Entenda como o antissemitismo, em alta, reúne radicais de todas as direções políticas


No ano passado, os EUA registraram o maior número de casos de agressão a judeus

Por Jerônimo Teixeira

O antissemitismo voltou a crescer. Nos Estados Unidos, o ano passado registrou o maior número de casos de agressão, vandalismo e assédio contra judeus desde que a Anti-Defamation League, uma entidade de combate a esse tipo de racismo, começou a fazer seu levantamento anual, em 1979. Foram 3.697 incidentes, número que representa uma alta de 36% em relação ao ano anterior. No Reino Unido, em compensação, houve uma queda de 27% nos ataques contra judeus de 2021 para 2022. Mas isso não quer dizer muito, pois os 2.261 ataques contra judeus em 2021 foram um recorde, de acordo com informações da organização judaica Community Security Trust. Um levantamento global conduzido por pesquisadores da Universidade de Tel-Aviv apontou que em 2021 houve um “aumento dramático” desses casos em praticamente todos os países que têm uma população judaica expressiva. A polícia alemã, por exemplo, registrou 3.028 incidentes, com um aumento de 29% em relação ao ano anterior. Entre esses ataques mundo afora, há insultos racistas em lugares públicos, profanação de sinagogas, intimidação, agressões físicas. Ódio mais antigo do mundo, o antissemitismo recorre sempre ao mesmo repertório de truculências.

De outro lado, o antissemitismo também se reconfigura para acomodar-se a novas realidades sociais e culturais. Com sucesso, ele se imiscuiu nos dois pontos antípodas da política contemporânea: o populismo de direita e o progressismo identitário. Em Como Combater o Antissemitismo (tradução de André Leones; ed. É Realizações; 160 páginas; R$ 69,90), a jornalista americana Bari Weiss examina, de modo sucinto e acurado, a natureza insidiosa do ódio aos judeus. Publicado nos Estados Unidos em 2019, o livro quase não precisa de atualizações. A onda antissemita dos últimos dois anos cabe perfeitamente no seu quadro de referências.

A jornalista e escritora Bari Weiss, autora do livro 'Como Combater o Antissemitismo'  Foto: Editora É Realizações
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Ex-editora de opinião do The New York Times, atualmente à frente de The Free Press, um dos mais instigantes sites jornalísticos dos Estados Unidos, Bari abre o livro relatando um dia de angústia: 27 de outubro de 2018, quando um atirador chamado Robert Bowers matou 11 pessoas na sinagoga que ela frequentara em sua cidade natal, Pittsburgh. Trocando mensagens com sua família, ela logo conseguiu se assegurar de que todos estavam salvos, em casa. Mas o choque foi profundo: a ideia de que os Estados Unidos seriam um país onde não se encontravam manifestações extremas de ódio aos judeus estava abalada.

A desilusão de Bari Weiss é compartilhada pela também jornalista Daniella Greenbaum. Ela expressou seu choque com a emergência do ódio antissemita na Commentary, tradicional veículo dos judeus conservadores, já em agosto de 2017. Naquele mês, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas. No dia da manifestação, os frequentadores da única sinagoga da cidade tiveram de sair pela porta dos fundos. A recomendação para deixar o templo às escondidas seria costumeira na Europa dos séculos 19 e 20, observou Daniella – mas jamais se imaginaria algo assim nos Estados Unidos do século 21.

Nos Estados Unidos foram 3.697 incidentes no ano passado, o que representa uma alta de 36% em relação a 2021

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Então presidente, Donald Trump afirmou que havia “gente boa” entre os manifestantes de Charlottesville. O Partido Republicano, lembra Bari Weiss em seu livro, sempre teve antissemitas mais ou menos disfarçados, como Pat Buchanan. Trump, ao passar a mão na cabeça dos supremacistas, convidou os antissemitas a saírem das cavernas. “Eles o reconheceram como um colega teórico-conspiracionista”, diz Bari. “Trump tocava os acordes maiores a partir dos quais esses extremistas podiam solar para seus seguidores.”

Ao entoar “os judeus não nos substituirão”, os manifestantes de Charlottesville deram voz a uma nova melodia antissemita: a Grande Substituição. Bari Weiss explica essa extravagante teoria conspiratória em seu livro: é a ideia de que os judeus promovem ativamente a entrada de estrangeiros nos países onde atuam, para solapar as bases raciais da nacionalidade. O criador dessa teoria é um francês de extrema direita chamado Renaud Camus, que a sistematizou em Le Grand Remplacement, livro de 2012. Quem não conhece esse antecedente ideológico imagina que os extremistas de Charlottesville temiam que seus empregos seriam ocupados por judeus. Não: eles acreditavam que os judeus estimulam a entrada de imigrantes ilegais nos Estados Unidos para substituir os brancos. John Earnest, o extremista que em abril de 2019 entrou atirando na sinagoga de Poway, na Califórnia, matando uma mulher e ferindo outras três pessoas, acreditava na Grande Substituição.

Há um ponto cego na cultura progressista: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária

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O antissemitismo sempre se amparou em teorias conspiratórias, remontado aos libelos de sangue medievais, quando judeus eram mortos sob a acusação de usar sangue de crianças cristãs em suas cerimônias. A matriz do antissemitismo moderno está nos planos judaicos de dominação mundial relatados em Os Protocolos dos Sábios de Sião, contrafação que começou a circular na Rússia, no início do século 20, e de lá ganhou o mundo. Novas falsificações proliferam em nossos tempos virais. O relatório da Universidade de Tel-Aviv diz que a explosão mundial de ataques antissemitas há dois anos foi alimentada por fake news que circularam durante a pandemia, atribuindo a “criação” da covid-19 aos judeus. Quando as restrições sanitárias começaram a ser relaxadas, ao longo de 2021, os conspiracionistas deram vazão a impulsos destrutivos que estavam represados.

