O presidente sofre de dendrofobia crônica, mas só há dias conhecemos a extensão do mal. Em público e diante das câmeras de TV, ele soltou um “porra de árvore” que nem em seus mais intempestivos arroubos de rude franqueza o general João Figueiredo, o ditador distensionista, soltaria.
Ignoro os motivos mais recônditos desse ódio às árvores do atual presidente militar e seu desprezo pelos órgãos e pessoas que tentam protegê-las, mas creio que seus assessores deveriam aconselhá-lo a conter o ódio e maneirar no desprezo, ao menos em respeito ao pau-brasil, origem de nossa identidade definitiva e nosso primeiro produto de exportação.
Enquanto o presidente vociferava contra a preservação da floresta amazônica, o cacique Raoni, e em prol de mineradoras e madeireiras, seu vice pontificava, na internet, sobre o Brasil dos tempos coloniais.
Millôr dizia, com razão, que “a ociosidade é a mãe de todos os vices”. O atual general Mourão (o anterior, prenome Olímpio, vulgo “Vaca Fardada”, morreu no auge do regime militar) não gosta de ficar desocupado, conversando com os botões de seu pijama. Quando não tem o que fazer, nem sequer esquentar a cadeira presidencial e sofrer bullying de Moe, Curly e Larry Bolsonaro, ele arruma um jeito de mostrar que tem mais preparo que o seu superior hierárquico.
Mourão 2.0 estava em seu Estado natal, Rio Grande do Sul, quando, em agosto do ano passado, semanas antes de ser solenemente mimoseado com um simbólico relho pelo prefeito de Bagé, Divaldo Lara, posteriormente afastado do cargo por corrupção, apresentou seu intelecto à nação, divagando sobre o nosso “cadinho cultural”. Não causou boa impressão.
O general repetiu as mesmas bolorentas ideias a respeito da “indolência” dos índios e a “malandragem” dos negros, recicladas das teses preconceituosas, algumas até racistas, de Nina Rodrigues, Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e outros intérpretes do caráter nacional brasileiro, já devidamente repertoriadas e depreciadas por Dante Moreira Leite, Carlos Guilherme Motta e outros estudiosos do assunto.
No último fim de semana, enquanto o presidente dava asas à sua dendrofobia, o vice postava em rede social uma ode aos 487 anos das capitanias hereditárias, criadas em 1532 pelo rei de Portugal D. João 3º. Se o general não nos lembra da efeméride, ela passaria em branco até pelo Peninha (a.k.a. Eduardo Bueno).
Por que não esperou mais 13 anos para celebrar, como é de praxe, uma data redonda, os 500 anos das capitanias? Talvez porque o governo se sinta assaz necessitado de pintar como tradicionais certas iniquidades do presente.
Em meus tempos de estudante, o Tratado de Tordesilhas e as subsequentes Capitanias Hereditárias compunham um dos pontos mais enfadonhos, se não o mais desinteressante, da História do Brasil. Talvez porque mal ensinado ou só abordado em tom ufanista, como a aurora de algo formidável para a formação e a riqueza do país. Ou seja, à maneira como o general tratou as Capitanias em sua postagem, puro oba-oba do expansionismo português, com uma visão acrítica do feudalismo tropical implantado, ao longo de três anos, em 15 big sesmarias da costa brasileira.
Gente rica e de confiança da Corte lusa presenteada com um latifúndio, para dele tomar conta, consolidando o domínio lusitano em terras brasileiras, e desenvolvê-lo economicamente, comercializando pau-brasil e açúcar –era esse o esquema das capitanias. Seus donatários recebiam também amplos poderes de jurisdição, cobrança de impostos e outros privilégios administrativos e fiscais. O sistema, mais arcaico que moderno, já funcionava desde meados do século 14 nas ilhas atlânticas.
Na visão do general Mourão, com a criação das capitanias, “o País nascia pelo empreendedorismo, que o faria um dos maiores do mundo”. Que eu saiba, o que concretamente nasceu com as capitanias, estabelecidas e mantidas com violência e práticas escravocratas e etnocidas, foram as nossas oligarquias rurais.
Historiadores contestaram Mourão nas redes sociais. Particularmente incomodado com a justificativa final do general (“É hora de resgatar o melhor de nossas origens”), Thiago Krause, professor de História Colonial do Brasil na Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), comentou, em sua página no Twitter, que as capitanias, à exceção de São Vicente e Pernambuco, foram um fracasso em termos econômicos, em parte por descaso e incompetência dos donatários, mas sobretudo pela resistência indígena às tentativas iniciais de escravidão.
Não pegou bem o general exaltar escravocratas, chamar bandeirantes assassinos de “nossos colaboradores”, fazer “rebranding” de senhores de engenho, alçados à categoria de “mestres do açúcar” e não dar uma palavra sobre negros e silvícolas explorados na lavoura e outros afazeres. Empreendedorismo em lombo alheio –e de graça – não deveria servir de exemplo a nenhum país.
“Não deixa de ser coerente que esse governo ache isso bom, né?”, ironizou o professor Krause. O mais irônico comentário sobre a aula de história do general saiu na coluna de segunda-feira de Gregório Duvivier, na Folha de S.Paulo: “Platão escreveu sobre militares que, escondidos num grotão, só têm acesso ao mundo através de uma fresta de luz –o mito da caserna.”
Duvido que o presidente entenda a boutade sem uma explicação do vice – que, aliás, também deveria estar lá para isso.