Entenda como o racismo levou o mundo ao colapso ambiental


O cientista político francês Malcom Ferdinand diz que a próxima arca de Noé será seletiva

Por Sibélia Zanon
Atualização:

Quem poderá entrar na arca de Noé? Águas subindo, poluição química, sexta extinção em massa de espécies em curso... Para Malcom Ferdinand, doutor em filosofia política e ciência política nascido na Martinica, a imagem metafórica da arca de Noé como salvação impõe uma seleção e, por isso, ele prefere usar a imagem de outro tipo de embarcação, sugerindo o conceito de um navio-mundo: “Um navio onde se resgatam os corpos perdidos, onde a humildade alcança os corpos eleitos, onde se cuidam das fraturas coloniais, onde se pode tomar corpo no mundo e reencontrar uma Mãe Terra”, escreve.

Autor de Uma Ecologia Decolonial – Pensar a partir do Mundo Caribenho, Ferdinand esteve no Brasil para o lançamento de seu livro, que aborda o que ele chama de “dupla fratura colonial e ambiental da modernidade”. De um lado, a fratura colonial com a herança do colonialismo e da escravidão recebe a atenção de movimentos sociais e antirracistas; de outro lado, a fratura ambiental é atendida pelos movimentos ecológicos. No entanto, pela falta de união, ambos os movimentos perdem força.

O cientista político e engenheiro ambiental Malcolm Ferdinand  Foto: UBU Editora
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A filósofa e ativista estadunidense Angela Davis escreve no prefácio do livro que o autor mostra como “o racismo, especificamente o colonialismo e a escravidão, ajudou a construir um mundo fundamentado na destruição ambiental”, destacando que os dois problemas estão relacionados e precisam ser vistos em conjunto para pensar novas formas de habitar a Terra. É sobre isso que fala o livro de Ferdinand ao singrar pela relação entre meio ambiente e colonialismo, usando a metáfora das embarcações. Diferentes navios, como a arca de Noé, o navio negreiro e o navio-mundo conduzem o leitor pela tempestade da modernidade.

Não é à toa que, dentre os significados do termo “calunga”, da cultura bantu – uma das que teve mais negros trazidos para o Brasil para serem escravizados – estão reunidas as ideias de travessia, mar e cemitério. O mar e o cemitério aparecem, na linguagem, corporificados nos navios negreiros. Para abandonar os horrores de tais navios e seguir pelo navio-mundo, Ferdinand sugere a prática da ecologia decolonial, que converge os movimentos que cuidam do meio ambiente e aqueles que cuidam do ser humano. Para o martinicano, a cura da Terra está associada à cura das pessoas porque ambas integram um mesmo corpo: “Controlar e explorar o ventre das mães racializadas e explorar o ventre da Terra fazem parte de uma mesma destruição”, escreve.

Frantz Fanon, autor caribenho e uma dentre as diversas referências citadas por Ferdinand, escreve em Os Condenados da Terra que para decolonizar pode ser necessário abalar o mundo: “O colonizado, portanto, descobre que sua vida, sua respiração, as batidas de seu coração são as mesmas que as do colono. Descobre que a pele do colono não vale mais que a pele do nativo. Tal descoberta introduz um abalo essencial no mundo”.

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Frantz Fanon é uma das referências de Malcom Ferdinand Foto: Acervo Estadão

Diferentemente do termo descolonial, o termo decolonial busca uma forma de pensar a existência considerando o legado colonial. Estudiosos do termo, como a professora Catherine Walsh, da Universidade Andina Simón Bolívar no Equador, pautam sua escolha pela palavra decolonial porque a inclusão do “s” pode levar ao entendimento de desfazer ou reverter o colonial – como se fosse possível que os traços da colonialidade, corporificados na sociedade, deixassem de existir.

Pela primeira vez no Brasil, Ferdinand diz que os rostos das pessoas lembram sua própria família. “É uma sensação incrível. É como perceber que na minha casa existia um novo quarto e eu não sabia”. O professor e pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, conversou com o Estadão, parte em inglês, parte em português – língua que aprendeu nos últimos meses, quando soube que viajaria para o país.

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Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários e das pessoas pretas

Você se lembra de alguma experiência que o aproximou do tema ecologia?

Nasci na Martinica, uma pequena ilha no Caribe que tem 400 mil pessoas. É possível fazer um tour na Martinica em 2 horas. Então, quando tem um problema com o meio ambiente, é possível ver muito rápido. É muito fácil identificar os problemas no desenvolvimento urbano, a diminuição de lugares onde você pode caçar. Eu costumava caçar caranguejo com minha tia e não pude fazer isso mais. A Martinica é uma ilha no mundo e vai ser afetada pelos problemas do mundo também. Você enfrenta os ciclos dos furacões. Como você sabe, o aquecimento global vai trazer mais furacões.

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Você escreve no seu livro que a poluição química escoa nos aquíferos e nos cordões umbilicais. Pode explicar essa imagem?

É uma imagem, mas não é só uma imagem. Isso é a realidade. A poluição química entra em todos os lugares e isso significa que o caminho para a vida já é um caminho com poluição, com agrotóxicos, com coisas que matam, pesticidas. E isso é assim na Martinica e em muitos outros lugares do mundo, inclusive aqui no Brasil com DDT (agrotóxico dicloro-difenil-tricloetano), com o colapso de barragens em Minas Gerais. Todas essas coisas são difíceis testemunhos de nosso tempo.

Por que o controle do ventre das mães racializadas ao controle do ventre da Terra fazem parte da mesma destruição?

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Se você se lembrar da escravidão, para destruir a terra com as plantations, os senhores controlavam os úteros das mulheres pretas e indígenas. Então, os senhores transformaram os úteros das mulheres em uma fábrica para produzir trabalhadores que continuariam produzindo seus bens. Tudo por dinheiro ou ganhos pessoais.

