Entenda como os objetos contam a história de gerações de famílias


Richard Rabinowitz mostra como utensílios fazem parte do imaginário de imigrantes que vivem nos EUA

Por Diane Cole

THE WASHINGTON POST - E se Marcel Proust, em vez de crescer na sofisticada e cosmopolita Paris, tivesse sido filho de pais imigrantes que o criaram desde a pobreza de um cortiço de Nova York até a respeitabilidade da classe média no Brooklyn? Será que a enxurrada de memórias que para Proust se tornou Em Busca do Tempo Perdido teria sido provocada não pelo sabor de uma petite madeleine embebida em chá, mas, sim, como nas memórias profundamente comoventes do historiador Richard Rabinowitz, Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story, pela descoberta acidental de um abridor de garrafas com cabo de madeira quase centenário?

Rabinowitz tropeçou no objeto em 2015, enquanto esvaziava o apartamento de sua mãe na Flórida, após sua morte aos 100 anos de idade. “Parecia familiar, como se eu estivesse apertando a mão de um velho amigo”, escreve ele. Segurá-lo nos dedos liberou uma onda de memórias familiares, começando com a lembrança chorosa de sua mãe: ainda operária de uma fábrica de roupas em 1934, aos 18 anos, ela o comprou por 20 centavos, depois de barganhar 25 centavos. Era um presente para sua mãe frugal e pragmática.

Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles

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Por que esse utensílio de cozinha comum carregava tanto significado e emoção para sua mãe e, por sua vez, para ele, como se fosse, digamos, uma preciosa joia de herança, passada de geração em geração? Em sua carreira de historiador e curador na Sociedade Histórica de Nova York e em outros museus, Rabinowitz havia aprendido, como ele mesmo diz, que “as histórias se ligam aos objetos”. E os relatos que os acompanham podem revelar relacionamentos íntimos, aspirações e muito mais.

É o que Rabinowitz fez, capítulo a capítulo, apresentando a jornada geracional de sua família da Europa Oriental para a América através das lentes de uma miscelânea de objetos, que vão desde um projétil de artilharia da Primeira Guerra Mundial até uma caixa de charutos cheia de bugigangas e um televisor Magnavox de meados do século. Esses itens ilustram a progressão da família ao longo das décadas e continentes, são adereços de palco que enraízam cada personagem em determinado tempo e lugar. Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles. É uma técnica que os genealogistas que tentam reconstruir a vida de seus ancestrais acharão particularmente instrutiva.

Relógios de bolso expostos em uma feira de antiguidades Foto: PAULO LIEBERT/ESTADÃO
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Rabinowitz começa com o abridor de garrafas. Ele enquadra o presente de sua mãe quase adulta, Sarah, para sua avó Shenka no contexto da vida imigrante: a compra simboliza a sua aspiração para se integrar à vida americana moderna, mesmo que o aperto financeiro da Depressão as obrigasse a pechinchar até o último centavo. O fato de ser um utensílio de cozinha também captura o vínculo inquebrável entre a mãe e a avó, que se ajudavam nos afazeres domésticos. É, portanto, um símbolo de sua devoção mútua, sua praticidade e frugalidade e seus papéis mutáveis dentro da família. “Não era mais a filha dependente, aos dezoito anos”, escreve Rabinowitz. “Ela estava guiando o progresso de sua mãe na América, assim como o dela mesma”.

Em contraste, Rabinowitz usa uma traiçoeira granada de artilharia alemã de 20 quilos para dramatizar a mistura explosiva – literalmente – de turbulência política e antissemitismo que empurrou seus ancestrais judeus da Polônia para os Estados Unidos. Esse capítulo da história da família aconteceu em 1920, na vila polonesa de Wysokie Mazowieckie, onde metade dos habitantes eram judeus. Rabinowitz conta que seu bisavô Isaac encontrou um explosivo perdido, que sobrara da guerra. Ele queria usar a cobertura de latão em sua loja de metal. Mas a bomba explode quando ele a levanta, a explosão o esmaga no chão, onde ele morre com a neta de 4 anos segurando sua mão, tentando confortá-lo.