Eis uma singularidade do antissemitismo entre outras formas de racismo, conforme nota Bari Weiss: o antissemita abraça não apenas um preconceito étnico, mas toda uma concepção de mundo na qual o judeu é “um marionetista do mal, o demônio por trás das cortinas, puxando as cordas”. E não é só a direita extrema que abraça delírios do gênero. Boa parte da esquerda ainda aceita e até propaga a noção de que os judeus são um pilar da exploração capitalista da classe trabalhadora.

Nazistas em ato no Tampa, nos EUA Foto: Marco Bello/Reuters
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O estereótipo do judeu está associado à rapinagem, à riqueza, aos bancos, ao poder financeiro. Um exemplo brasileiro: em dezembro do ano passado, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior recorreu a esse surrado clichê antissemita para criticar a nomeação de Ilan Goldfajn para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O economista de “nome impronunciável”, segundo Batista, seria “essencialmente um financista, ligado ao Tesouro americano e à comunidade judaica” – comunidade que teria “muita presença” em bancos privados e nos organismos econômicos internacionais.

Parte da esquerda tem ainda uma visão complacente do terrorismo islâmico, muitas vezes interpretado como uma reação exacerbada ao imperialismo americano – e ao sionismo: o ataque indiscriminado a Israel é central para o antissemitismo progressista. Nas recomendações para fazer frente ao antissemitismo reunidas no capítulo final de seu livro, Bari Weiss inclui a defesa de Israel. Isso não significa, esclarece ela, que as ações do governo israelense não possam ou não devam ser criticadas. O problema é que as críticas com frequência avançam contra a própria existência do Estado de Israel. E o que acontece no Oriente Médio serve de pretexto para manifestações de ódio antissemita no resto do mundo. O relatório da Universidade de Tel-Aviv atesta que, em 2021, o pico dos ataques a judeus na Europa se deu em maio e junho, quando Israel atacou a Faixa de Gaza.

Em 2017, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas

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Há ainda um ponto cego na atual cultura progressista, tão fixada no antirracismo e na defesa das minorias: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária. Este é o argumento central de Jews Don’t Count (Os Judeus Não Contam, sem edição no Brasil), um instigante livrinho do comediante inglês David Baddiel, lançado em 2022. Baddiel define-se ele mesmo como um progressista, mas lamenta não encontrar apoio entre a elite intelectual e artística alinhada à esquerda, na qual vigora um certo menosprezo pelas atribulações judaicas – daí a leniência (ou a cumplicidade) de Jeremy Corbyn, ex-líder dos trabalhistas, em relação às correntes antissemitas de seu partido. Baddiel identifica uma nefasta “hierarquia de racismos” vigente na esquerda, na qual a propagação de estereótipos judaicos parece menos grave do que o preconceito contra negros, latinos ou muçulmanos. Bari Weiss denuncia o mesmo problema em termos mais crus: para a direita, afirma, os judeus nunca serão brancos o bastante; para a esquerda, nunca serão oprimidos o bastante. “Em ambos os casos, somos enquadrados como inimigos do ‘povo’”, diz ela.

O antissemitismo voltou a crescer. Nos Estados Unidos, o ano passado registrou o maior número de casos de agressão, vandalismo e assédio contra judeus desde que a Anti-Defamation League, uma entidade de combate a esse tipo de racismo, começou a fazer seu levantamento anual, em 1979. Foram 3.697 incidentes, número que representa uma alta de 36% em relação ao ano anterior. No Reino Unido, em compensação, houve uma queda de 27% nos ataques contra judeus de 2021 para 2022. Mas isso não quer dizer muito, pois os 2.261 ataques contra judeus em 2021 foram um recorde, de acordo com informações da organização judaica Community Security Trust. Um levantamento global conduzido por pesquisadores da Universidade de Tel-Aviv apontou que em 2021 houve um “aumento dramático” desses casos em praticamente todos os países que têm uma população judaica expressiva. A polícia alemã, por exemplo, registrou 3.028 incidentes, com um aumento de 29% em relação ao ano anterior. Entre esses ataques mundo afora, há insultos racistas em lugares públicos, profanação de sinagogas, intimidação, agressões físicas. Ódio mais antigo do mundo, o antissemitismo recorre sempre ao mesmo repertório de truculências.

De outro lado, o antissemitismo também se reconfigura para acomodar-se a novas realidades sociais e culturais. Com sucesso, ele se imiscuiu nos dois pontos antípodas da política contemporânea: o populismo de direita e o progressismo identitário. Em Como Combater o Antissemitismo (tradução de André Leones; ed. É Realizações; 160 páginas; R$ 69,90), a jornalista americana Bari Weiss examina, de modo sucinto e acurado, a natureza insidiosa do ódio aos judeus. Publicado nos Estados Unidos em 2019, o livro quase não precisa de atualizações. A onda antissemita dos últimos dois anos cabe perfeitamente no seu quadro de referências.