Navio Negreiro, obra de Rugendas de 1830  Foto: Itaú Cultural

Como a prática ecológica pode reforçar o colonialismo?

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Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários, as pessoas pretas e também as mulheres pobres e idosas. Há uma prática clássica, que vai inventar uma maneira de pensar ecologia sem a população, sem pessoas. Esse horizonte de prática ecológica não considera uma vida coletiva, mas a proteção de um espaço vazio. E para produzir ou criar um espaço vazio é preciso excluir as pessoas. Essa é a maneira pela qual a prática colonial é reproduzida.

Quais os danos do espaço de fala reduzido ou até inexistente para pensadores não europeus sobre ecologia?

Para mim é o resultado de um sistema da supremacia branca que mantém uma invisibilização das pessoas pretas ou originárias. É uma forma de excluir do palco, do discurso e da posição de representação. Você se lembra do filme “O Rei Leão”? É uma coisa muito interessante, é um filme infantil com grande audiência e visibilidade global. Um filme na África sem pessoas, sem pessoas! Isso significa que na África você só tem vida selvagem. É incrível.

Quão profundamente ainda estamos imersos numa mentalidade colonialista? Pode dar exemplos?

Hoje, por exemplo, eu vi nos noticiários que um policial branco, de folga, fora do trabalho, foi filmado com uma câmera linchando um homem preto e você pode ver o policial branco usando uma corda, açoitando, e com uma arma. Então, o imaginário ainda é colonial, porque ele reproduz algo da época escravagista, hoje em 2023. Então é normal, está incorporado. Isso é em nível individual, pessoal, mas coletivamente isso está incorporado, é o que eu chamo de habitar colonial. É uma forma de extrair recursos, de destruir coisas, não só as florestas, mas as comunidades humanas nas florestas. É a forma de construir um modo de vida, no qual tudo é transformado em recurso. É o mesmo método que era usado no passado e é usado em 2023. As formas são diferentes, mas os princípios são os mesmos.

O decréscimo da população de animais selvagens e o aumento de espécies de animais ameaçados de extinção tem se agravado nas últimas décadas. Como esse cenário impacta a vida humana? E o que ele conta sobre quem somos?

Covid 19! Estamos na sexta extinção em massa no mundo. As espécies estão mudando de forma dramática globalmente, mas as pessoas não têm contribuições iguais para essa mudança e é importante perceber a diferença. Eu não acho que as pessoas nas favelas perto do Rio ou São Paulo são as que estão destruindo o mundo, mas elas vão sofrer as consequências. Só pense nas enchentes em São Paulo em março. Eu não acho que elas são as pessoas que estão causando a extinção massiva de espécies no mundo, mas elas vão sofrer as consequências da subida das águas como em São Paulo recentemente.

No livro e também no recente debate no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro você fala sobre a ruptura na relação dos escravizados com a terra e sobre a importância de reconstruir a conexão do corpo com a terra. Você fala em colher flores como uma forma de reaprender o amor por si mesmo. Qual a importância da relação do corpo com a terra?

Os povos originários, os povos dos quilombos já sabem disso faz muito, muito, muito tempo. Tem um conceito que se chama o corpo-território. É uma maneira de reconhecer a continuação, o corpo faz parte da terra. Quando a gente destrói o próprio corpo é também uma maneira de destruir a terra e quando a gente está destruindo a terra é uma maneira de destruir o próprio corpo. Então, quando a gente vai preservar, praticar uma forma do amor com a terra, colher flores é uma maneira de manifestar o amor. Tem muitas maneiras, essa é uma delas.

Quem poderá entrar na arca de Noé? Águas subindo, poluição química, sexta extinção em massa de espécies em curso... Para Malcom Ferdinand, doutor em filosofia política e ciência política nascido na Martinica, a imagem metafórica da arca de Noé como salvação impõe uma seleção e, por isso, ele prefere usar a imagem de outro tipo de embarcação, sugerindo o conceito de um navio-mundo: “Um navio onde se resgatam os corpos perdidos, onde a humildade alcança os corpos eleitos, onde se cuidam das fraturas coloniais, onde se pode tomar corpo no mundo e reencontrar uma Mãe Terra”, escreve.

Autor de Uma Ecologia Decolonial – Pensar a partir do Mundo Caribenho, Ferdinand esteve no Brasil para o lançamento de seu livro, que aborda o que ele chama de “dupla fratura colonial e ambiental da modernidade”. De um lado, a fratura colonial com a herança do colonialismo e da escravidão recebe a atenção de movimentos sociais e antirracistas; de outro lado, a fratura ambiental é atendida pelos movimentos ecológicos. No entanto, pela falta de união, ambos os movimentos perdem força.

O cientista político e engenheiro ambiental Malcolm Ferdinand  Foto: UBU Editora

A filósofa e ativista estadunidense Angela Davis escreve no prefácio do livro que o autor mostra como “o racismo, especificamente o colonialismo e a escravidão, ajudou a construir um mundo fundamentado na destruição ambiental”, destacando que os dois problemas estão relacionados e precisam ser vistos em conjunto para pensar novas formas de habitar a Terra. É sobre isso que fala o livro de Ferdinand ao singrar pela relação entre meio ambiente e colonialismo, usando a metáfora das embarcações. Diferentes navios, como a arca de Noé, o navio negreiro e o navio-mundo conduzem o leitor pela tempestade da modernidade.

