Entenda como a Guerra Fria dividiu intelectuais


Sociólogo Marcelo Ridenti analisa em livro como os governos conseguiram adesão de figuras importantes da cultura

Por João Marcos Coelho
Atualização:

A guerra Rússia-Ucrânia e as provocações norte-americanas à China tornam atualíssimo o recém-lançado livro O Segredo das Senhoras Americanas – Intelectuais, Internacionalização e Financiamento na Guerra Fria Cultural, do sociólogo Marcelo Ridenti, professor na Unicamp. A polarização provocada pela selva das redes sociais acrescenta a pitada final neste indigesto contexto contemporâneo global. Global foi, aliás, o impacto da Guerra Fria entre EUA e URSS, as superpotências, do pós-2ª Guerra ao desaparecimento da segunda, no limiar dos anos 1990. Nenhum país passou ao largo dessa batalha. O mote, de ambos os lados, era ganhar corações e mentes. Ridenti concentra-se nas duas décadas iniciais e mais “quentes” deste embate e mostra como ele incluiu brasileiros ilustres, como Jorge Amado e Mário Pedrosa. A palavra “intelectuais” do título inclui não apenas estudantes e professores universitários mas também artistas. Mostra como atuaram e lidaram com a polarização que os empurrava ora para a direita, ora para a esquerda. A hipótese central: vários intelectuais brasileiros, do lado norte-americano e do lado soviético, “participaram ativamente da disputa das grandes potências, apesar de não estarem a par de todos os fatos e de não dominarem todas as regras do jogo”. Ridenti alerta que “não se pode dizer que seriam inocentes úteis; foram usados pelas potências e suas instituições. Contudo, também souberam intervir e atuar pessoal e coletivamente, sem necessariamente se definir por um dos lados na contenda, criticando-os e também negociando com eles”.

Os presidentes John Kennedy (EUA) e Nikita Khruchev (URSS) se tornaram símbolos da luta ideológica, como na clássica colagem acima, que correu o mundo Foto: Editora Unesp

Abaixo, trechos da entrevista ao Aliás.O seu livro traz à tona fatos que passaram até hoje meio que desapercebidos no meio artístico e intelectual brasileiro. Aqui nunca se “lavou a roupa suja” cultural deste período. Por quais razões? Como o palco principal da Guerra Fria cultural foi a Europa no fim dos anos 1940 e início dos 1950, os brasileiros mais ativos nesses embates foram aqueles que circulavam pelo velho continente. Caso do comunista Jorge Amado, que foi dirigente do CMP (Partido Comunista Marxista), e do esquerdista Mário Pedrosa, amigo de líderes internacionais do CLC [Liberdade Cultural]. O CLC colocava-se como defensor da liberdade de criação contra os totalitarismos de direita e de esquerda, agrupando intelectuais conservadores, liberais, socialistas democráticos, até mesmo alguns ex-trotskistas e anarquistas. E isso teria impacto na sua relação ambígua com a ditadura militar brasileira. Depois da revolução cubana, a América Latina entrou no centro da Guerra Fria. O CLC inicialmente apoiou Fidel Castro na luta contra a ditadura de Batista, mas logo se voltou contra ele. No Brasil, financiou a revista cultural Cadernos Brasileiros, que publicou 62 números de 1959 até seu fechamento em 1970. A revista era plural e teve várias fases, apoiou discretamente o golpe de 1964, mas depois passou a dar espaço crescente a intelectuais de diversas correntes de esquerda. Nela escreveram de Golbery do Couto e Silva a Florestan Fernandes, de Gustavo Corção a Abdias do Nascimento. Por sua vez, a Associação Universitária Interamericana (AUI) – dirigida por senhoras do círculo empresarial multinacional paulista – dava oportunidade a estudantes de conhecer gratuitamente a Universidade Harvard e o modo de vida americano. A programação incluía encontros com os irmãos Kennedy, Henry Kissinger e outros expoentes. Mais de 800 foram contemplados, em sua maioria esquerdistas. Muitos deles viriam a ocupar lugares de destaque na sociedade. Em suma, as aproximações e distanciamentos nos meios intelectualizados foram diversificados nas distintas conjunturas políticas ao longo dos anos 1950 e 1960, com alianças inesperadas em âmbito nacional e internacional, algo que nem sempre é agradável lembrar.Há uma diferença essencial entre o projeto cultural norte-americano e o soviético. O primeiro foi secretamente financiado pela CIA; o segundo tinha apoio escancarado da URSS. O apoio franco da URSS a Jorge Amado e outros intelectuais e artistas brasileiros (entre eles, o compositor Cláudio Santoro, por exemplo) sempre foi de conhecimento público. Já o projeto norte-americano permaneceu na sombra até 1966. No Brasil, parece que este apoio foi menos secreto. No caso das “senhoras americanas”, elas não escondiam o apoio dos EUA. Além dos três casos analisados no seu livro, há outros sobre os quais você se deparou em sua pesquisa e permanecem mal explicados? É preciso evitar reduzir em equações simples o tema do financiamento internacional à cultura na Guerra Fria, como se tudo se explicasse pelas ações encobertas das grandes potências, e o trabalho de pesquisa devesse restringir-se a descobrir quem as financiou. Conhecer esse aspecto é fundamental, mas não suficiente; cabe analisar o contexto e verificar como o patrocínio se articulava com os sujeitos, que não eram meras marionetes ou inocentes úteis. Investigar, por exemplo, as aproximações e distanciamentos entre o governo dos EUA e fundações como a Ford e a Rockefeller, que têm sua lógica própria e se diferenciam de organizações de fachada da CIA, como foi o caso das fundações Farfield e Hoblitzelle. Ainda estão por ser esclarecidos casos como a ação mais recente do governo norte-americano e de instituições paralelas no financiamento de embates na política brasileira, como as manifestações de 2013, a operação Lava-Jato e o impeachment de Dilma Rousseff. Isso não significa reduzir a ação política a emanações do exterior, mas elas devem ser consideradas.