A cena trágica foi a primeira lembrança de Sarah, mas apenas uma entre muitas calamidades que se abateram sobre a família. Durante e depois da Primeira Guerra Mundial, uma multidão de tropas e milícias de territórios vizinhos marcharam pela vila, saqueando e aterrorizando tudo que encontravam pelo caminho. Pior de tudo, em agosto de 1920, os cossacos russos avançaram, instigando um pogrom brutal e apreendendo 230 homens judeus como reféns, um dos quais era Dovid, marido de Shenka e pai de Sarah.

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Pintura Calle De París, de Joaquim Torres Garcia, que faz alusão à cena da cidade luz  Foto: Galeria Sur

Era o que Sarah chamava de “tempos difíceis” de sua infância. Sem Dovid – logo depois que voltou do cativeiro, ele partiu para a América sozinho, só trazendo o resto da família em 1928 – ela efetivamente se tornou a parceira de Shenka, pois as duas juntas enfrentaram fome e escassez enquanto cuidavam uma da outra e dos dois irmãos mais novos de Sarah.

Não é de se admirar, então, que quando todos eles finalmente se reencontram em um cortiço do Lower East Side de Nova York, Dovid, até então o arrimo de família, se viu relegado ao papel de forasteiro dentro da própria casa. Rabinowitz captura comicamente sua presença em um capítulo centrado no fato de que, como Sarah dizia, seu pai não “tinha noção de nada” – nem dos gostos dos filhos, cada vez mais assimilados à vida americana.

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E assim as décadas de vida familiar progridem, objeto por objeto. O futuro marido de Sarah, David Rabinowitz, a corteja com um frasco de perfume caro, símbolo de suas esperanças de maior segurança financeira ao iniciarem a vida familiar em um novo apartamento no Brooklyn. Durante a Segunda Guerra Mundial, as mães de todo o prédio estremecem ao som do apito do carteiro, temendo a chegada da notícia da morte de um marido, um irmão, um filho. Os anos 50 e 60 trazem mais confortos materiais, inclusive o Magnavox – que significa a crescente separação geracional entre os pais de Rabinowitz, que passam seu tempo de lazer assistindo à tela da televisão, enquanto o próprio Rabinowitz, intelectual em ascensão, toca e ouve seus LPs clássicos em solitária introspecção.

Às vezes, a prosa de Rabinowitz fica um pouco prolixa em sua aspiração à eloquência. Mas sua evocação ternamente detalhada de tempos que não existem mais nos lembra que nós também temos as ferramentas para abrir o passado e reviver o que pensávamos ter esquecido.

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Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story

Richard Rabinowitz

Belknap - 325 páginas - US $29.95

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Diane Cole é a autora do livro de memórias After Great Pain: A New Life Emerges.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - E se Marcel Proust, em vez de crescer na sofisticada e cosmopolita Paris, tivesse sido filho de pais imigrantes que o criaram desde a pobreza de um cortiço de Nova York até a respeitabilidade da classe média no Brooklyn? Será que a enxurrada de memórias que para Proust se tornou Em Busca do Tempo Perdido teria sido provocada não pelo sabor de uma petite madeleine embebida em chá, mas, sim, como nas memórias profundamente comoventes do historiador Richard Rabinowitz, Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story, pela descoberta acidental de um abridor de garrafas com cabo de madeira quase centenário?

Rabinowitz tropeçou no objeto em 2015, enquanto esvaziava o apartamento de sua mãe na Flórida, após sua morte aos 100 anos de idade. “Parecia familiar, como se eu estivesse apertando a mão de um velho amigo”, escreve ele. Segurá-lo nos dedos liberou uma onda de memórias familiares, começando com a lembrança chorosa de sua mãe: ainda operária de uma fábrica de roupas em 1934, aos 18 anos, ela o comprou por 20 centavos, depois de barganhar 25 centavos. Era um presente para sua mãe frugal e pragmática.

Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles

Por que esse utensílio de cozinha comum carregava tanto significado e emoção para sua mãe e, por sua vez, para ele, como se fosse, digamos, uma preciosa joia de herança, passada de geração em geração? Em sua carreira de historiador e curador na Sociedade Histórica de Nova York e em outros museus, Rabinowitz havia aprendido, como ele mesmo diz, que “as histórias se ligam aos objetos”. E os relatos que os acompanham podem revelar relacionamentos íntimos, aspirações e muito mais.