A jornalista e escritora Bari Weiss, autora do livro 'Como Combater o Antissemitismo'  Foto: Editora É Realizações

Ex-editora de opinião do The New York Times, atualmente à frente de The Free Press, um dos mais instigantes sites jornalísticos dos Estados Unidos, Bari abre o livro relatando um dia de angústia: 27 de outubro de 2018, quando um atirador chamado Robert Bowers matou 11 pessoas na sinagoga que ela frequentara em sua cidade natal, Pittsburgh. Trocando mensagens com sua família, ela logo conseguiu se assegurar de que todos estavam salvos, em casa. Mas o choque foi profundo: a ideia de que os Estados Unidos seriam um país onde não se encontravam manifestações extremas de ódio aos judeus estava abalada.

A desilusão de Bari Weiss é compartilhada pela também jornalista Daniella Greenbaum. Ela expressou seu choque com a emergência do ódio antissemita na Commentary, tradicional veículo dos judeus conservadores, já em agosto de 2017. Naquele mês, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas. No dia da manifestação, os frequentadores da única sinagoga da cidade tiveram de sair pela porta dos fundos. A recomendação para deixar o templo às escondidas seria costumeira na Europa dos séculos 19 e 20, observou Daniella – mas jamais se imaginaria algo assim nos Estados Unidos do século 21.

Nos Estados Unidos foram 3.697 incidentes no ano passado, o que representa uma alta de 36% em relação a 2021

Então presidente, Donald Trump afirmou que havia “gente boa” entre os manifestantes de Charlottesville. O Partido Republicano, lembra Bari Weiss em seu livro, sempre teve antissemitas mais ou menos disfarçados, como Pat Buchanan. Trump, ao passar a mão na cabeça dos supremacistas, convidou os antissemitas a saírem das cavernas. “Eles o reconheceram como um colega teórico-conspiracionista”, diz Bari. “Trump tocava os acordes maiores a partir dos quais esses extremistas podiam solar para seus seguidores.”

Ao entoar “os judeus não nos substituirão”, os manifestantes de Charlottesville deram voz a uma nova melodia antissemita: a Grande Substituição. Bari Weiss explica essa extravagante teoria conspiratória em seu livro: é a ideia de que os judeus promovem ativamente a entrada de estrangeiros nos países onde atuam, para solapar as bases raciais da nacionalidade. O criador dessa teoria é um francês de extrema direita chamado Renaud Camus, que a sistematizou em Le Grand Remplacement, livro de 2012. Quem não conhece esse antecedente ideológico imagina que os extremistas de Charlottesville temiam que seus empregos seriam ocupados por judeus. Não: eles acreditavam que os judeus estimulam a entrada de imigrantes ilegais nos Estados Unidos para substituir os brancos. John Earnest, o extremista que em abril de 2019 entrou atirando na sinagoga de Poway, na Califórnia, matando uma mulher e ferindo outras três pessoas, acreditava na Grande Substituição.

Há um ponto cego na cultura progressista: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária

O antissemitismo sempre se amparou em teorias conspiratórias, remontado aos libelos de sangue medievais, quando judeus eram mortos sob a acusação de usar sangue de crianças cristãs em suas cerimônias. A matriz do antissemitismo moderno está nos planos judaicos de dominação mundial relatados em Os Protocolos dos Sábios de Sião, contrafação que começou a circular na Rússia, no início do século 20, e de lá ganhou o mundo. Novas falsificações proliferam em nossos tempos virais. O relatório da Universidade de Tel-Aviv diz que a explosão mundial de ataques antissemitas há dois anos foi alimentada por fake news que circularam durante a pandemia, atribuindo a “criação” da covid-19 aos judeus. Quando as restrições sanitárias começaram a ser relaxadas, ao longo de 2021, os conspiracionistas deram vazão a impulsos destrutivos que estavam represados.

Eis uma singularidade do antissemitismo entre outras formas de racismo, conforme nota Bari Weiss: o antissemita abraça não apenas um preconceito étnico, mas toda uma concepção de mundo na qual o judeu é “um marionetista do mal, o demônio por trás das cortinas, puxando as cordas”. E não é só a direita extrema que abraça delírios do gênero. Boa parte da esquerda ainda aceita e até propaga a noção de que os judeus são um pilar da exploração capitalista da classe trabalhadora.

Nazistas em ato no Tampa, nos EUA Foto: Marco Bello/Reuters

O estereótipo do judeu está associado à rapinagem, à riqueza, aos bancos, ao poder financeiro. Um exemplo brasileiro: em dezembro do ano passado, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior recorreu a esse surrado clichê antissemita para criticar a nomeação de Ilan Goldfajn para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O economista de “nome impronunciável”, segundo Batista, seria “essencialmente um financista, ligado ao Tesouro americano e à comunidade judaica” – comunidade que teria “muita presença” em bancos privados e nos organismos econômicos internacionais.

Parte da esquerda tem ainda uma visão complacente do terrorismo islâmico, muitas vezes interpretado como uma reação exacerbada ao imperialismo americano – e ao sionismo: o ataque indiscriminado a Israel é central para o antissemitismo progressista. Nas recomendações para fazer frente ao antissemitismo reunidas no capítulo final de seu livro, Bari Weiss inclui a defesa de Israel. Isso não significa, esclarece ela, que as ações do governo israelense não possam ou não devam ser criticadas. O problema é que as críticas com frequência avançam contra a própria existência do Estado de Israel. E o que acontece no Oriente Médio serve de pretexto para manifestações de ódio antissemita no resto do mundo. O relatório da Universidade de Tel-Aviv atesta que, em 2021, o pico dos ataques a judeus na Europa se deu em maio e junho, quando Israel atacou a Faixa de Gaza.