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O professor e sociólogo Marcelo Ridenti em 2014 Foto: Denise Andrade/Estadão

Houve uma estratégia diferente dos EUA em relação à América Latina? O financiamento dos EUA ao Brasil na era Roosevelt estava no contexto da 2ª Guerra Mundial, de luta contra o eixo nazifascista. A União Soviética não era inimiga, mas aliada. Algo que mudou rapidamente com o advento da Guerra Fria. Passou a ser essencial ganhar corações e mentes na luta contra o comunismo, sobretudo após a revolução cubana, que seduzia o meio intelectual na América Latina. Nesse sentido, intercâmbios culturais passaram a ser incentivados, não necessariamente ligados ao anticomunismo. E eram respondidos pelo lado comunista. O contexto abria oportunidades inéditas de internacionalização que foram aproveitadas por intelectuais e artistas. Eles mobilizaram recursos e apoios dos dois lados na Guerra Fria, sem necessariamente optar por um deles. Havia um jogo complexo de reciprocidade que não só viabilizava a projeção local e internacional dos beneficiários da chancela soviética ou norte-americana, mas também reforçava a legitimidade política e simbólica dos patrocinadores. Ou seja, eles participaram ativamente da disputa das grandes potências, apesar de não dominarem todas as regras do jogo nem conhecerem alguns segredos sobre financiamento, como os expostos no livro. Havia uma relação intrincada com custos e benefícios para todos os agentes envolvidos – fossem pesquisadores, artistas, estudantes ou instituições –, o que implicava ainda uma dimensão ideológica ou utópica que não se reduzia ao cálculo racional.Houve mediação dos governos militares durante a ditadura facilitando os projetos norte-americanos por aqui? Durante os governos militares, houve várias iniciativas de intercâmbio cultural e científico com os Estados Unidos. Os acordos MEC-Usaid, entre 1965 e 1968, são um exemplo. Isso não quer dizer que os governos dos dois países estivessem sempre em acordo, ainda que empenhados na luta anticomunista e no desenvolvimento capitalista associado. A ditadura militar não avalizava automaticamente tudo que vinha de instituições daquele país. Por exemplo, não era de seu agrado o incentivo da Fundação Ford ao estudo dos movimentos sociais a partir do fim dos aos 1970, nem sua ênfase na questão dos direitos humanos. Bem antes disso, o desinteresse do governo Nixon nos Estados Unidos e da ditadura Medici no Brasil contribuíram para o fim do financiamento a iniciativas ilustradas como a revista Cadernos Brasileiros e a AUI. Não se trata de fazer julgamento moral ou de qualquer ordem sobre os sujeitos financiados, mas de compreender sua inserção no contexto da Guerra Fria, a transitar entre o paraíso dos círculos de poder e o inferno reservado aos inimigos. Eles negociavam sua posição naquelas circunstâncias, equilibrando-se na corda bamba para realizar seus projetos de integração, mudança ou revolução. 