É o que Rabinowitz fez, capítulo a capítulo, apresentando a jornada geracional de sua família da Europa Oriental para a América através das lentes de uma miscelânea de objetos, que vão desde um projétil de artilharia da Primeira Guerra Mundial até uma caixa de charutos cheia de bugigangas e um televisor Magnavox de meados do século. Esses itens ilustram a progressão da família ao longo das décadas e continentes, são adereços de palco que enraízam cada personagem em determinado tempo e lugar. Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles. É uma técnica que os genealogistas que tentam reconstruir a vida de seus ancestrais acharão particularmente instrutiva.

Relógios de bolso expostos em uma feira de antiguidades Foto: PAULO LIEBERT/ESTADÃO

Rabinowitz começa com o abridor de garrafas. Ele enquadra o presente de sua mãe quase adulta, Sarah, para sua avó Shenka no contexto da vida imigrante: a compra simboliza a sua aspiração para se integrar à vida americana moderna, mesmo que o aperto financeiro da Depressão as obrigasse a pechinchar até o último centavo. O fato de ser um utensílio de cozinha também captura o vínculo inquebrável entre a mãe e a avó, que se ajudavam nos afazeres domésticos. É, portanto, um símbolo de sua devoção mútua, sua praticidade e frugalidade e seus papéis mutáveis dentro da família. “Não era mais a filha dependente, aos dezoito anos”, escreve Rabinowitz. “Ela estava guiando o progresso de sua mãe na América, assim como o dela mesma”.

Em contraste, Rabinowitz usa uma traiçoeira granada de artilharia alemã de 20 quilos para dramatizar a mistura explosiva – literalmente – de turbulência política e antissemitismo que empurrou seus ancestrais judeus da Polônia para os Estados Unidos. Esse capítulo da história da família aconteceu em 1920, na vila polonesa de Wysokie Mazowieckie, onde metade dos habitantes eram judeus. Rabinowitz conta que seu bisavô Isaac encontrou um explosivo perdido, que sobrara da guerra. Ele queria usar a cobertura de latão em sua loja de metal. Mas a bomba explode quando ele a levanta, a explosão o esmaga no chão, onde ele morre com a neta de 4 anos segurando sua mão, tentando confortá-lo.

A cena trágica foi a primeira lembrança de Sarah, mas apenas uma entre muitas calamidades que se abateram sobre a família. Durante e depois da Primeira Guerra Mundial, uma multidão de tropas e milícias de territórios vizinhos marcharam pela vila, saqueando e aterrorizando tudo que encontravam pelo caminho. Pior de tudo, em agosto de 1920, os cossacos russos avançaram, instigando um pogrom brutal e apreendendo 230 homens judeus como reféns, um dos quais era Dovid, marido de Shenka e pai de Sarah.

Pintura Calle De París, de Joaquim Torres Garcia, que faz alusão à cena da cidade luz  Foto: Galeria Sur

Era o que Sarah chamava de “tempos difíceis” de sua infância. Sem Dovid – logo depois que voltou do cativeiro, ele partiu para a América sozinho, só trazendo o resto da família em 1928 – ela efetivamente se tornou a parceira de Shenka, pois as duas juntas enfrentaram fome e escassez enquanto cuidavam uma da outra e dos dois irmãos mais novos de Sarah.

Não é de se admirar, então, que quando todos eles finalmente se reencontram em um cortiço do Lower East Side de Nova York, Dovid, até então o arrimo de família, se viu relegado ao papel de forasteiro dentro da própria casa. Rabinowitz captura comicamente sua presença em um capítulo centrado no fato de que, como Sarah dizia, seu pai não “tinha noção de nada” – nem dos gostos dos filhos, cada vez mais assimilados à vida americana.

E assim as décadas de vida familiar progridem, objeto por objeto. O futuro marido de Sarah, David Rabinowitz, a corteja com um frasco de perfume caro, símbolo de suas esperanças de maior segurança financeira ao iniciarem a vida familiar em um novo apartamento no Brooklyn. Durante a Segunda Guerra Mundial, as mães de todo o prédio estremecem ao som do apito do carteiro, temendo a chegada da notícia da morte de um marido, um irmão, um filho. Os anos 50 e 60 trazem mais confortos materiais, inclusive o Magnavox – que significa a crescente separação geracional entre os pais de Rabinowitz, que passam seu tempo de lazer assistindo à tela da televisão, enquanto o próprio Rabinowitz, intelectual em ascensão, toca e ouve seus LPs clássicos em solitária introspecção.

