como o Twitter. Como esse episódio serve de testemunho de nossa época? Roger Scruton: Em primeiro lugar, dá testemunho de que os Conservadores, não importa o poder político que tenham, têm muito medo da esquerda. Eles ficam apavorados com esses “crimes de pensamento” sem sentido que podem ser atribuídos a eles. Eles não sabem como lidar com isso, então ficam assim. Segundo, o Partido Conservador, no Reino Unido, perdeu todo o sentido daquilo que ele defende: a presunção de inocência, seus compromissos para com o seu mais importante intelectual – se alguém como eu importa tão pouco para o Partido Conservador, em que medida você pode supor que ele de tenha alguma doutrina conservadora? Considero esse um episódio ilustrativo da perda de identidade do Partido Conservador. Não fui eu que precipitei isso, mas toda essa coisa em torno do Brexit, já que o Partido Conservador ficou sem liderança em um momento crucial em que mais precisava. 

Eu queria evitar o assunto Brexit... Roger Scruton: Sim, sim, por favor, evite-o!

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Mas eu preciso lhe perguntar isto: seu livro mais recente se chama Conservadorismo – um convite à tradição, e quero saber qual é o apelo de uma convocatória ao público para que leia Richard Hooker, Adam Smith ou Edmund Burke em uma época de turbas ensandecidas no Twitter? Roger Scruton: (Risos). Lamento dizer que não há muito apelo para as pessoas que passam sua vida no Twitter. (Risos). Sempre foi o caso que o nível intelectual de discussão restringe-se a uns poucos indivíduos que, por uma razão ou outra, se interessam por essas questões. E eu escrevo para essas pessoas. Eu não sou um político, não estou comprometido com a política [em seu sentido] prático. Estou engajado, entretanto, na tarefa de definir certas ideias que os políticos prático podem usar. Talvez exista alguém que possa, digamos, escrever uma versão para o Twitter de meu livro Filosofia Verde – mas eu não vou fazer isso. E nós todos entendemos, tanto as pessoas de esquerda quanto os conservadores, que as mídias sociais tiveram um imenso e amplamente negativo impacto na habilidade das pessoas para compreenderem argumentos, ou para se engajarem de maneira polida em discussões com quem tem visões divergentes. E todos lamentamos isso. Mas nós não temos um muro para nos separar do grande caldeirão de malícia em que a grande maioria vive. Algumas pessoas nem mesmo querem este muro, como o presidente Donald Trump, que está muito feliz em contribuir com essa malícia urinando nesse caldeirão ao seu modo particular. 

*EDUARDO WOLF É DOUTOR EM FILOSOFIA PELA USP E PROFESSOR DO LABORATÓRIO DE POLÍTICA, MÍDIA E COMPORTAMENTO DA PUC-SP/FUNDASP. É EDITOR DO ‘ESTADO DA ARTE’

Quando Sir Roger Scruton chegou para nossa conversa, não era fácil distinguir se seu cansaço se devia às conferências já proferidas nos dias anteriores ou às reiteradas entrevistas concedidas. As perguntas eram basicamente as mesmas: a direita populista, Donald Trump, Bolsonaro. Cansa. Enquanto nos acomodávamos, pergunto se a tendência de jornalistas a indagarem convidados estrangeiros sobre matéria local – Bolsonaro, neste caso – era usual em outros países. “É comum, sim, mas está pior agora. É como se ficassem à espera do que eu possa dizer para servir de ultraje a um ou outro grupo”. 

Filósofo conservador popular, autor de mais de 50 obras, muitas das quais tratando expressamente do conservadorismo, é de se esperar que Sir Roger seja requisitado a opinar sobre os temas correntes da política que interessam à vida pública. O que não deixa de ser um desperdício: com vasta obra dedicada à estética, compositor (inclusive de óperas) e romancista, seus interesses intelectuais mais vivazes passam longe de governos e governantes: “Meu coração está na dimensão estética do Ser. Sempre esteve”. Esta entrevista, parceria do Estado da Arte com o Spotniks, bem o comprova. 