Não é à toa que, dentre os significados do termo “calunga”, da cultura bantu – uma das que teve mais negros trazidos para o Brasil para serem escravizados – estão reunidas as ideias de travessia, mar e cemitério. O mar e o cemitério aparecem, na linguagem, corporificados nos navios negreiros. Para abandonar os horrores de tais navios e seguir pelo navio-mundo, Ferdinand sugere a prática da ecologia decolonial, que converge os movimentos que cuidam do meio ambiente e aqueles que cuidam do ser humano. Para o martinicano, a cura da Terra está associada à cura das pessoas porque ambas integram um mesmo corpo: “Controlar e explorar o ventre das mães racializadas e explorar o ventre da Terra fazem parte de uma mesma destruição”, escreve.

Frantz Fanon, autor caribenho e uma dentre as diversas referências citadas por Ferdinand, escreve em Os Condenados da Terra que para decolonizar pode ser necessário abalar o mundo: “O colonizado, portanto, descobre que sua vida, sua respiração, as batidas de seu coração são as mesmas que as do colono. Descobre que a pele do colono não vale mais que a pele do nativo. Tal descoberta introduz um abalo essencial no mundo”.

Frantz Fanon é uma das referências de Malcom Ferdinand Foto: Acervo Estadão

Diferentemente do termo descolonial, o termo decolonial busca uma forma de pensar a existência considerando o legado colonial. Estudiosos do termo, como a professora Catherine Walsh, da Universidade Andina Simón Bolívar no Equador, pautam sua escolha pela palavra decolonial porque a inclusão do “s” pode levar ao entendimento de desfazer ou reverter o colonial – como se fosse possível que os traços da colonialidade, corporificados na sociedade, deixassem de existir.

Pela primeira vez no Brasil, Ferdinand diz que os rostos das pessoas lembram sua própria família. “É uma sensação incrível. É como perceber que na minha casa existia um novo quarto e eu não sabia”. O professor e pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, conversou com o Estadão, parte em inglês, parte em português – língua que aprendeu nos últimos meses, quando soube que viajaria para o país.

Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários e das pessoas pretas

Você se lembra de alguma experiência que o aproximou do tema ecologia?

Nasci na Martinica, uma pequena ilha no Caribe que tem 400 mil pessoas. É possível fazer um tour na Martinica em 2 horas. Então, quando tem um problema com o meio ambiente, é possível ver muito rápido. É muito fácil identificar os problemas no desenvolvimento urbano, a diminuição de lugares onde você pode caçar. Eu costumava caçar caranguejo com minha tia e não pude fazer isso mais. A Martinica é uma ilha no mundo e vai ser afetada pelos problemas do mundo também. Você enfrenta os ciclos dos furacões. Como você sabe, o aquecimento global vai trazer mais furacões.

Você escreve no seu livro que a poluição química escoa nos aquíferos e nos cordões umbilicais. Pode explicar essa imagem?

É uma imagem, mas não é só uma imagem. Isso é a realidade. A poluição química entra em todos os lugares e isso significa que o caminho para a vida já é um caminho com poluição, com agrotóxicos, com coisas que matam, pesticidas. E isso é assim na Martinica e em muitos outros lugares do mundo, inclusive aqui no Brasil com DDT (agrotóxico dicloro-difenil-tricloetano), com o colapso de barragens em Minas Gerais. Todas essas coisas são difíceis testemunhos de nosso tempo.

Por que o controle do ventre das mães racializadas ao controle do ventre da Terra fazem parte da mesma destruição?

Se você se lembrar da escravidão, para destruir a terra com as plantations, os senhores controlavam os úteros das mulheres pretas e indígenas. Então, os senhores transformaram os úteros das mulheres em uma fábrica para produzir trabalhadores que continuariam produzindo seus bens. Tudo por dinheiro ou ganhos pessoais.

Navio Negreiro, obra de Rugendas de 1830  Foto: Itaú Cultural

Como a prática ecológica pode reforçar o colonialismo?

Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários, as pessoas pretas e também as mulheres pobres e idosas. Há uma prática clássica, que vai inventar uma maneira de pensar ecologia sem a população, sem pessoas. Esse horizonte de prática ecológica não considera uma vida coletiva, mas a proteção de um espaço vazio. E para produzir ou criar um espaço vazio é preciso excluir as pessoas. Essa é a maneira pela qual a prática colonial é reproduzida.

Quais os danos do espaço de fala reduzido ou até inexistente para pensadores não europeus sobre ecologia?

Para mim é o resultado de um sistema da supremacia branca que mantém uma invisibilização das pessoas pretas ou originárias. É uma forma de excluir do palco, do discurso e da posição de representação. Você se lembra do filme “O Rei Leão”? É uma coisa muito interessante, é um filme infantil com grande audiência e visibilidade global. Um filme na África sem pessoas, sem pessoas! Isso significa que na África você só tem vida selvagem. É incrível.

Quão profundamente ainda estamos imersos numa mentalidade colonialista? Pode dar exemplos?

Hoje, por exemplo, eu vi nos noticiários que um policial branco, de folga, fora do trabalho, foi filmado com uma câmera linchando um homem preto e você pode ver o policial branco usando uma corda, açoitando, e com uma arma. Então, o imaginário ainda é colonial, porque ele reproduz algo da época escravagista, hoje em 2023. Então é normal, está incorporado. Isso é em nível individual, pessoal, mas coletivamente isso está incorporado, é o que eu chamo de habitar colonial. É uma forma de extrair recursos, de destruir coisas, não só as florestas, mas as comunidades humanas nas florestas. É a forma de construir um modo de vida, no qual tudo é transformado em recurso. É o mesmo método que era usado no passado e é usado em 2023. As formas são diferentes, mas os princípios são os mesmos.

O decréscimo da população de animais selvagens e o aumento de espécies de animais ameaçados de extinção tem se agravado nas últimas décadas. Como esse cenário impacta a vida humana? E o que ele conta sobre quem somos?