Em 2017, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas

Há ainda um ponto cego na atual cultura progressista, tão fixada no antirracismo e na defesa das minorias: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária. Este é o argumento central de Jews Don’t Count (Os Judeus Não Contam, sem edição no Brasil), um instigante livrinho do comediante inglês David Baddiel, lançado em 2022. Baddiel define-se ele mesmo como um progressista, mas lamenta não encontrar apoio entre a elite intelectual e artística alinhada à esquerda, na qual vigora um certo menosprezo pelas atribulações judaicas – daí a leniência (ou a cumplicidade) de Jeremy Corbyn, ex-líder dos trabalhistas, em relação às correntes antissemitas de seu partido. Baddiel identifica uma nefasta “hierarquia de racismos” vigente na esquerda, na qual a propagação de estereótipos judaicos parece menos grave do que o preconceito contra negros, latinos ou muçulmanos. Bari Weiss denuncia o mesmo problema em termos mais crus: para a direita, afirma, os judeus nunca serão brancos o bastante; para a esquerda, nunca serão oprimidos o bastante. “Em ambos os casos, somos enquadrados como inimigos do ‘povo’”, diz ela.

O antissemitismo voltou a crescer. Nos Estados Unidos, o ano passado registrou o maior número de casos de agressão, vandalismo e assédio contra judeus desde que a Anti-Defamation League, uma entidade de combate a esse tipo de racismo, começou a fazer seu levantamento anual, em 1979. Foram 3.697 incidentes, número que representa uma alta de 36% em relação ao ano anterior. No Reino Unido, em compensação, houve uma queda de 27% nos ataques contra judeus de 2021 para 2022. Mas isso não quer dizer muito, pois os 2.261 ataques contra judeus em 2021 foram um recorde, de acordo com informações da organização judaica Community Security Trust. Um levantamento global conduzido por pesquisadores da Universidade de Tel-Aviv apontou que em 2021 houve um “aumento dramático” desses casos em praticamente todos os países que têm uma população judaica expressiva. A polícia alemã, por exemplo, registrou 3.028 incidentes, com um aumento de 29% em relação ao ano anterior. Entre esses ataques mundo afora, há insultos racistas em lugares públicos, profanação de sinagogas, intimidação, agressões físicas. Ódio mais antigo do mundo, o antissemitismo recorre sempre ao mesmo repertório de truculências.

De outro lado, o antissemitismo também se reconfigura para acomodar-se a novas realidades sociais e culturais. Com sucesso, ele se imiscuiu nos dois pontos antípodas da política contemporânea: o populismo de direita e o progressismo identitário. Em Como Combater o Antissemitismo (tradução de André Leones; ed. É Realizações; 160 páginas; R$ 69,90), a jornalista americana Bari Weiss examina, de modo sucinto e acurado, a natureza insidiosa do ódio aos judeus. Publicado nos Estados Unidos em 2019, o livro quase não precisa de atualizações. A onda antissemita dos últimos dois anos cabe perfeitamente no seu quadro de referências.

A jornalista e escritora Bari Weiss, autora do livro 'Como Combater o Antissemitismo'  Foto: Editora É Realizações

Ex-editora de opinião do The New York Times, atualmente à frente de The Free Press, um dos mais instigantes sites jornalísticos dos Estados Unidos, Bari abre o livro relatando um dia de angústia: 27 de outubro de 2018, quando um atirador chamado Robert Bowers matou 11 pessoas na sinagoga que ela frequentara em sua cidade natal, Pittsburgh. Trocando mensagens com sua família, ela logo conseguiu se assegurar de que todos estavam salvos, em casa. Mas o choque foi profundo: a ideia de que os Estados Unidos seriam um país onde não se encontravam manifestações extremas de ódio aos judeus estava abalada.

A desilusão de Bari Weiss é compartilhada pela também jornalista Daniella Greenbaum. Ela expressou seu choque com a emergência do ódio antissemita na Commentary, tradicional veículo dos judeus conservadores, já em agosto de 2017. Naquele mês, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas. No dia da manifestação, os frequentadores da única sinagoga da cidade tiveram de sair pela porta dos fundos. A recomendação para deixar o templo às escondidas seria costumeira na Europa dos séculos 19 e 20, observou Daniella – mas jamais se imaginaria algo assim nos Estados Unidos do século 21.

Nos Estados Unidos foram 3.697 incidentes no ano passado, o que representa uma alta de 36% em relação a 2021

Então presidente, Donald Trump afirmou que havia “gente boa” entre os manifestantes de Charlottesville. O Partido Republicano, lembra Bari Weiss em seu livro, sempre teve antissemitas mais ou menos disfarçados, como Pat Buchanan. Trump, ao passar a mão na cabeça dos supremacistas, convidou os antissemitas a saírem das cavernas. “Eles o reconheceram como um colega teórico-conspiracionista”, diz Bari. “Trump tocava os acordes maiores a partir dos quais esses extremistas podiam solar para seus seguidores.”

Ao entoar “os judeus não nos substituirão”, os manifestantes de Charlottesville deram voz a uma nova melodia antissemita: a Grande Substituição. Bari Weiss explica essa extravagante teoria conspiratória em seu livro: é a ideia de que os judeus promovem ativamente a entrada de estrangeiros nos países onde atuam, para solapar as bases raciais da nacionalidade. O criador dessa teoria é um francês de extrema direita chamado Renaud Camus, que a sistematizou em Le Grand Remplacement, livro de 2012. Quem não conhece esse antecedente ideológico imagina que os extremistas de Charlottesville temiam que seus empregos seriam ocupados por judeus. Não: eles acreditavam que os judeus estimulam a entrada de imigrantes ilegais nos Estados Unidos para substituir os brancos. John Earnest, o extremista que em abril de 2019 entrou atirando na sinagoga de Poway, na Califórnia, matando uma mulher e ferindo outras três pessoas, acreditava na Grande Substituição.