O filósofo conservador inglês Roger Scruton Foto: JOHN LAWRENCE/THE TELEGRAPH

Há um momento muito bonito em seu romance As Memórias de Underground em que os personagens se apaixonam, e o Sr. descreve o modo como eles olham um para o outro e se percebem como pessoas. Esse é um tema frequente em seus trabalhos filosóficos, seja em Sexual Desire, um livro dos anos 80, seja em O Rosto de Deus, que é recente. Como foi a experiência de escrever literariamente sobre temas que o Sr. trabalha filosoficamente em sua obra? Roger Scruton: Excelente pergunta. Quando falamos do modo pelo qual as pessoas subitamente se veem transfiguradas na visão do amor, não estamos falando de algo diferente daquilo que elas estão vendo, mas sim que elas estão vendo [as mesmas coisas] de um modo novo. Os amantes podem olhar para os olhos um do outro, para o rosto um do outro, e os animais também podem fazer isso. Mas os amantes podem, além disso, olhar nos olhos um do outro, o que não quer dizer que estejam olhando para alguma outra coisa. Este modo de olhar é como se fosse um chamado ao outro para que apareça e transfigure o mundo. Essa experiência foi muito importante para mim, quando estava escrevendo esse livro, porque eu estava escrevendo sobre a experiência da sociedade totalitária [o livro se passa na Praga comunista], na qual, deliberadamente, tudo fica sem rosto – não apenas as pessoas, mas também as coisas, as paisagens, as casas, as ocupações das pessoas. Tudo é tornado impessoal, uma forma de controle, e exatamente por essa razão, quando a luz de um outro self brilha através dessa impessoalidade, ela porta um esplendor particular, mais forte do que qualquer coisa que se poderia encontrar em uma sociedade livre como a nossa. 

Como o Sr. se envolveu com o chamado “underground”, o ambiente de resistência aos regimes comunistas no Leste Europeu nos anos 1980, como foi o caso da extinta Checoslováquia, onde se passa o romance? Roger Scruton: Ah, uma colega pediu-me, pois ela tinha alguns amigos que se encontravam em seminários privados em Praga. Pediu-me para ir até lá falar com eles em uma dessas atividades. Também fui convidado para ir à Polônia por essa mesma época. Então eu fiz essa viagem, e fiquei chocado com o que encontrei, a sensação de desolação, e, no caso tcheco, a perseguição a meus colegas [professores, intelectuais], que tinham sido escorraçados de seus trabalhos e ganhavam vida varrendo as ruas, coisas assim. E com tudo isso, ainda queriam se reunir, debater ideias. Assim, passamos a nos encontrar – outros fizeram o mesmo que eu –, tentar ajudá-los.

Muito de sua obra sobre política parece-me depender de considerações éticas e estéticas, que seriam mais fundamentais, e não o contrário, apesar de suas obras políticas serem mais populares. O Sr. concorda com isso? Roger Scruton: Com certeza. Meu coração está na dimensão estética do Ser. Sempre esteve. Meu interesse por Filosofia nasceu disso. A filosofia política nunca foi o meu verdadeiro interesse. Um colega de esquerda me pediu para escrever The Meaning of Conservatism (no Brasil, O que é Conservadorismo) porque ele estava coordenando uma coleção de livros sobre filosofia política e não conhecia ninguém que pudesse escrever sobre o assunto, então eu o escrevi. Foi um erro (risos), porque eu acabei preso a essa coisa toda de ser identificado como um intelectual conservador. E é claro que eu sou um conservador, mas meu coração está na literatura, está em tentar compreender o mundo. A política é apenas uma parte disso. 

Este ano, o Sr. sofreu um vil ataque da revista New Statesman, que, em uma entrevista fraudulenta, atribuiu ao Sr. declarações e opiniões que, depois se comprovou, não eram suas. O Partido Conservador, no entanto, demitiu-o de uma posição (não-remunerada) na comissão Building Better, Building Beautiful, tudo em função da fúria da turba digital em redes como o Twitter. Como esse episódio serve de testemunho de nossa época? Roger Scruton: Em primeiro lugar, dá testemunho de que os Conservadores, não importa o poder político que tenham, têm muito medo da esquerda. Eles ficam apavorados com esses “crimes de pensamento” sem sentido que podem ser atribuídos a eles. Eles não sabem como lidar com isso, então ficam assim. Segundo, o Partido Conservador, no Reino Unido, perdeu todo o sentido daquilo que ele defende: a presunção de inocência, seus compromissos para com o seu mais importante intelectual – se alguém como eu importa tão pouco para o Partido Conservador, em que medida você pode supor que ele de tenha alguma doutrina conservadora? Considero esse um episódio ilustrativo da perda de identidade do Partido Conservador. Não fui eu que precipitei isso, mas toda essa coisa em torno do Brexit, já que o Partido Conservador ficou sem liderança em um momento crucial em que mais precisava. 