Covid 19! Estamos na sexta extinção em massa no mundo. As espécies estão mudando de forma dramática globalmente, mas as pessoas não têm contribuições iguais para essa mudança e é importante perceber a diferença. Eu não acho que as pessoas nas favelas perto do Rio ou São Paulo são as que estão destruindo o mundo, mas elas vão sofrer as consequências. Só pense nas enchentes em São Paulo em março. Eu não acho que elas são as pessoas que estão causando a extinção massiva de espécies no mundo, mas elas vão sofrer as consequências da subida das águas como em São Paulo recentemente.

No livro e também no recente debate no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro você fala sobre a ruptura na relação dos escravizados com a terra e sobre a importância de reconstruir a conexão do corpo com a terra. Você fala em colher flores como uma forma de reaprender o amor por si mesmo. Qual a importância da relação do corpo com a terra?

Os povos originários, os povos dos quilombos já sabem disso faz muito, muito, muito tempo. Tem um conceito que se chama o corpo-território. É uma maneira de reconhecer a continuação, o corpo faz parte da terra. Quando a gente destrói o próprio corpo é também uma maneira de destruir a terra e quando a gente está destruindo a terra é uma maneira de destruir o próprio corpo. Então, quando a gente vai preservar, praticar uma forma do amor com a terra, colher flores é uma maneira de manifestar o amor. Tem muitas maneiras, essa é uma delas.

Quem poderá entrar na arca de Noé? Águas subindo, poluição química, sexta extinção em massa de espécies em curso... Para Malcom Ferdinand, doutor em filosofia política e ciência política nascido na Martinica, a imagem metafórica da arca de Noé como salvação impõe uma seleção e, por isso, ele prefere usar a imagem de outro tipo de embarcação, sugerindo o conceito de um navio-mundo: “Um navio onde se resgatam os corpos perdidos, onde a humildade alcança os corpos eleitos, onde se cuidam das fraturas coloniais, onde se pode tomar corpo no mundo e reencontrar uma Mãe Terra”, escreve.

Autor de Uma Ecologia Decolonial – Pensar a partir do Mundo Caribenho, Ferdinand esteve no Brasil para o lançamento de seu livro, que aborda o que ele chama de “dupla fratura colonial e ambiental da modernidade”. De um lado, a fratura colonial com a herança do colonialismo e da escravidão recebe a atenção de movimentos sociais e antirracistas; de outro lado, a fratura ambiental é atendida pelos movimentos ecológicos. No entanto, pela falta de união, ambos os movimentos perdem força.

O cientista político e engenheiro ambiental Malcolm Ferdinand  Foto: UBU Editora

A filósofa e ativista estadunidense Angela Davis escreve no prefácio do livro que o autor mostra como “o racismo, especificamente o colonialismo e a escravidão, ajudou a construir um mundo fundamentado na destruição ambiental”, destacando que os dois problemas estão relacionados e precisam ser vistos em conjunto para pensar novas formas de habitar a Terra. É sobre isso que fala o livro de Ferdinand ao singrar pela relação entre meio ambiente e colonialismo, usando a metáfora das embarcações. Diferentes navios, como a arca de Noé, o navio negreiro e o navio-mundo conduzem o leitor pela tempestade da modernidade.

Não é à toa que, dentre os significados do termo “calunga”, da cultura bantu – uma das que teve mais negros trazidos para o Brasil para serem escravizados – estão reunidas as ideias de travessia, mar e cemitério. O mar e o cemitério aparecem, na linguagem, corporificados nos navios negreiros. Para abandonar os horrores de tais navios e seguir pelo navio-mundo, Ferdinand sugere a prática da ecologia decolonial, que converge os movimentos que cuidam do meio ambiente e aqueles que cuidam do ser humano. Para o martinicano, a cura da Terra está associada à cura das pessoas porque ambas integram um mesmo corpo: “Controlar e explorar o ventre das mães racializadas e explorar o ventre da Terra fazem parte de uma mesma destruição”, escreve.

Frantz Fanon, autor caribenho e uma dentre as diversas referências citadas por Ferdinand, escreve em Os Condenados da Terra que para decolonizar pode ser necessário abalar o mundo: “O colonizado, portanto, descobre que sua vida, sua respiração, as batidas de seu coração são as mesmas que as do colono. Descobre que a pele do colono não vale mais que a pele do nativo. Tal descoberta introduz um abalo essencial no mundo”.

Frantz Fanon é uma das referências de Malcom Ferdinand Foto: Acervo Estadão

Diferentemente do termo descolonial, o termo decolonial busca uma forma de pensar a existência considerando o legado colonial. Estudiosos do termo, como a professora Catherine Walsh, da Universidade Andina Simón Bolívar no Equador, pautam sua escolha pela palavra decolonial porque a inclusão do “s” pode levar ao entendimento de desfazer ou reverter o colonial – como se fosse possível que os traços da colonialidade, corporificados na sociedade, deixassem de existir.

Pela primeira vez no Brasil, Ferdinand diz que os rostos das pessoas lembram sua própria família. “É uma sensação incrível. É como perceber que na minha casa existia um novo quarto e eu não sabia”. O professor e pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, conversou com o Estadão, parte em inglês, parte em português – língua que aprendeu nos últimos meses, quando soube que viajaria para o país.

Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários e das pessoas pretas

Você se lembra de alguma experiência que o aproximou do tema ecologia?

Nasci na Martinica, uma pequena ilha no Caribe que tem 400 mil pessoas. É possível fazer um tour na Martinica em 2 horas. Então, quando tem um problema com o meio ambiente, é possível ver muito rápido. É muito fácil identificar os problemas no desenvolvimento urbano, a diminuição de lugares onde você pode caçar. Eu costumava caçar caranguejo com minha tia e não pude fazer isso mais. A Martinica é uma ilha no mundo e vai ser afetada pelos problemas do mundo também. Você enfrenta os ciclos dos furacões. Como você sabe, o aquecimento global vai trazer mais furacões.