Há um ponto cego na cultura progressista: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária

O antissemitismo sempre se amparou em teorias conspiratórias, remontado aos libelos de sangue medievais, quando judeus eram mortos sob a acusação de usar sangue de crianças cristãs em suas cerimônias. A matriz do antissemitismo moderno está nos planos judaicos de dominação mundial relatados em Os Protocolos dos Sábios de Sião, contrafação que começou a circular na Rússia, no início do século 20, e de lá ganhou o mundo. Novas falsificações proliferam em nossos tempos virais. O relatório da Universidade de Tel-Aviv diz que a explosão mundial de ataques antissemitas há dois anos foi alimentada por fake news que circularam durante a pandemia, atribuindo a “criação” da covid-19 aos judeus. Quando as restrições sanitárias começaram a ser relaxadas, ao longo de 2021, os conspiracionistas deram vazão a impulsos destrutivos que estavam represados.

Eis uma singularidade do antissemitismo entre outras formas de racismo, conforme nota Bari Weiss: o antissemita abraça não apenas um preconceito étnico, mas toda uma concepção de mundo na qual o judeu é “um marionetista do mal, o demônio por trás das cortinas, puxando as cordas”. E não é só a direita extrema que abraça delírios do gênero. Boa parte da esquerda ainda aceita e até propaga a noção de que os judeus são um pilar da exploração capitalista da classe trabalhadora.

Nazistas em ato no Tampa, nos EUA Foto: Marco Bello/Reuters

O estereótipo do judeu está associado à rapinagem, à riqueza, aos bancos, ao poder financeiro. Um exemplo brasileiro: em dezembro do ano passado, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior recorreu a esse surrado clichê antissemita para criticar a nomeação de Ilan Goldfajn para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O economista de “nome impronunciável”, segundo Batista, seria “essencialmente um financista, ligado ao Tesouro americano e à comunidade judaica” – comunidade que teria “muita presença” em bancos privados e nos organismos econômicos internacionais.

Parte da esquerda tem ainda uma visão complacente do terrorismo islâmico, muitas vezes interpretado como uma reação exacerbada ao imperialismo americano – e ao sionismo: o ataque indiscriminado a Israel é central para o antissemitismo progressista. Nas recomendações para fazer frente ao antissemitismo reunidas no capítulo final de seu livro, Bari Weiss inclui a defesa de Israel. Isso não significa, esclarece ela, que as ações do governo israelense não possam ou não devam ser criticadas. O problema é que as críticas com frequência avançam contra a própria existência do Estado de Israel. E o que acontece no Oriente Médio serve de pretexto para manifestações de ódio antissemita no resto do mundo. O relatório da Universidade de Tel-Aviv atesta que, em 2021, o pico dos ataques a judeus na Europa se deu em maio e junho, quando Israel atacou a Faixa de Gaza.

Em 2017, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas

Há ainda um ponto cego na atual cultura progressista, tão fixada no antirracismo e na defesa das minorias: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária. Este é o argumento central de Jews Don’t Count (Os Judeus Não Contam, sem edição no Brasil), um instigante livrinho do comediante inglês David Baddiel, lançado em 2022. Baddiel define-se ele mesmo como um progressista, mas lamenta não encontrar apoio entre a elite intelectual e artística alinhada à esquerda, na qual vigora um certo menosprezo pelas atribulações judaicas – daí a leniência (ou a cumplicidade) de Jeremy Corbyn, ex-líder dos trabalhistas, em relação às correntes antissemitas de seu partido. Baddiel identifica uma nefasta “hierarquia de racismos” vigente na esquerda, na qual a propagação de estereótipos judaicos parece menos grave do que o preconceito contra negros, latinos ou muçulmanos. Bari Weiss denuncia o mesmo problema em termos mais crus: para a direita, afirma, os judeus nunca serão brancos o bastante; para a esquerda, nunca serão oprimidos o bastante. “Em ambos os casos, somos enquadrados como inimigos do ‘povo’”, diz ela.

O antissemitismo voltou a crescer. Nos Estados Unidos, o ano passado registrou o maior número de casos de agressão, vandalismo e assédio contra judeus desde que a Anti-Defamation League, uma entidade de combate a esse tipo de racismo, começou a fazer seu levantamento anual, em 1979. Foram 3.697 incidentes, número que representa uma alta de 36% em relação ao ano anterior. No Reino Unido, em compensação, houve uma queda de 27% nos ataques contra judeus de 2021 para 2022. Mas isso não quer dizer muito, pois os 2.261 ataques contra judeus em 2021 foram um recorde, de acordo com informações da organização judaica Community Security Trust. Um levantamento global conduzido por pesquisadores da Universidade de Tel-Aviv apontou que em 2021 houve um “aumento dramático” desses casos em praticamente todos os países que têm uma população judaica expressiva. A polícia alemã, por exemplo, registrou 3.028 incidentes, com um aumento de 29% em relação ao ano anterior. Entre esses ataques mundo afora, há insultos racistas em lugares públicos, profanação de sinagogas, intimidação, agressões físicas. Ódio mais antigo do mundo, o antissemitismo recorre sempre ao mesmo repertório de truculências.