Eu queria evitar o assunto Brexit... Roger Scruton: Sim, sim, por favor, evite-o!

Mas eu preciso lhe perguntar isto: seu livro mais recente se chama Conservadorismo – um convite à tradição, e quero saber qual é o apelo de uma convocatória ao público para que leia Richard Hooker, Adam Smith ou Edmund Burke em uma época de turbas ensandecidas no Twitter? Roger Scruton: (Risos). Lamento dizer que não há muito apelo para as pessoas que passam sua vida no Twitter. (Risos). Sempre foi o caso que o nível intelectual de discussão restringe-se a uns poucos indivíduos que, por uma razão ou outra, se interessam por essas questões. E eu escrevo para essas pessoas. Eu não sou um político, não estou comprometido com a política [em seu sentido] prático. Estou engajado, entretanto, na tarefa de definir certas ideias que os políticos prático podem usar. Talvez exista alguém que possa, digamos, escrever uma versão para o Twitter de meu livro Filosofia Verde – mas eu não vou fazer isso. E nós todos entendemos, tanto as pessoas de esquerda quanto os conservadores, que as mídias sociais tiveram um imenso e amplamente negativo impacto na habilidade das pessoas para compreenderem argumentos, ou para se engajarem de maneira polida em discussões com quem tem visões divergentes. E todos lamentamos isso. Mas nós não temos um muro para nos separar do grande caldeirão de malícia em que a grande maioria vive. Algumas pessoas nem mesmo querem este muro, como o presidente Donald Trump, que está muito feliz em contribuir com essa malícia urinando nesse caldeirão ao seu modo particular. 

*EDUARDO WOLF É DOUTOR EM FILOSOFIA PELA USP E PROFESSOR DO LABORATÓRIO DE POLÍTICA, MÍDIA E COMPORTAMENTO DA PUC-SP/FUNDASP. É EDITOR DO ‘ESTADO DA ARTE’

Quando Sir Roger Scruton chegou para nossa conversa, não era fácil distinguir se seu cansaço se devia às conferências já proferidas nos dias anteriores ou às reiteradas entrevistas concedidas. As perguntas eram basicamente as mesmas: a direita populista, Donald Trump, Bolsonaro. Cansa. Enquanto nos acomodávamos, pergunto se a tendência de jornalistas a indagarem convidados estrangeiros sobre matéria local – Bolsonaro, neste caso – era usual em outros países. “É comum, sim, mas está pior agora. É como se ficassem à espera do que eu possa dizer para servir de ultraje a um ou outro grupo”. 

Filósofo conservador popular, autor de mais de 50 obras, muitas das quais tratando expressamente do conservadorismo, é de se esperar que Sir Roger seja requisitado a opinar sobre os temas correntes da política que interessam à vida pública. O que não deixa de ser um desperdício: com vasta obra dedicada à estética, compositor (inclusive de óperas) e romancista, seus interesses intelectuais mais vivazes passam longe de governos e governantes: “Meu coração está na dimensão estética do Ser. Sempre esteve”. Esta entrevista, parceria do Estado da Arte com o Spotniks, bem o comprova. 

O filósofo conservador inglês Roger Scruton Foto: JOHN LAWRENCE/THE TELEGRAPH

Há um momento muito bonito em seu romance As Memórias de Underground em que os personagens se apaixonam, e o Sr. descreve o modo como eles olham um para o outro e se percebem como pessoas. Esse é um tema frequente em seus trabalhos filosóficos, seja em Sexual Desire, um livro dos anos 80, seja em O Rosto de Deus, que é recente. Como foi a experiência de escrever literariamente sobre temas que o Sr. trabalha filosoficamente em sua obra? Roger Scruton: Excelente pergunta. Quando falamos do modo pelo qual as pessoas subitamente se veem transfiguradas na visão do amor, não estamos falando de algo diferente daquilo que elas estão vendo, mas sim que elas estão vendo [as mesmas coisas] de um modo novo. Os amantes podem olhar para os olhos um do outro, para o rosto um do outro, e os animais também podem fazer isso. Mas os amantes podem, além disso, olhar nos olhos um do outro, o que não quer dizer que estejam olhando para alguma outra coisa. Este modo de olhar é como se fosse um chamado ao outro para que apareça e transfigure o mundo. Essa experiência foi muito importante para mim, quando estava escrevendo esse livro, porque eu estava escrevendo sobre a experiência da sociedade totalitária [o livro se passa na Praga comunista], na qual, deliberadamente, tudo fica sem rosto – não apenas as pessoas, mas também as coisas, as paisagens, as casas, as ocupações das pessoas. Tudo é tornado impessoal, uma forma de controle, e exatamente por essa razão, quando a luz de um outro self brilha através dessa impessoalidade, ela porta um esplendor particular, mais forte do que qualquer coisa que se poderia encontrar em uma sociedade livre como a nossa. 