Às vezes, a prosa de Rabinowitz fica um pouco prolixa em sua aspiração à eloquência. Mas sua evocação ternamente detalhada de tempos que não existem mais nos lembra que nós também temos as ferramentas para abrir o passado e reviver o que pensávamos ter esquecido.

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Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story

Richard Rabinowitz

Belknap - 325 páginas - US $29.95

Diane Cole é a autora do livro de memórias After Great Pain: A New Life Emerges.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - E se Marcel Proust, em vez de crescer na sofisticada e cosmopolita Paris, tivesse sido filho de pais imigrantes que o criaram desde a pobreza de um cortiço de Nova York até a respeitabilidade da classe média no Brooklyn? Será que a enxurrada de memórias que para Proust se tornou Em Busca do Tempo Perdido teria sido provocada não pelo sabor de uma petite madeleine embebida em chá, mas, sim, como nas memórias profundamente comoventes do historiador Richard Rabinowitz, Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story, pela descoberta acidental de um abridor de garrafas com cabo de madeira quase centenário?

Rabinowitz tropeçou no objeto em 2015, enquanto esvaziava o apartamento de sua mãe na Flórida, após sua morte aos 100 anos de idade. “Parecia familiar, como se eu estivesse apertando a mão de um velho amigo”, escreve ele. Segurá-lo nos dedos liberou uma onda de memórias familiares, começando com a lembrança chorosa de sua mãe: ainda operária de uma fábrica de roupas em 1934, aos 18 anos, ela o comprou por 20 centavos, depois de barganhar 25 centavos. Era um presente para sua mãe frugal e pragmática.

Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles

Por que esse utensílio de cozinha comum carregava tanto significado e emoção para sua mãe e, por sua vez, para ele, como se fosse, digamos, uma preciosa joia de herança, passada de geração em geração? Em sua carreira de historiador e curador na Sociedade Histórica de Nova York e em outros museus, Rabinowitz havia aprendido, como ele mesmo diz, que “as histórias se ligam aos objetos”. E os relatos que os acompanham podem revelar relacionamentos íntimos, aspirações e muito mais.

É o que Rabinowitz fez, capítulo a capítulo, apresentando a jornada geracional de sua família da Europa Oriental para a América através das lentes de uma miscelânea de objetos, que vão desde um projétil de artilharia da Primeira Guerra Mundial até uma caixa de charutos cheia de bugigangas e um televisor Magnavox de meados do século. Esses itens ilustram a progressão da família ao longo das décadas e continentes, são adereços de palco que enraízam cada personagem em determinado tempo e lugar. Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles. É uma técnica que os genealogistas que tentam reconstruir a vida de seus ancestrais acharão particularmente instrutiva.

Relógios de bolso expostos em uma feira de antiguidades Foto: PAULO LIEBERT/ESTADÃO

Rabinowitz começa com o abridor de garrafas. Ele enquadra o presente de sua mãe quase adulta, Sarah, para sua avó Shenka no contexto da vida imigrante: a compra simboliza a sua aspiração para se integrar à vida americana moderna, mesmo que o aperto financeiro da Depressão as obrigasse a pechinchar até o último centavo. O fato de ser um utensílio de cozinha também captura o vínculo inquebrável entre a mãe e a avó, que se ajudavam nos afazeres domésticos. É, portanto, um símbolo de sua devoção mútua, sua praticidade e frugalidade e seus papéis mutáveis dentro da família. “Não era mais a filha dependente, aos dezoito anos”, escreve Rabinowitz. “Ela estava guiando o progresso de sua mãe na América, assim como o dela mesma”.

Em contraste, Rabinowitz usa uma traiçoeira granada de artilharia alemã de 20 quilos para dramatizar a mistura explosiva – literalmente – de turbulência política e antissemitismo que empurrou seus ancestrais judeus da Polônia para os Estados Unidos. Esse capítulo da história da família aconteceu em 1920, na vila polonesa de Wysokie Mazowieckie, onde metade dos habitantes eram judeus. Rabinowitz conta que seu bisavô Isaac encontrou um explosivo perdido, que sobrara da guerra. Ele queria usar a cobertura de latão em sua loja de metal. Mas a bomba explode quando ele a levanta, a explosão o esmaga no chão, onde ele morre com a neta de 4 anos segurando sua mão, tentando confortá-lo.