Você escreve no seu livro que a poluição química escoa nos aquíferos e nos cordões umbilicais. Pode explicar essa imagem?

É uma imagem, mas não é só uma imagem. Isso é a realidade. A poluição química entra em todos os lugares e isso significa que o caminho para a vida já é um caminho com poluição, com agrotóxicos, com coisas que matam, pesticidas. E isso é assim na Martinica e em muitos outros lugares do mundo, inclusive aqui no Brasil com DDT (agrotóxico dicloro-difenil-tricloetano), com o colapso de barragens em Minas Gerais. Todas essas coisas são difíceis testemunhos de nosso tempo.

Por que o controle do ventre das mães racializadas ao controle do ventre da Terra fazem parte da mesma destruição?

Se você se lembrar da escravidão, para destruir a terra com as plantations, os senhores controlavam os úteros das mulheres pretas e indígenas. Então, os senhores transformaram os úteros das mulheres em uma fábrica para produzir trabalhadores que continuariam produzindo seus bens. Tudo por dinheiro ou ganhos pessoais.

Navio Negreiro, obra de Rugendas de 1830  Foto: Itaú Cultural

Como a prática ecológica pode reforçar o colonialismo?

Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários, as pessoas pretas e também as mulheres pobres e idosas. Há uma prática clássica, que vai inventar uma maneira de pensar ecologia sem a população, sem pessoas. Esse horizonte de prática ecológica não considera uma vida coletiva, mas a proteção de um espaço vazio. E para produzir ou criar um espaço vazio é preciso excluir as pessoas. Essa é a maneira pela qual a prática colonial é reproduzida.

Quais os danos do espaço de fala reduzido ou até inexistente para pensadores não europeus sobre ecologia?

Para mim é o resultado de um sistema da supremacia branca que mantém uma invisibilização das pessoas pretas ou originárias. É uma forma de excluir do palco, do discurso e da posição de representação. Você se lembra do filme “O Rei Leão”? É uma coisa muito interessante, é um filme infantil com grande audiência e visibilidade global. Um filme na África sem pessoas, sem pessoas! Isso significa que na África você só tem vida selvagem. É incrível.

Quão profundamente ainda estamos imersos numa mentalidade colonialista? Pode dar exemplos?

Hoje, por exemplo, eu vi nos noticiários que um policial branco, de folga, fora do trabalho, foi filmado com uma câmera linchando um homem preto e você pode ver o policial branco usando uma corda, açoitando, e com uma arma. Então, o imaginário ainda é colonial, porque ele reproduz algo da época escravagista, hoje em 2023. Então é normal, está incorporado. Isso é em nível individual, pessoal, mas coletivamente isso está incorporado, é o que eu chamo de habitar colonial. É uma forma de extrair recursos, de destruir coisas, não só as florestas, mas as comunidades humanas nas florestas. É a forma de construir um modo de vida, no qual tudo é transformado em recurso. É o mesmo método que era usado no passado e é usado em 2023. As formas são diferentes, mas os princípios são os mesmos.

O decréscimo da população de animais selvagens e o aumento de espécies de animais ameaçados de extinção tem se agravado nas últimas décadas. Como esse cenário impacta a vida humana? E o que ele conta sobre quem somos?

Covid 19! Estamos na sexta extinção em massa no mundo. As espécies estão mudando de forma dramática globalmente, mas as pessoas não têm contribuições iguais para essa mudança e é importante perceber a diferença. Eu não acho que as pessoas nas favelas perto do Rio ou São Paulo são as que estão destruindo o mundo, mas elas vão sofrer as consequências. Só pense nas enchentes em São Paulo em março. Eu não acho que elas são as pessoas que estão causando a extinção massiva de espécies no mundo, mas elas vão sofrer as consequências da subida das águas como em São Paulo recentemente.

No livro e também no recente debate no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro você fala sobre a ruptura na relação dos escravizados com a terra e sobre a importância de reconstruir a conexão do corpo com a terra. Você fala em colher flores como uma forma de reaprender o amor por si mesmo. Qual a importância da relação do corpo com a terra?

Os povos originários, os povos dos quilombos já sabem disso faz muito, muito, muito tempo. Tem um conceito que se chama o corpo-território. É uma maneira de reconhecer a continuação, o corpo faz parte da terra. Quando a gente destrói o próprio corpo é também uma maneira de destruir a terra e quando a gente está destruindo a terra é uma maneira de destruir o próprio corpo. Então, quando a gente vai preservar, praticar uma forma do amor com a terra, colher flores é uma maneira de manifestar o amor. Tem muitas maneiras, essa é uma delas.

Quem poderá entrar na arca de Noé? Águas subindo, poluição química, sexta extinção em massa de espécies em curso... Para Malcom Ferdinand, doutor em filosofia política e ciência política nascido na Martinica, a imagem metafórica da arca de Noé como salvação impõe uma seleção e, por isso, ele prefere usar a imagem de outro tipo de embarcação, sugerindo o conceito de um navio-mundo: “Um navio onde se resgatam os corpos perdidos, onde a humildade alcança os corpos eleitos, onde se cuidam das fraturas coloniais, onde se pode tomar corpo no mundo e reencontrar uma Mãe Terra”, escreve.

Autor de Uma Ecologia Decolonial – Pensar a partir do Mundo Caribenho, Ferdinand esteve no Brasil para o lançamento de seu livro, que aborda o que ele chama de “dupla fratura colonial e ambiental da modernidade”. De um lado, a fratura colonial com a herança do colonialismo e da escravidão recebe a atenção de movimentos sociais e antirracistas; de outro lado, a fratura ambiental é atendida pelos movimentos ecológicos. No entanto, pela falta de união, ambos os movimentos perdem força.