De outro lado, o antissemitismo também se reconfigura para acomodar-se a novas realidades sociais e culturais. Com sucesso, ele se imiscuiu nos dois pontos antípodas da política contemporânea: o populismo de direita e o progressismo identitário. Em Como Combater o Antissemitismo (tradução de André Leones; ed. É Realizações; 160 páginas; R$ 69,90), a jornalista americana Bari Weiss examina, de modo sucinto e acurado, a natureza insidiosa do ódio aos judeus. Publicado nos Estados Unidos em 2019, o livro quase não precisa de atualizações. A onda antissemita dos últimos dois anos cabe perfeitamente no seu quadro de referências.

A jornalista e escritora Bari Weiss, autora do livro 'Como Combater o Antissemitismo'  Foto: Editora É Realizações

Ex-editora de opinião do The New York Times, atualmente à frente de The Free Press, um dos mais instigantes sites jornalísticos dos Estados Unidos, Bari abre o livro relatando um dia de angústia: 27 de outubro de 2018, quando um atirador chamado Robert Bowers matou 11 pessoas na sinagoga que ela frequentara em sua cidade natal, Pittsburgh. Trocando mensagens com sua família, ela logo conseguiu se assegurar de que todos estavam salvos, em casa. Mas o choque foi profundo: a ideia de que os Estados Unidos seriam um país onde não se encontravam manifestações extremas de ódio aos judeus estava abalada.

A desilusão de Bari Weiss é compartilhada pela também jornalista Daniella Greenbaum. Ela expressou seu choque com a emergência do ódio antissemita na Commentary, tradicional veículo dos judeus conservadores, já em agosto de 2017. Naquele mês, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas. No dia da manifestação, os frequentadores da única sinagoga da cidade tiveram de sair pela porta dos fundos. A recomendação para deixar o templo às escondidas seria costumeira na Europa dos séculos 19 e 20, observou Daniella – mas jamais se imaginaria algo assim nos Estados Unidos do século 21.

Nos Estados Unidos foram 3.697 incidentes no ano passado, o que representa uma alta de 36% em relação a 2021

Então presidente, Donald Trump afirmou que havia “gente boa” entre os manifestantes de Charlottesville. O Partido Republicano, lembra Bari Weiss em seu livro, sempre teve antissemitas mais ou menos disfarçados, como Pat Buchanan. Trump, ao passar a mão na cabeça dos supremacistas, convidou os antissemitas a saírem das cavernas. “Eles o reconheceram como um colega teórico-conspiracionista”, diz Bari. “Trump tocava os acordes maiores a partir dos quais esses extremistas podiam solar para seus seguidores.”

Ao entoar “os judeus não nos substituirão”, os manifestantes de Charlottesville deram voz a uma nova melodia antissemita: a Grande Substituição. Bari Weiss explica essa extravagante teoria conspiratória em seu livro: é a ideia de que os judeus promovem ativamente a entrada de estrangeiros nos países onde atuam, para solapar as bases raciais da nacionalidade. O criador dessa teoria é um francês de extrema direita chamado Renaud Camus, que a sistematizou em Le Grand Remplacement, livro de 2012. Quem não conhece esse antecedente ideológico imagina que os extremistas de Charlottesville temiam que seus empregos seriam ocupados por judeus. Não: eles acreditavam que os judeus estimulam a entrada de imigrantes ilegais nos Estados Unidos para substituir os brancos. John Earnest, o extremista que em abril de 2019 entrou atirando na sinagoga de Poway, na Califórnia, matando uma mulher e ferindo outras três pessoas, acreditava na Grande Substituição.

Há um ponto cego na cultura progressista: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária

O antissemitismo sempre se amparou em teorias conspiratórias, remontado aos libelos de sangue medievais, quando judeus eram mortos sob a acusação de usar sangue de crianças cristãs em suas cerimônias. A matriz do antissemitismo moderno está nos planos judaicos de dominação mundial relatados em Os Protocolos dos Sábios de Sião, contrafação que começou a circular na Rússia, no início do século 20, e de lá ganhou o mundo. Novas falsificações proliferam em nossos tempos virais. O relatório da Universidade de Tel-Aviv diz que a explosão mundial de ataques antissemitas há dois anos foi alimentada por fake news que circularam durante a pandemia, atribuindo a “criação” da covid-19 aos judeus. Quando as restrições sanitárias começaram a ser relaxadas, ao longo de 2021, os conspiracionistas deram vazão a impulsos destrutivos que estavam represados.

Eis uma singularidade do antissemitismo entre outras formas de racismo, conforme nota Bari Weiss: o antissemita abraça não apenas um preconceito étnico, mas toda uma concepção de mundo na qual o judeu é “um marionetista do mal, o demônio por trás das cortinas, puxando as cordas”. E não é só a direita extrema que abraça delírios do gênero. Boa parte da esquerda ainda aceita e até propaga a noção de que os judeus são um pilar da exploração capitalista da classe trabalhadora.

Nazistas em ato no Tampa, nos EUA Foto: Marco Bello/Reuters

O estereótipo do judeu está associado à rapinagem, à riqueza, aos bancos, ao poder financeiro. Um exemplo brasileiro: em dezembro do ano passado, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior recorreu a esse surrado clichê antissemita para criticar a nomeação de Ilan Goldfajn para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O economista de “nome impronunciável”, segundo Batista, seria “essencialmente um financista, ligado ao Tesouro americano e à comunidade judaica” – comunidade que teria “muita presença” em bancos privados e nos organismos econômicos internacionais.