Como o Sr. se envolveu com o chamado “underground”, o ambiente de resistência aos regimes comunistas no Leste Europeu nos anos 1980, como foi o caso da extinta Checoslováquia, onde se passa o romance? Roger Scruton: Ah, uma colega pediu-me, pois ela tinha alguns amigos que se encontravam em seminários privados em Praga. Pediu-me para ir até lá falar com eles em uma dessas atividades. Também fui convidado para ir à Polônia por essa mesma época. Então eu fiz essa viagem, e fiquei chocado com o que encontrei, a sensação de desolação, e, no caso tcheco, a perseguição a meus colegas [professores, intelectuais], que tinham sido escorraçados de seus trabalhos e ganhavam vida varrendo as ruas, coisas assim. E com tudo isso, ainda queriam se reunir, debater ideias. Assim, passamos a nos encontrar – outros fizeram o mesmo que eu –, tentar ajudá-los.

Muito de sua obra sobre política parece-me depender de considerações éticas e estéticas, que seriam mais fundamentais, e não o contrário, apesar de suas obras políticas serem mais populares. O Sr. concorda com isso? Roger Scruton: Com certeza. Meu coração está na dimensão estética do Ser. Sempre esteve. Meu interesse por Filosofia nasceu disso. A filosofia política nunca foi o meu verdadeiro interesse. Um colega de esquerda me pediu para escrever The Meaning of Conservatism (no Brasil, O que é Conservadorismo) porque ele estava coordenando uma coleção de livros sobre filosofia política e não conhecia ninguém que pudesse escrever sobre o assunto, então eu o escrevi. Foi um erro (risos), porque eu acabei preso a essa coisa toda de ser identificado como um intelectual conservador. E é claro que eu sou um conservador, mas meu coração está na literatura, está em tentar compreender o mundo. A política é apenas uma parte disso. 

Este ano, o Sr. sofreu um vil ataque da revista New Statesman, que, em uma entrevista fraudulenta, atribuiu ao Sr. declarações e opiniões que, depois se comprovou, não eram suas. O Partido Conservador, no entanto, demitiu-o de uma posição (não-remunerada) na comissão Building Better, Building Beautiful, tudo em função da fúria da turba digital em redes como o Twitter. Como esse episódio serve de testemunho de nossa época? Roger Scruton: Em primeiro lugar, dá testemunho de que os Conservadores, não importa o poder político que tenham, têm muito medo da esquerda. Eles ficam apavorados com esses “crimes de pensamento” sem sentido que podem ser atribuídos a eles. Eles não sabem como lidar com isso, então ficam assim. Segundo, o Partido Conservador, no Reino Unido, perdeu todo o sentido daquilo que ele defende: a presunção de inocência, seus compromissos para com o seu mais importante intelectual – se alguém como eu importa tão pouco para o Partido Conservador, em que medida você pode supor que ele de tenha alguma doutrina conservadora? Considero esse um episódio ilustrativo da perda de identidade do Partido Conservador. Não fui eu que precipitei isso, mas toda essa coisa em torno do Brexit, já que o Partido Conservador ficou sem liderança em um momento crucial em que mais precisava. 

Eu queria evitar o assunto Brexit... Roger Scruton: Sim, sim, por favor, evite-o!

Mas eu preciso lhe perguntar isto: seu livro mais recente se chama Conservadorismo – um convite à tradição, e quero saber qual é o apelo de uma convocatória ao público para que leia Richard Hooker, Adam Smith ou Edmund Burke em uma época de turbas ensandecidas no Twitter? Roger Scruton: (Risos). Lamento dizer que não há muito apelo para as pessoas que passam sua vida no Twitter. (Risos). Sempre foi o caso que o nível intelectual de discussão restringe-se a uns poucos indivíduos que, por uma razão ou outra, se interessam por essas questões. E eu escrevo para essas pessoas. Eu não sou um político, não estou comprometido com a política [em seu sentido] prático. Estou engajado, entretanto, na tarefa de definir certas ideias que os políticos prático podem usar. Talvez exista alguém que possa, digamos, escrever uma versão para o Twitter de meu livro Filosofia Verde – mas eu não vou fazer isso. E nós todos entendemos, tanto as pessoas de esquerda quanto os conservadores, que as mídias sociais tiveram um imenso e amplamente negativo impacto na habilidade das pessoas para compreenderem argumentos, ou para se engajarem de maneira polida em discussões com quem tem visões divergentes. E todos lamentamos isso. Mas nós não temos um muro para nos separar do grande caldeirão de malícia em que a grande maioria vive. Algumas pessoas nem mesmo querem este muro, como o presidente Donald Trump, que está muito feliz em contribuir com essa malícia urinando nesse caldeirão ao seu modo particular. 