A cena trágica foi a primeira lembrança de Sarah, mas apenas uma entre muitas calamidades que se abateram sobre a família. Durante e depois da Primeira Guerra Mundial, uma multidão de tropas e milícias de territórios vizinhos marcharam pela vila, saqueando e aterrorizando tudo que encontravam pelo caminho. Pior de tudo, em agosto de 1920, os cossacos russos avançaram, instigando um pogrom brutal e apreendendo 230 homens judeus como reféns, um dos quais era Dovid, marido de Shenka e pai de Sarah.

Pintura Calle De París, de Joaquim Torres Garcia, que faz alusão à cena da cidade luz  Foto: Galeria Sur

Era o que Sarah chamava de “tempos difíceis” de sua infância. Sem Dovid – logo depois que voltou do cativeiro, ele partiu para a América sozinho, só trazendo o resto da família em 1928 – ela efetivamente se tornou a parceira de Shenka, pois as duas juntas enfrentaram fome e escassez enquanto cuidavam uma da outra e dos dois irmãos mais novos de Sarah.

Não é de se admirar, então, que quando todos eles finalmente se reencontram em um cortiço do Lower East Side de Nova York, Dovid, até então o arrimo de família, se viu relegado ao papel de forasteiro dentro da própria casa. Rabinowitz captura comicamente sua presença em um capítulo centrado no fato de que, como Sarah dizia, seu pai não “tinha noção de nada” – nem dos gostos dos filhos, cada vez mais assimilados à vida americana.

E assim as décadas de vida familiar progridem, objeto por objeto. O futuro marido de Sarah, David Rabinowitz, a corteja com um frasco de perfume caro, símbolo de suas esperanças de maior segurança financeira ao iniciarem a vida familiar em um novo apartamento no Brooklyn. Durante a Segunda Guerra Mundial, as mães de todo o prédio estremecem ao som do apito do carteiro, temendo a chegada da notícia da morte de um marido, um irmão, um filho. Os anos 50 e 60 trazem mais confortos materiais, inclusive o Magnavox – que significa a crescente separação geracional entre os pais de Rabinowitz, que passam seu tempo de lazer assistindo à tela da televisão, enquanto o próprio Rabinowitz, intelectual em ascensão, toca e ouve seus LPs clássicos em solitária introspecção.

Às vezes, a prosa de Rabinowitz fica um pouco prolixa em sua aspiração à eloquência. Mas sua evocação ternamente detalhada de tempos que não existem mais nos lembra que nós também temos as ferramentas para abrir o passado e reviver o que pensávamos ter esquecido.

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Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story

Richard Rabinowitz

Belknap - 325 páginas - US $29.95

Diane Cole é a autora do livro de memórias After Great Pain: A New Life Emerges.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - E se Marcel Proust, em vez de crescer na sofisticada e cosmopolita Paris, tivesse sido filho de pais imigrantes que o criaram desde a pobreza de um cortiço de Nova York até a respeitabilidade da classe média no Brooklyn? Será que a enxurrada de memórias que para Proust se tornou Em Busca do Tempo Perdido teria sido provocada não pelo sabor de uma petite madeleine embebida em chá, mas, sim, como nas memórias profundamente comoventes do historiador Richard Rabinowitz, Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story, pela descoberta acidental de um abridor de garrafas com cabo de madeira quase centenário?

Rabinowitz tropeçou no objeto em 2015, enquanto esvaziava o apartamento de sua mãe na Flórida, após sua morte aos 100 anos de idade. “Parecia familiar, como se eu estivesse apertando a mão de um velho amigo”, escreve ele. Segurá-lo nos dedos liberou uma onda de memórias familiares, começando com a lembrança chorosa de sua mãe: ainda operária de uma fábrica de roupas em 1934, aos 18 anos, ela o comprou por 20 centavos, depois de barganhar 25 centavos. Era um presente para sua mãe frugal e pragmática.

Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles

Por que esse utensílio de cozinha comum carregava tanto significado e emoção para sua mãe e, por sua vez, para ele, como se fosse, digamos, uma preciosa joia de herança, passada de geração em geração? Em sua carreira de historiador e curador na Sociedade Histórica de Nova York e em outros museus, Rabinowitz havia aprendido, como ele mesmo diz, que “as histórias se ligam aos objetos”. E os relatos que os acompanham podem revelar relacionamentos íntimos, aspirações e muito mais.