Parte da esquerda tem ainda uma visão complacente do terrorismo islâmico, muitas vezes interpretado como uma reação exacerbada ao imperialismo americano – e ao sionismo: o ataque indiscriminado a Israel é central para o antissemitismo progressista. Nas recomendações para fazer frente ao antissemitismo reunidas no capítulo final de seu livro, Bari Weiss inclui a defesa de Israel. Isso não significa, esclarece ela, que as ações do governo israelense não possam ou não devam ser criticadas. O problema é que as críticas com frequência avançam contra a própria existência do Estado de Israel. E o que acontece no Oriente Médio serve de pretexto para manifestações de ódio antissemita no resto do mundo. O relatório da Universidade de Tel-Aviv atesta que, em 2021, o pico dos ataques a judeus na Europa se deu em maio e junho, quando Israel atacou a Faixa de Gaza.

Em 2017, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas

Há ainda um ponto cego na atual cultura progressista, tão fixada no antirracismo e na defesa das minorias: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária. Este é o argumento central de Jews Don’t Count (Os Judeus Não Contam, sem edição no Brasil), um instigante livrinho do comediante inglês David Baddiel, lançado em 2022. Baddiel define-se ele mesmo como um progressista, mas lamenta não encontrar apoio entre a elite intelectual e artística alinhada à esquerda, na qual vigora um certo menosprezo pelas atribulações judaicas – daí a leniência (ou a cumplicidade) de Jeremy Corbyn, ex-líder dos trabalhistas, em relação às correntes antissemitas de seu partido. Baddiel identifica uma nefasta “hierarquia de racismos” vigente na esquerda, na qual a propagação de estereótipos judaicos parece menos grave do que o preconceito contra negros, latinos ou muçulmanos. Bari Weiss denuncia o mesmo problema em termos mais crus: para a direita, afirma, os judeus nunca serão brancos o bastante; para a esquerda, nunca serão oprimidos o bastante. “Em ambos os casos, somos enquadrados como inimigos do ‘povo’”, diz ela.

O antissemitismo voltou a crescer. Nos Estados Unidos, o ano passado registrou o maior número de casos de agressão, vandalismo e assédio contra judeus desde que a Anti-Defamation League, uma entidade de combate a esse tipo de racismo, começou a fazer seu levantamento anual, em 1979. Foram 3.697 incidentes, número que representa uma alta de 36% em relação ao ano anterior. No Reino Unido, em compensação, houve uma queda de 27% nos ataques contra judeus de 2021 para 2022. Mas isso não quer dizer muito, pois os 2.261 ataques contra judeus em 2021 foram um recorde, de acordo com informações da organização judaica Community Security Trust. Um levantamento global conduzido por pesquisadores da Universidade de Tel-Aviv apontou que em 2021 houve um “aumento dramático” desses casos em praticamente todos os países que têm uma população judaica expressiva. A polícia alemã, por exemplo, registrou 3.028 incidentes, com um aumento de 29% em relação ao ano anterior. Entre esses ataques mundo afora, há insultos racistas em lugares públicos, profanação de sinagogas, intimidação, agressões físicas. Ódio mais antigo do mundo, o antissemitismo recorre sempre ao mesmo repertório de truculências.

De outro lado, o antissemitismo também se reconfigura para acomodar-se a novas realidades sociais e culturais. Com sucesso, ele se imiscuiu nos dois pontos antípodas da política contemporânea: o populismo de direita e o progressismo identitário. Em Como Combater o Antissemitismo (tradução de André Leones; ed. É Realizações; 160 páginas; R$ 69,90), a jornalista americana Bari Weiss examina, de modo sucinto e acurado, a natureza insidiosa do ódio aos judeus. Publicado nos Estados Unidos em 2019, o livro quase não precisa de atualizações. A onda antissemita dos últimos dois anos cabe perfeitamente no seu quadro de referências.

A jornalista e escritora Bari Weiss, autora do livro 'Como Combater o Antissemitismo'  Foto: Editora É Realizações

Ex-editora de opinião do The New York Times, atualmente à frente de The Free Press, um dos mais instigantes sites jornalísticos dos Estados Unidos, Bari abre o livro relatando um dia de angústia: 27 de outubro de 2018, quando um atirador chamado Robert Bowers matou 11 pessoas na sinagoga que ela frequentara em sua cidade natal, Pittsburgh. Trocando mensagens com sua família, ela logo conseguiu se assegurar de que todos estavam salvos, em casa. Mas o choque foi profundo: a ideia de que os Estados Unidos seriam um país onde não se encontravam manifestações extremas de ódio aos judeus estava abalada.

A desilusão de Bari Weiss é compartilhada pela também jornalista Daniella Greenbaum. Ela expressou seu choque com a emergência do ódio antissemita na Commentary, tradicional veículo dos judeus conservadores, já em agosto de 2017. Naquele mês, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas. No dia da manifestação, os frequentadores da única sinagoga da cidade tiveram de sair pela porta dos fundos. A recomendação para deixar o templo às escondidas seria costumeira na Europa dos séculos 19 e 20, observou Daniella – mas jamais se imaginaria algo assim nos Estados Unidos do século 21.