O Segredo das Senhoras Americanas – Intelectuais, Internacionalização e Financiamento na Guerra Fria Cultural

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Marcelo Ridenti 

Editora Unesp 

421 páginas 

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R$ 89

A guerra Rússia-Ucrânia e as provocações norte-americanas à China tornam atualíssimo o recém-lançado livro O Segredo das Senhoras Americanas – Intelectuais, Internacionalização e Financiamento na Guerra Fria Cultural, do sociólogo Marcelo Ridenti, professor na Unicamp. A polarização provocada pela selva das redes sociais acrescenta a pitada final neste indigesto contexto contemporâneo global. Global foi, aliás, o impacto da Guerra Fria entre EUA e URSS, as superpotências, do pós-2ª Guerra ao desaparecimento da segunda, no limiar dos anos 1990. Nenhum país passou ao largo dessa batalha. O mote, de ambos os lados, era ganhar corações e mentes. Ridenti concentra-se nas duas décadas iniciais e mais “quentes” deste embate e mostra como ele incluiu brasileiros ilustres, como Jorge Amado e Mário Pedrosa. A palavra “intelectuais” do título inclui não apenas estudantes e professores universitários mas também artistas. Mostra como atuaram e lidaram com a polarização que os empurrava ora para a direita, ora para a esquerda. A hipótese central: vários intelectuais brasileiros, do lado norte-americano e do lado soviético, “participaram ativamente da disputa das grandes potências, apesar de não estarem a par de todos os fatos e de não dominarem todas as regras do jogo”. Ridenti alerta que “não se pode dizer que seriam inocentes úteis; foram usados pelas potências e suas instituições. Contudo, também souberam intervir e atuar pessoal e coletivamente, sem necessariamente se definir por um dos lados na contenda, criticando-os e também negociando com eles”.

Os presidentes John Kennedy (EUA) e Nikita Khruchev (URSS) se tornaram símbolos da luta ideológica, como na clássica colagem acima, que correu o mundo Foto: Editora Unesp

Abaixo, trechos da entrevista ao Aliás.O seu livro traz à tona fatos que passaram até hoje meio que desapercebidos no meio artístico e intelectual brasileiro. Aqui nunca se “lavou a roupa suja” cultural deste período. Por quais razões? Como o palco principal da Guerra Fria cultural foi a Europa no fim dos anos 1940 e início dos 1950, os brasileiros mais ativos nesses embates foram aqueles que circulavam pelo velho continente. Caso do comunista Jorge Amado, que foi dirigente do CMP (Partido Comunista Marxista), e do esquerdista Mário Pedrosa, amigo de líderes internacionais do CLC [Liberdade Cultural]. O CLC colocava-se como defensor da liberdade de criação contra os totalitarismos de direita e de esquerda, agrupando intelectuais conservadores, liberais, socialistas democráticos, até mesmo alguns ex-trotskistas e anarquistas. E isso teria impacto na sua relação ambígua com a ditadura militar brasileira. Depois da revolução cubana, a América Latina entrou no centro da Guerra Fria. O CLC inicialmente apoiou Fidel Castro na luta contra a ditadura de Batista, mas logo se voltou contra ele. No Brasil, financiou a revista cultural Cadernos Brasileiros, que publicou 62 números de 1959 até seu fechamento em 1970. A revista era plural e teve várias fases, apoiou discretamente o golpe de 1964, mas depois passou a dar espaço crescente a intelectuais de diversas correntes de esquerda. Nela escreveram de Golbery do Couto e Silva a Florestan Fernandes, de Gustavo Corção a Abdias do Nascimento. Por sua vez, a Associação Universitária Interamericana (AUI) – dirigida por senhoras do círculo empresarial multinacional paulista – dava oportunidade a estudantes de conhecer gratuitamente a Universidade Harvard e o modo de vida americano. A programação incluía encontros com os irmãos Kennedy, Henry Kissinger e outros expoentes. Mais de 800 foram contemplados, em sua maioria esquerdistas. Muitos deles viriam a ocupar lugares de destaque na sociedade. Em suma, as aproximações e distanciamentos nos meios intelectualizados foram diversificados nas distintas conjunturas políticas ao longo dos anos 1950 e 1960, com alianças inesperadas em âmbito nacional e internacional, algo que nem sempre é agradável lembrar.Há uma diferença essencial entre o projeto cultural norte-americano e o soviético. O primeiro foi secretamente financiado pela CIA; o segundo tinha apoio escancarado da URSS. O apoio franco da URSS a Jorge Amado e outros intelectuais e artistas brasileiros (entre eles, o compositor Cláudio Santoro, por exemplo) sempre foi de conhecimento público. Já o projeto norte-americano permaneceu na sombra até 1966. No Brasil, parece que este apoio foi menos secreto. No caso das “senhoras americanas”, elas não escondiam o apoio dos EUA. Além dos três casos analisados no seu livro, há outros sobre os quais você se deparou em sua pesquisa e permanecem mal explicados? É preciso evitar reduzir em equações simples o tema do financiamento internacional à cultura na Guerra Fria, como se tudo se explicasse pelas ações encobertas das grandes potências, e o trabalho de pesquisa devesse restringir-se a descobrir quem as financiou. Conhecer esse aspecto é fundamental, mas não suficiente; cabe analisar o contexto e verificar como o patrocínio se articulava com os sujeitos, que não eram meras marionetes ou inocentes úteis. Investigar, por exemplo, as aproximações e distanciamentos entre o governo dos EUA e fundações como a Ford e a Rockefeller, que têm sua lógica própria e se diferenciam de organizações de fachada da CIA, como foi o caso das fundações Farfield e Hoblitzelle. Ainda estão por ser esclarecidos casos como a ação mais recente do governo norte-americano e de instituições paralelas no financiamento de embates na política brasileira, como as manifestações de 2013, a operação Lava-Jato e o impeachment de Dilma Rousseff. Isso não significa reduzir a ação política a emanações do exterior, mas elas devem ser consideradas.