O cientista político e engenheiro ambiental Malcolm Ferdinand  Foto: UBU Editora

A filósofa e ativista estadunidense Angela Davis escreve no prefácio do livro que o autor mostra como “o racismo, especificamente o colonialismo e a escravidão, ajudou a construir um mundo fundamentado na destruição ambiental”, destacando que os dois problemas estão relacionados e precisam ser vistos em conjunto para pensar novas formas de habitar a Terra. É sobre isso que fala o livro de Ferdinand ao singrar pela relação entre meio ambiente e colonialismo, usando a metáfora das embarcações. Diferentes navios, como a arca de Noé, o navio negreiro e o navio-mundo conduzem o leitor pela tempestade da modernidade.

Não é à toa que, dentre os significados do termo “calunga”, da cultura bantu – uma das que teve mais negros trazidos para o Brasil para serem escravizados – estão reunidas as ideias de travessia, mar e cemitério. O mar e o cemitério aparecem, na linguagem, corporificados nos navios negreiros. Para abandonar os horrores de tais navios e seguir pelo navio-mundo, Ferdinand sugere a prática da ecologia decolonial, que converge os movimentos que cuidam do meio ambiente e aqueles que cuidam do ser humano. Para o martinicano, a cura da Terra está associada à cura das pessoas porque ambas integram um mesmo corpo: “Controlar e explorar o ventre das mães racializadas e explorar o ventre da Terra fazem parte de uma mesma destruição”, escreve.

Frantz Fanon, autor caribenho e uma dentre as diversas referências citadas por Ferdinand, escreve em Os Condenados da Terra que para decolonizar pode ser necessário abalar o mundo: “O colonizado, portanto, descobre que sua vida, sua respiração, as batidas de seu coração são as mesmas que as do colono. Descobre que a pele do colono não vale mais que a pele do nativo. Tal descoberta introduz um abalo essencial no mundo”.

Frantz Fanon é uma das referências de Malcom Ferdinand Foto: Acervo Estadão

Diferentemente do termo descolonial, o termo decolonial busca uma forma de pensar a existência considerando o legado colonial. Estudiosos do termo, como a professora Catherine Walsh, da Universidade Andina Simón Bolívar no Equador, pautam sua escolha pela palavra decolonial porque a inclusão do “s” pode levar ao entendimento de desfazer ou reverter o colonial – como se fosse possível que os traços da colonialidade, corporificados na sociedade, deixassem de existir.

Pela primeira vez no Brasil, Ferdinand diz que os rostos das pessoas lembram sua própria família. “É uma sensação incrível. É como perceber que na minha casa existia um novo quarto e eu não sabia”. O professor e pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, conversou com o Estadão, parte em inglês, parte em português – língua que aprendeu nos últimos meses, quando soube que viajaria para o país.

Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários e das pessoas pretas

Você se lembra de alguma experiência que o aproximou do tema ecologia?

Nasci na Martinica, uma pequena ilha no Caribe que tem 400 mil pessoas. É possível fazer um tour na Martinica em 2 horas. Então, quando tem um problema com o meio ambiente, é possível ver muito rápido. É muito fácil identificar os problemas no desenvolvimento urbano, a diminuição de lugares onde você pode caçar. Eu costumava caçar caranguejo com minha tia e não pude fazer isso mais. A Martinica é uma ilha no mundo e vai ser afetada pelos problemas do mundo também. Você enfrenta os ciclos dos furacões. Como você sabe, o aquecimento global vai trazer mais furacões.

Você escreve no seu livro que a poluição química escoa nos aquíferos e nos cordões umbilicais. Pode explicar essa imagem?

É uma imagem, mas não é só uma imagem. Isso é a realidade. A poluição química entra em todos os lugares e isso significa que o caminho para a vida já é um caminho com poluição, com agrotóxicos, com coisas que matam, pesticidas. E isso é assim na Martinica e em muitos outros lugares do mundo, inclusive aqui no Brasil com DDT (agrotóxico dicloro-difenil-tricloetano), com o colapso de barragens em Minas Gerais. Todas essas coisas são difíceis testemunhos de nosso tempo.

Por que o controle do ventre das mães racializadas ao controle do ventre da Terra fazem parte da mesma destruição?

Se você se lembrar da escravidão, para destruir a terra com as plantations, os senhores controlavam os úteros das mulheres pretas e indígenas. Então, os senhores transformaram os úteros das mulheres em uma fábrica para produzir trabalhadores que continuariam produzindo seus bens. Tudo por dinheiro ou ganhos pessoais.

Navio Negreiro, obra de Rugendas de 1830  Foto: Itaú Cultural

Como a prática ecológica pode reforçar o colonialismo?

Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários, as pessoas pretas e também as mulheres pobres e idosas. Há uma prática clássica, que vai inventar uma maneira de pensar ecologia sem a população, sem pessoas. Esse horizonte de prática ecológica não considera uma vida coletiva, mas a proteção de um espaço vazio. E para produzir ou criar um espaço vazio é preciso excluir as pessoas. Essa é a maneira pela qual a prática colonial é reproduzida.

Quais os danos do espaço de fala reduzido ou até inexistente para pensadores não europeus sobre ecologia?

Para mim é o resultado de um sistema da supremacia branca que mantém uma invisibilização das pessoas pretas ou originárias. É uma forma de excluir do palco, do discurso e da posição de representação. Você se lembra do filme “O Rei Leão”? É uma coisa muito interessante, é um filme infantil com grande audiência e visibilidade global. Um filme na África sem pessoas, sem pessoas! Isso significa que na África você só tem vida selvagem. É incrível.

Quão profundamente ainda estamos imersos numa mentalidade colonialista? Pode dar exemplos?