*EDUARDO WOLF É DOUTOR EM FILOSOFIA PELA USP E PROFESSOR DO LABORATÓRIO DE POLÍTICA, MÍDIA E COMPORTAMENTO DA PUC-SP/FUNDASP. É EDITOR DO ‘ESTADO DA ARTE’

Quando Sir Roger Scruton chegou para nossa conversa, não era fácil distinguir se seu cansaço se devia às conferências já proferidas nos dias anteriores ou às reiteradas entrevistas concedidas. As perguntas eram basicamente as mesmas: a direita populista, Donald Trump, Bolsonaro. Cansa. Enquanto nos acomodávamos, pergunto se a tendência de jornalistas a indagarem convidados estrangeiros sobre matéria local – Bolsonaro, neste caso – era usual em outros países. “É comum, sim, mas está pior agora. É como se ficassem à espera do que eu possa dizer para servir de ultraje a um ou outro grupo”. 

Filósofo conservador popular, autor de mais de 50 obras, muitas das quais tratando expressamente do conservadorismo, é de se esperar que Sir Roger seja requisitado a opinar sobre os temas correntes da política que interessam à vida pública. O que não deixa de ser um desperdício: com vasta obra dedicada à estética, compositor (inclusive de óperas) e romancista, seus interesses intelectuais mais vivazes passam longe de governos e governantes: “Meu coração está na dimensão estética do Ser. Sempre esteve”. Esta entrevista, parceria do Estado da Arte com o Spotniks, bem o comprova. 

O filósofo conservador inglês Roger Scruton Foto: JOHN LAWRENCE/THE TELEGRAPH

Há um momento muito bonito em seu romance As Memórias de Underground em que os personagens se apaixonam, e o Sr. descreve o modo como eles olham um para o outro e se percebem como pessoas. Esse é um tema frequente em seus trabalhos filosóficos, seja em Sexual Desire, um livro dos anos 80, seja em O Rosto de Deus, que é recente. Como foi a experiência de escrever literariamente sobre temas que o Sr. trabalha filosoficamente em sua obra? Roger Scruton: Excelente pergunta. Quando falamos do modo pelo qual as pessoas subitamente se veem transfiguradas na visão do amor, não estamos falando de algo diferente daquilo que elas estão vendo, mas sim que elas estão vendo [as mesmas coisas] de um modo novo. Os amantes podem olhar para os olhos um do outro, para o rosto um do outro, e os animais também podem fazer isso. Mas os amantes podem, além disso, olhar nos olhos um do outro, o que não quer dizer que estejam olhando para alguma outra coisa. Este modo de olhar é como se fosse um chamado ao outro para que apareça e transfigure o mundo. Essa experiência foi muito importante para mim, quando estava escrevendo esse livro, porque eu estava escrevendo sobre a experiência da sociedade totalitária [o livro se passa na Praga comunista], na qual, deliberadamente, tudo fica sem rosto – não apenas as pessoas, mas também as coisas, as paisagens, as casas, as ocupações das pessoas. Tudo é tornado impessoal, uma forma de controle, e exatamente por essa razão, quando a luz de um outro self brilha através dessa impessoalidade, ela porta um esplendor particular, mais forte do que qualquer coisa que se poderia encontrar em uma sociedade livre como a nossa. 

Como o Sr. se envolveu com o chamado “underground”, o ambiente de resistência aos regimes comunistas no Leste Europeu nos anos 1980, como foi o caso da extinta Checoslováquia, onde se passa o romance? Roger Scruton: Ah, uma colega pediu-me, pois ela tinha alguns amigos que se encontravam em seminários privados em Praga. Pediu-me para ir até lá falar com eles em uma dessas atividades. Também fui convidado para ir à Polônia por essa mesma época. Então eu fiz essa viagem, e fiquei chocado com o que encontrei, a sensação de desolação, e, no caso tcheco, a perseguição a meus colegas [professores, intelectuais], que tinham sido escorraçados de seus trabalhos e ganhavam vida varrendo as ruas, coisas assim. E com tudo isso, ainda queriam se reunir, debater ideias. Assim, passamos a nos encontrar – outros fizeram o mesmo que eu –, tentar ajudá-los.