Nos Estados Unidos foram 3.697 incidentes no ano passado, o que representa uma alta de 36% em relação a 2021

Então presidente, Donald Trump afirmou que havia “gente boa” entre os manifestantes de Charlottesville. O Partido Republicano, lembra Bari Weiss em seu livro, sempre teve antissemitas mais ou menos disfarçados, como Pat Buchanan. Trump, ao passar a mão na cabeça dos supremacistas, convidou os antissemitas a saírem das cavernas. “Eles o reconheceram como um colega teórico-conspiracionista”, diz Bari. “Trump tocava os acordes maiores a partir dos quais esses extremistas podiam solar para seus seguidores.”

Ao entoar “os judeus não nos substituirão”, os manifestantes de Charlottesville deram voz a uma nova melodia antissemita: a Grande Substituição. Bari Weiss explica essa extravagante teoria conspiratória em seu livro: é a ideia de que os judeus promovem ativamente a entrada de estrangeiros nos países onde atuam, para solapar as bases raciais da nacionalidade. O criador dessa teoria é um francês de extrema direita chamado Renaud Camus, que a sistematizou em Le Grand Remplacement, livro de 2012. Quem não conhece esse antecedente ideológico imagina que os extremistas de Charlottesville temiam que seus empregos seriam ocupados por judeus. Não: eles acreditavam que os judeus estimulam a entrada de imigrantes ilegais nos Estados Unidos para substituir os brancos. John Earnest, o extremista que em abril de 2019 entrou atirando na sinagoga de Poway, na Califórnia, matando uma mulher e ferindo outras três pessoas, acreditava na Grande Substituição.

Há um ponto cego na cultura progressista: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária

O antissemitismo sempre se amparou em teorias conspiratórias, remontado aos libelos de sangue medievais, quando judeus eram mortos sob a acusação de usar sangue de crianças cristãs em suas cerimônias. A matriz do antissemitismo moderno está nos planos judaicos de dominação mundial relatados em Os Protocolos dos Sábios de Sião, contrafação que começou a circular na Rússia, no início do século 20, e de lá ganhou o mundo. Novas falsificações proliferam em nossos tempos virais. O relatório da Universidade de Tel-Aviv diz que a explosão mundial de ataques antissemitas há dois anos foi alimentada por fake news que circularam durante a pandemia, atribuindo a “criação” da covid-19 aos judeus. Quando as restrições sanitárias começaram a ser relaxadas, ao longo de 2021, os conspiracionistas deram vazão a impulsos destrutivos que estavam represados.

Eis uma singularidade do antissemitismo entre outras formas de racismo, conforme nota Bari Weiss: o antissemita abraça não apenas um preconceito étnico, mas toda uma concepção de mundo na qual o judeu é “um marionetista do mal, o demônio por trás das cortinas, puxando as cordas”. E não é só a direita extrema que abraça delírios do gênero. Boa parte da esquerda ainda aceita e até propaga a noção de que os judeus são um pilar da exploração capitalista da classe trabalhadora.

Nazistas em ato no Tampa, nos EUA Foto: Marco Bello/Reuters

O estereótipo do judeu está associado à rapinagem, à riqueza, aos bancos, ao poder financeiro. Um exemplo brasileiro: em dezembro do ano passado, o economista Paulo Nogueira Batista Júnior recorreu a esse surrado clichê antissemita para criticar a nomeação de Ilan Goldfajn para a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O economista de “nome impronunciável”, segundo Batista, seria “essencialmente um financista, ligado ao Tesouro americano e à comunidade judaica” – comunidade que teria “muita presença” em bancos privados e nos organismos econômicos internacionais.

Parte da esquerda tem ainda uma visão complacente do terrorismo islâmico, muitas vezes interpretado como uma reação exacerbada ao imperialismo americano – e ao sionismo: o ataque indiscriminado a Israel é central para o antissemitismo progressista. Nas recomendações para fazer frente ao antissemitismo reunidas no capítulo final de seu livro, Bari Weiss inclui a defesa de Israel. Isso não significa, esclarece ela, que as ações do governo israelense não possam ou não devam ser criticadas. O problema é que as críticas com frequência avançam contra a própria existência do Estado de Israel. E o que acontece no Oriente Médio serve de pretexto para manifestações de ódio antissemita no resto do mundo. O relatório da Universidade de Tel-Aviv atesta que, em 2021, o pico dos ataques a judeus na Europa se deu em maio e junho, quando Israel atacou a Faixa de Gaza.

Em 2017, supremacistas brancos marcharam por Charlottesville, com tochas, gritando slogans antissemitas

Há ainda um ponto cego na atual cultura progressista, tão fixada no antirracismo e na defesa das minorias: o judeu não costuma ser contemplado pela política identitária. Este é o argumento central de Jews Don’t Count (Os Judeus Não Contam, sem edição no Brasil), um instigante livrinho do comediante inglês David Baddiel, lançado em 2022. Baddiel define-se ele mesmo como um progressista, mas lamenta não encontrar apoio entre a elite intelectual e artística alinhada à esquerda, na qual vigora um certo menosprezo pelas atribulações judaicas – daí a leniência (ou a cumplicidade) de Jeremy Corbyn, ex-líder dos trabalhistas, em relação às correntes antissemitas de seu partido. Baddiel identifica uma nefasta “hierarquia de racismos” vigente na esquerda, na qual a propagação de estereótipos judaicos parece menos grave do que o preconceito contra negros, latinos ou muçulmanos. Bari Weiss denuncia o mesmo problema em termos mais crus: para a direita, afirma, os judeus nunca serão brancos o bastante; para a esquerda, nunca serão oprimidos o bastante. “Em ambos os casos, somos enquadrados como inimigos do ‘povo’”, diz ela.

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