Hoje, por exemplo, eu vi nos noticiários que um policial branco, de folga, fora do trabalho, foi filmado com uma câmera linchando um homem preto e você pode ver o policial branco usando uma corda, açoitando, e com uma arma. Então, o imaginário ainda é colonial, porque ele reproduz algo da época escravagista, hoje em 2023. Então é normal, está incorporado. Isso é em nível individual, pessoal, mas coletivamente isso está incorporado, é o que eu chamo de habitar colonial. É uma forma de extrair recursos, de destruir coisas, não só as florestas, mas as comunidades humanas nas florestas. É a forma de construir um modo de vida, no qual tudo é transformado em recurso. É o mesmo método que era usado no passado e é usado em 2023. As formas são diferentes, mas os princípios são os mesmos.

O decréscimo da população de animais selvagens e o aumento de espécies de animais ameaçados de extinção tem se agravado nas últimas décadas. Como esse cenário impacta a vida humana? E o que ele conta sobre quem somos?

Covid 19! Estamos na sexta extinção em massa no mundo. As espécies estão mudando de forma dramática globalmente, mas as pessoas não têm contribuições iguais para essa mudança e é importante perceber a diferença. Eu não acho que as pessoas nas favelas perto do Rio ou São Paulo são as que estão destruindo o mundo, mas elas vão sofrer as consequências. Só pense nas enchentes em São Paulo em março. Eu não acho que elas são as pessoas que estão causando a extinção massiva de espécies no mundo, mas elas vão sofrer as consequências da subida das águas como em São Paulo recentemente.

No livro e também no recente debate no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro você fala sobre a ruptura na relação dos escravizados com a terra e sobre a importância de reconstruir a conexão do corpo com a terra. Você fala em colher flores como uma forma de reaprender o amor por si mesmo. Qual a importância da relação do corpo com a terra?

Os povos originários, os povos dos quilombos já sabem disso faz muito, muito, muito tempo. Tem um conceito que se chama o corpo-território. É uma maneira de reconhecer a continuação, o corpo faz parte da terra. Quando a gente destrói o próprio corpo é também uma maneira de destruir a terra e quando a gente está destruindo a terra é uma maneira de destruir o próprio corpo. Então, quando a gente vai preservar, praticar uma forma do amor com a terra, colher flores é uma maneira de manifestar o amor. Tem muitas maneiras, essa é uma delas.

Quem poderá entrar na arca de Noé? Águas subindo, poluição química, sexta extinção em massa de espécies em curso... Para Malcom Ferdinand, doutor em filosofia política e ciência política nascido na Martinica, a imagem metafórica da arca de Noé como salvação impõe uma seleção e, por isso, ele prefere usar a imagem de outro tipo de embarcação, sugerindo o conceito de um navio-mundo: “Um navio onde se resgatam os corpos perdidos, onde a humildade alcança os corpos eleitos, onde se cuidam das fraturas coloniais, onde se pode tomar corpo no mundo e reencontrar uma Mãe Terra”, escreve.

Autor de Uma Ecologia Decolonial – Pensar a partir do Mundo Caribenho, Ferdinand esteve no Brasil para o lançamento de seu livro, que aborda o que ele chama de “dupla fratura colonial e ambiental da modernidade”. De um lado, a fratura colonial com a herança do colonialismo e da escravidão recebe a atenção de movimentos sociais e antirracistas; de outro lado, a fratura ambiental é atendida pelos movimentos ecológicos. No entanto, pela falta de união, ambos os movimentos perdem força.

O cientista político e engenheiro ambiental Malcolm Ferdinand  Foto: UBU Editora

A filósofa e ativista estadunidense Angela Davis escreve no prefácio do livro que o autor mostra como “o racismo, especificamente o colonialismo e a escravidão, ajudou a construir um mundo fundamentado na destruição ambiental”, destacando que os dois problemas estão relacionados e precisam ser vistos em conjunto para pensar novas formas de habitar a Terra. É sobre isso que fala o livro de Ferdinand ao singrar pela relação entre meio ambiente e colonialismo, usando a metáfora das embarcações. Diferentes navios, como a arca de Noé, o navio negreiro e o navio-mundo conduzem o leitor pela tempestade da modernidade.

Não é à toa que, dentre os significados do termo “calunga”, da cultura bantu – uma das que teve mais negros trazidos para o Brasil para serem escravizados – estão reunidas as ideias de travessia, mar e cemitério. O mar e o cemitério aparecem, na linguagem, corporificados nos navios negreiros. Para abandonar os horrores de tais navios e seguir pelo navio-mundo, Ferdinand sugere a prática da ecologia decolonial, que converge os movimentos que cuidam do meio ambiente e aqueles que cuidam do ser humano. Para o martinicano, a cura da Terra está associada à cura das pessoas porque ambas integram um mesmo corpo: “Controlar e explorar o ventre das mães racializadas e explorar o ventre da Terra fazem parte de uma mesma destruição”, escreve.

Frantz Fanon, autor caribenho e uma dentre as diversas referências citadas por Ferdinand, escreve em Os Condenados da Terra que para decolonizar pode ser necessário abalar o mundo: “O colonizado, portanto, descobre que sua vida, sua respiração, as batidas de seu coração são as mesmas que as do colono. Descobre que a pele do colono não vale mais que a pele do nativo. Tal descoberta introduz um abalo essencial no mundo”.

Frantz Fanon é uma das referências de Malcom Ferdinand Foto: Acervo Estadão

Diferentemente do termo descolonial, o termo decolonial busca uma forma de pensar a existência considerando o legado colonial. Estudiosos do termo, como a professora Catherine Walsh, da Universidade Andina Simón Bolívar no Equador, pautam sua escolha pela palavra decolonial porque a inclusão do “s” pode levar ao entendimento de desfazer ou reverter o colonial – como se fosse possível que os traços da colonialidade, corporificados na sociedade, deixassem de existir.