O professor e sociólogo Marcelo Ridenti em 2014 Foto: Denise Andrade/Estadão

Houve uma estratégia diferente dos EUA em relação à América Latina? O financiamento dos EUA ao Brasil na era Roosevelt estava no contexto da 2ª Guerra Mundial, de luta contra o eixo nazifascista. A União Soviética não era inimiga, mas aliada. Algo que mudou rapidamente com o advento da Guerra Fria. Passou a ser essencial ganhar corações e mentes na luta contra o comunismo, sobretudo após a revolução cubana, que seduzia o meio intelectual na América Latina. Nesse sentido, intercâmbios culturais passaram a ser incentivados, não necessariamente ligados ao anticomunismo. E eram respondidos pelo lado comunista. O contexto abria oportunidades inéditas de internacionalização que foram aproveitadas por intelectuais e artistas. Eles mobilizaram recursos e apoios dos dois lados na Guerra Fria, sem necessariamente optar por um deles. Havia um jogo complexo de reciprocidade que não só viabilizava a projeção local e internacional dos beneficiários da chancela soviética ou norte-americana, mas também reforçava a legitimidade política e simbólica dos patrocinadores. Ou seja, eles participaram ativamente da disputa das grandes potências, apesar de não dominarem todas as regras do jogo nem conhecerem alguns segredos sobre financiamento, como os expostos no livro. Havia uma relação intrincada com custos e benefícios para todos os agentes envolvidos – fossem pesquisadores, artistas, estudantes ou instituições –, o que implicava ainda uma dimensão ideológica ou utópica que não se reduzia ao cálculo racional.Houve mediação dos governos militares durante a ditadura facilitando os projetos norte-americanos por aqui? Durante os governos militares, houve várias iniciativas de intercâmbio cultural e científico com os Estados Unidos. Os acordos MEC-Usaid, entre 1965 e 1968, são um exemplo. Isso não quer dizer que os governos dos dois países estivessem sempre em acordo, ainda que empenhados na luta anticomunista e no desenvolvimento capitalista associado. A ditadura militar não avalizava automaticamente tudo que vinha de instituições daquele país. Por exemplo, não era de seu agrado o incentivo da Fundação Ford ao estudo dos movimentos sociais a partir do fim dos aos 1970, nem sua ênfase na questão dos direitos humanos. Bem antes disso, o desinteresse do governo Nixon nos Estados Unidos e da ditadura Medici no Brasil contribuíram para o fim do financiamento a iniciativas ilustradas como a revista Cadernos Brasileiros e a AUI. Não se trata de fazer julgamento moral ou de qualquer ordem sobre os sujeitos financiados, mas de compreender sua inserção no contexto da Guerra Fria, a transitar entre o paraíso dos círculos de poder e o inferno reservado aos inimigos. Eles negociavam sua posição naquelas circunstâncias, equilibrando-se na corda bamba para realizar seus projetos de integração, mudança ou revolução. 