Muito de sua obra sobre política parece-me depender de considerações éticas e estéticas, que seriam mais fundamentais, e não o contrário, apesar de suas obras políticas serem mais populares. O Sr. concorda com isso? Roger Scruton: Com certeza. Meu coração está na dimensão estética do Ser. Sempre esteve. Meu interesse por Filosofia nasceu disso. A filosofia política nunca foi o meu verdadeiro interesse. Um colega de esquerda me pediu para escrever The Meaning of Conservatism (no Brasil, O que é Conservadorismo) porque ele estava coordenando uma coleção de livros sobre filosofia política e não conhecia ninguém que pudesse escrever sobre o assunto, então eu o escrevi. Foi um erro (risos), porque eu acabei preso a essa coisa toda de ser identificado como um intelectual conservador. E é claro que eu sou um conservador, mas meu coração está na literatura, está em tentar compreender o mundo. A política é apenas uma parte disso. 

Este ano, o Sr. sofreu um vil ataque da revista New Statesman, que, em uma entrevista fraudulenta, atribuiu ao Sr. declarações e opiniões que, depois se comprovou, não eram suas. O Partido Conservador, no entanto, demitiu-o de uma posição (não-remunerada) na comissão Building Better, Building Beautiful, tudo em função da fúria da turba digital em redes como o Twitter. Como esse episódio serve de testemunho de nossa época? Roger Scruton: Em primeiro lugar, dá testemunho de que os Conservadores, não importa o poder político que tenham, têm muito medo da esquerda. Eles ficam apavorados com esses “crimes de pensamento” sem sentido que podem ser atribuídos a eles. Eles não sabem como lidar com isso, então ficam assim. Segundo, o Partido Conservador, no Reino Unido, perdeu todo o sentido daquilo que ele defende: a presunção de inocência, seus compromissos para com o seu mais importante intelectual – se alguém como eu importa tão pouco para o Partido Conservador, em que medida você pode supor que ele de tenha alguma doutrina conservadora? Considero esse um episódio ilustrativo da perda de identidade do Partido Conservador. Não fui eu que precipitei isso, mas toda essa coisa em torno do Brexit, já que o Partido Conservador ficou sem liderança em um momento crucial em que mais precisava. 

Eu queria evitar o assunto Brexit... Roger Scruton: Sim, sim, por favor, evite-o!

Mas eu preciso lhe perguntar isto: seu livro mais recente se chama Conservadorismo – um convite à tradição, e quero saber qual é o apelo de uma convocatória ao público para que leia Richard Hooker, Adam Smith ou Edmund Burke em uma época de turbas ensandecidas no Twitter? Roger Scruton: (Risos). Lamento dizer que não há muito apelo para as pessoas que passam sua vida no Twitter. (Risos). Sempre foi o caso que o nível intelectual de discussão restringe-se a uns poucos indivíduos que, por uma razão ou outra, se interessam por essas questões. E eu escrevo para essas pessoas. Eu não sou um político, não estou comprometido com a política [em seu sentido] prático. Estou engajado, entretanto, na tarefa de definir certas ideias que os políticos prático podem usar. Talvez exista alguém que possa, digamos, escrever uma versão para o Twitter de meu livro Filosofia Verde – mas eu não vou fazer isso. E nós todos entendemos, tanto as pessoas de esquerda quanto os conservadores, que as mídias sociais tiveram um imenso e amplamente negativo impacto na habilidade das pessoas para compreenderem argumentos, ou para se engajarem de maneira polida em discussões com quem tem visões divergentes. E todos lamentamos isso. Mas nós não temos um muro para nos separar do grande caldeirão de malícia em que a grande maioria vive. Algumas pessoas nem mesmo querem este muro, como o presidente Donald Trump, que está muito feliz em contribuir com essa malícia urinando nesse caldeirão ao seu modo particular. 

*EDUARDO WOLF É DOUTOR EM FILOSOFIA PELA USP E PROFESSOR DO LABORATÓRIO DE POLÍTICA, MÍDIA E COMPORTAMENTO DA PUC-SP/FUNDASP. É EDITOR DO ‘ESTADO DA ARTE’

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