Pela primeira vez no Brasil, Ferdinand diz que os rostos das pessoas lembram sua própria família. “É uma sensação incrível. É como perceber que na minha casa existia um novo quarto e eu não sabia”. O professor e pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique, na França, conversou com o Estadão, parte em inglês, parte em português – língua que aprendeu nos últimos meses, quando soube que viajaria para o país.

Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários e das pessoas pretas

Você se lembra de alguma experiência que o aproximou do tema ecologia?

Nasci na Martinica, uma pequena ilha no Caribe que tem 400 mil pessoas. É possível fazer um tour na Martinica em 2 horas. Então, quando tem um problema com o meio ambiente, é possível ver muito rápido. É muito fácil identificar os problemas no desenvolvimento urbano, a diminuição de lugares onde você pode caçar. Eu costumava caçar caranguejo com minha tia e não pude fazer isso mais. A Martinica é uma ilha no mundo e vai ser afetada pelos problemas do mundo também. Você enfrenta os ciclos dos furacões. Como você sabe, o aquecimento global vai trazer mais furacões.

Você escreve no seu livro que a poluição química escoa nos aquíferos e nos cordões umbilicais. Pode explicar essa imagem?

É uma imagem, mas não é só uma imagem. Isso é a realidade. A poluição química entra em todos os lugares e isso significa que o caminho para a vida já é um caminho com poluição, com agrotóxicos, com coisas que matam, pesticidas. E isso é assim na Martinica e em muitos outros lugares do mundo, inclusive aqui no Brasil com DDT (agrotóxico dicloro-difenil-tricloetano), com o colapso de barragens em Minas Gerais. Todas essas coisas são difíceis testemunhos de nosso tempo.

Por que o controle do ventre das mães racializadas ao controle do ventre da Terra fazem parte da mesma destruição?

Se você se lembrar da escravidão, para destruir a terra com as plantations, os senhores controlavam os úteros das mulheres pretas e indígenas. Então, os senhores transformaram os úteros das mulheres em uma fábrica para produzir trabalhadores que continuariam produzindo seus bens. Tudo por dinheiro ou ganhos pessoais.

Navio Negreiro, obra de Rugendas de 1830  Foto: Itaú Cultural

Como a prática ecológica pode reforçar o colonialismo?

Há muitas maneiras de praticar ecologia. Uma delas não considera as condições de vida de uma parte da população, especificamente os povos originários, as pessoas pretas e também as mulheres pobres e idosas. Há uma prática clássica, que vai inventar uma maneira de pensar ecologia sem a população, sem pessoas. Esse horizonte de prática ecológica não considera uma vida coletiva, mas a proteção de um espaço vazio. E para produzir ou criar um espaço vazio é preciso excluir as pessoas. Essa é a maneira pela qual a prática colonial é reproduzida.

Quais os danos do espaço de fala reduzido ou até inexistente para pensadores não europeus sobre ecologia?

Para mim é o resultado de um sistema da supremacia branca que mantém uma invisibilização das pessoas pretas ou originárias. É uma forma de excluir do palco, do discurso e da posição de representação. Você se lembra do filme “O Rei Leão”? É uma coisa muito interessante, é um filme infantil com grande audiência e visibilidade global. Um filme na África sem pessoas, sem pessoas! Isso significa que na África você só tem vida selvagem. É incrível.

Quão profundamente ainda estamos imersos numa mentalidade colonialista? Pode dar exemplos?

Hoje, por exemplo, eu vi nos noticiários que um policial branco, de folga, fora do trabalho, foi filmado com uma câmera linchando um homem preto e você pode ver o policial branco usando uma corda, açoitando, e com uma arma. Então, o imaginário ainda é colonial, porque ele reproduz algo da época escravagista, hoje em 2023. Então é normal, está incorporado. Isso é em nível individual, pessoal, mas coletivamente isso está incorporado, é o que eu chamo de habitar colonial. É uma forma de extrair recursos, de destruir coisas, não só as florestas, mas as comunidades humanas nas florestas. É a forma de construir um modo de vida, no qual tudo é transformado em recurso. É o mesmo método que era usado no passado e é usado em 2023. As formas são diferentes, mas os princípios são os mesmos.

O decréscimo da população de animais selvagens e o aumento de espécies de animais ameaçados de extinção tem se agravado nas últimas décadas. Como esse cenário impacta a vida humana? E o que ele conta sobre quem somos?

Covid 19! Estamos na sexta extinção em massa no mundo. As espécies estão mudando de forma dramática globalmente, mas as pessoas não têm contribuições iguais para essa mudança e é importante perceber a diferença. Eu não acho que as pessoas nas favelas perto do Rio ou São Paulo são as que estão destruindo o mundo, mas elas vão sofrer as consequências. Só pense nas enchentes em São Paulo em março. Eu não acho que elas são as pessoas que estão causando a extinção massiva de espécies no mundo, mas elas vão sofrer as consequências da subida das águas como em São Paulo recentemente.

No livro e também no recente debate no Museu do Amanhã no Rio de Janeiro você fala sobre a ruptura na relação dos escravizados com a terra e sobre a importância de reconstruir a conexão do corpo com a terra. Você fala em colher flores como uma forma de reaprender o amor por si mesmo. Qual a importância da relação do corpo com a terra?

Os povos originários, os povos dos quilombos já sabem disso faz muito, muito, muito tempo. Tem um conceito que se chama o corpo-território. É uma maneira de reconhecer a continuação, o corpo faz parte da terra. Quando a gente destrói o próprio corpo é também uma maneira de destruir a terra e quando a gente está destruindo a terra é uma maneira de destruir o próprio corpo. Então, quando a gente vai preservar, praticar uma forma do amor com a terra, colher flores é uma maneira de manifestar o amor. Tem muitas maneiras, essa é uma delas.

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