O Segredo das Senhoras Americanas – Intelectuais, Internacionalização e Financiamento na Guerra Fria Cultural

Marcelo Ridenti 

Editora Unesp 

421 páginas 

R$ 89

A guerra Rússia-Ucrânia e as provocações norte-americanas à China tornam atualíssimo o recém-lançado livro O Segredo das Senhoras Americanas – Intelectuais, Internacionalização e Financiamento na Guerra Fria Cultural, do sociólogo Marcelo Ridenti, professor na Unicamp. A polarização provocada pela selva das redes sociais acrescenta a pitada final neste indigesto contexto contemporâneo global. Global foi, aliás, o impacto da Guerra Fria entre EUA e URSS, as superpotências, do pós-2ª Guerra ao desaparecimento da segunda, no limiar dos anos 1990. Nenhum país passou ao largo dessa batalha. O mote, de ambos os lados, era ganhar corações e mentes. Ridenti concentra-se nas duas décadas iniciais e mais “quentes” deste embate e mostra como ele incluiu brasileiros ilustres, como Jorge Amado e Mário Pedrosa. A palavra “intelectuais” do título inclui não apenas estudantes e professores universitários mas também artistas. Mostra como atuaram e lidaram com a polarização que os empurrava ora para a direita, ora para a esquerda. A hipótese central: vários intelectuais brasileiros, do lado norte-americano e do lado soviético, “participaram ativamente da disputa das grandes potências, apesar de não estarem a par de todos os fatos e de não dominarem todas as regras do jogo”. Ridenti alerta que “não se pode dizer que seriam inocentes úteis; foram usados pelas potências e suas instituições. Contudo, também souberam intervir e atuar pessoal e coletivamente, sem necessariamente se definir por um dos lados na contenda, criticando-os e também negociando com eles”.

Os presidentes John Kennedy (EUA) e Nikita Khruchev (URSS) se tornaram símbolos da luta ideológica, como na clássica colagem acima, que correu o mundo Foto: Editora Unesp

Abaixo, trechos da entrevista ao Aliás.O seu livro traz à tona fatos que passaram até hoje meio que desapercebidos no meio artístico e intelectual brasileiro. Aqui nunca se “lavou a roupa suja” cultural deste período. Por quais razões? Como o palco principal da Guerra Fria cultural foi a Europa no fim dos anos 1940 e início dos 1950, os brasileiros mais ativos nesses embates foram aqueles que circulavam pelo velho continente. Caso do comunista Jorge Amado, que foi dirigente do CMP (Partido Comunista Marxista), e do esquerdista Mário Pedrosa, amigo de líderes internacionais do CLC [Liberdade Cultural]. O CLC colocava-se como defensor da liberdade de criação contra os totalitarismos de direita e de esquerda, agrupando intelectuais conservadores, liberais, socialistas democráticos, até mesmo alguns ex-trotskistas e anarquistas. E isso teria impacto na sua relação ambígua com a ditadura militar brasileira. Depois da revolução cubana, a América Latina entrou no centro da Guerra Fria. O CLC inicialmente apoiou Fidel Castro na luta contra a ditadura de Batista, mas logo se voltou contra ele. No Brasil, financiou a revista cultural Cadernos Brasileiros, que publicou 62 números de 1959 até seu fechamento em 1970. A revista era plural e teve várias fases, apoiou discretamente o golpe de 1964, mas depois passou a dar espaço crescente a intelectuais de diversas correntes de esquerda. Nela escreveram de Golbery do Couto e Silva a Florestan Fernandes, de Gustavo Corção a Abdias do Nascimento. Por sua vez, a Associação Universitária Interamericana (AUI) – dirigida por senhoras do círculo empresarial multinacional paulista – dava oportunidade a estudantes de conhecer gratuitamente a Universidade Harvard e o modo de vida americano. A programação incluía encontros com os irmãos Kennedy, Henry Kissinger e outros expoentes. Mais de 800 foram contemplados, em sua maioria esquerdistas. Muitos deles viriam a ocupar lugares de destaque na sociedade. Em suma, as aproximações e distanciamentos nos meios intelectualizados foram diversificados nas distintas conjunturas políticas ao longo dos anos 1950 e 1960, com alianças inesperadas em âmbito nacional e internacional, algo que nem sempre é agradável lembrar.Há uma diferença essencial entre o projeto cultural norte-americano e o soviético. O primeiro foi secretamente financiado pela CIA; o segundo tinha apoio escancarado da URSS. O apoio franco da URSS a Jorge Amado e outros intelectuais e artistas brasileiros (entre eles, o compositor Cláudio Santoro, por exemplo) sempre foi de conhecimento público. Já o projeto norte-americano permaneceu na sombra até 1966. No Brasil, parece que este apoio foi menos secreto. No caso das “senhoras americanas”, elas não escondiam o apoio dos EUA. Além dos três casos analisados no seu livro, há outros sobre os quais você se deparou em sua pesquisa e permanecem mal explicados? É preciso evitar reduzir em equações simples o tema do financiamento internacional à cultura na Guerra Fria, como se tudo se explicasse pelas ações encobertas das grandes potências, e o trabalho de pesquisa devesse restringir-se a descobrir quem as financiou. Conhecer esse aspecto é fundamental, mas não suficiente; cabe analisar o contexto e verificar como o patrocínio se articulava com os sujeitos, que não eram meras marionetes ou inocentes úteis. Investigar, por exemplo, as aproximações e distanciamentos entre o governo dos EUA e fundações como a Ford e a Rockefeller, que têm sua lógica própria e se diferenciam de organizações de fachada da CIA, como foi o caso das fundações Farfield e Hoblitzelle. Ainda estão por ser esclarecidos casos como a ação mais recente do governo norte-americano e de instituições paralelas no financiamento de embates na política brasileira, como as manifestações de 2013, a operação Lava-Jato e o impeachment de Dilma Rousseff. Isso não significa reduzir a ação política a emanações do exterior, mas elas devem ser consideradas.

O professor e sociólogo Marcelo Ridenti em 2014 Foto: Denise Andrade/Estadão

Houve uma estratégia diferente dos EUA em relação à América Latina? O financiamento dos EUA ao Brasil na era Roosevelt estava no contexto da 2ª Guerra Mundial, de luta contra o eixo nazifascista. A União Soviética não era inimiga, mas aliada. Algo que mudou rapidamente com o advento da Guerra Fria. Passou a ser essencial ganhar corações e mentes na luta contra o comunismo, sobretudo após a revolução cubana, que seduzia o meio intelectual na América Latina. Nesse sentido, intercâmbios culturais passaram a ser incentivados, não necessariamente ligados ao anticomunismo. E eram respondidos pelo lado comunista. O contexto abria oportunidades inéditas de internacionalização que foram aproveitadas por intelectuais e artistas. Eles mobilizaram recursos e apoios dos dois lados na Guerra Fria, sem necessariamente optar por um deles. Havia um jogo complexo de reciprocidade que não só viabilizava a projeção local e internacional dos beneficiários da chancela soviética ou norte-americana, mas também reforçava a legitimidade política e simbólica dos patrocinadores. Ou seja, eles participaram ativamente da disputa das grandes potências, apesar de não dominarem todas as regras do jogo nem conhecerem alguns segredos sobre financiamento, como os expostos no livro. Havia uma relação intrincada com custos e benefícios para todos os agentes envolvidos – fossem pesquisadores, artistas, estudantes ou instituições –, o que implicava ainda uma dimensão ideológica ou utópica que não se reduzia ao cálculo racional.Houve mediação dos governos militares durante a ditadura facilitando os projetos norte-americanos por aqui? Durante os governos militares, houve várias iniciativas de intercâmbio cultural e científico com os Estados Unidos. Os acordos MEC-Usaid, entre 1965 e 1968, são um exemplo. Isso não quer dizer que os governos dos dois países estivessem sempre em acordo, ainda que empenhados na luta anticomunista e no desenvolvimento capitalista associado. A ditadura militar não avalizava automaticamente tudo que vinha de instituições daquele país. Por exemplo, não era de seu agrado o incentivo da Fundação Ford ao estudo dos movimentos sociais a partir do fim dos aos 1970, nem sua ênfase na questão dos direitos humanos. Bem antes disso, o desinteresse do governo Nixon nos Estados Unidos e da ditadura Medici no Brasil contribuíram para o fim do financiamento a iniciativas ilustradas como a revista Cadernos Brasileiros e a AUI. Não se trata de fazer julgamento moral ou de qualquer ordem sobre os sujeitos financiados, mas de compreender sua inserção no contexto da Guerra Fria, a transitar entre o paraíso dos círculos de poder e o inferno reservado aos inimigos. Eles negociavam sua posição naquelas circunstâncias, equilibrando-se na corda bamba para realizar seus projetos de integração, mudança ou revolução. 

O Segredo das Senhoras Americanas – Intelectuais, Internacionalização e Financiamento na Guerra Fria Cultural

Marcelo Ridenti 

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