É o que Rabinowitz fez, capítulo a capítulo, apresentando a jornada geracional de sua família da Europa Oriental para a América através das lentes de uma miscelânea de objetos, que vão desde um projétil de artilharia da Primeira Guerra Mundial até uma caixa de charutos cheia de bugigangas e um televisor Magnavox de meados do século. Esses itens ilustram a progressão da família ao longo das décadas e continentes, são adereços de palco que enraízam cada personagem em determinado tempo e lugar. Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles. É uma técnica que os genealogistas que tentam reconstruir a vida de seus ancestrais acharão particularmente instrutiva.

Relógios de bolso expostos em uma feira de antiguidades Foto: PAULO LIEBERT/ESTADÃO

Rabinowitz começa com o abridor de garrafas. Ele enquadra o presente de sua mãe quase adulta, Sarah, para sua avó Shenka no contexto da vida imigrante: a compra simboliza a sua aspiração para se integrar à vida americana moderna, mesmo que o aperto financeiro da Depressão as obrigasse a pechinchar até o último centavo. O fato de ser um utensílio de cozinha também captura o vínculo inquebrável entre a mãe e a avó, que se ajudavam nos afazeres domésticos. É, portanto, um símbolo de sua devoção mútua, sua praticidade e frugalidade e seus papéis mutáveis dentro da família. “Não era mais a filha dependente, aos dezoito anos”, escreve Rabinowitz. “Ela estava guiando o progresso de sua mãe na América, assim como o dela mesma”.

Em contraste, Rabinowitz usa uma traiçoeira granada de artilharia alemã de 20 quilos para dramatizar a mistura explosiva – literalmente – de turbulência política e antissemitismo que empurrou seus ancestrais judeus da Polônia para os Estados Unidos. Esse capítulo da história da família aconteceu em 1920, na vila polonesa de Wysokie Mazowieckie, onde metade dos habitantes eram judeus. Rabinowitz conta que seu bisavô Isaac encontrou um explosivo perdido, que sobrara da guerra. Ele queria usar a cobertura de latão em sua loja de metal. Mas a bomba explode quando ele a levanta, a explosão o esmaga no chão, onde ele morre com a neta de 4 anos segurando sua mão, tentando confortá-lo.

A cena trágica foi a primeira lembrança de Sarah, mas apenas uma entre muitas calamidades que se abateram sobre a família. Durante e depois da Primeira Guerra Mundial, uma multidão de tropas e milícias de territórios vizinhos marcharam pela vila, saqueando e aterrorizando tudo que encontravam pelo caminho. Pior de tudo, em agosto de 1920, os cossacos russos avançaram, instigando um pogrom brutal e apreendendo 230 homens judeus como reféns, um dos quais era Dovid, marido de Shenka e pai de Sarah.

Pintura Calle De París, de Joaquim Torres Garcia, que faz alusão à cena da cidade luz  Foto: Galeria Sur

Era o que Sarah chamava de “tempos difíceis” de sua infância. Sem Dovid – logo depois que voltou do cativeiro, ele partiu para a América sozinho, só trazendo o resto da família em 1928 – ela efetivamente se tornou a parceira de Shenka, pois as duas juntas enfrentaram fome e escassez enquanto cuidavam uma da outra e dos dois irmãos mais novos de Sarah.

Não é de se admirar, então, que quando todos eles finalmente se reencontram em um cortiço do Lower East Side de Nova York, Dovid, até então o arrimo de família, se viu relegado ao papel de forasteiro dentro da própria casa. Rabinowitz captura comicamente sua presença em um capítulo centrado no fato de que, como Sarah dizia, seu pai não “tinha noção de nada” – nem dos gostos dos filhos, cada vez mais assimilados à vida americana.

E assim as décadas de vida familiar progridem, objeto por objeto. O futuro marido de Sarah, David Rabinowitz, a corteja com um frasco de perfume caro, símbolo de suas esperanças de maior segurança financeira ao iniciarem a vida familiar em um novo apartamento no Brooklyn. Durante a Segunda Guerra Mundial, as mães de todo o prédio estremecem ao som do apito do carteiro, temendo a chegada da notícia da morte de um marido, um irmão, um filho. Os anos 50 e 60 trazem mais confortos materiais, inclusive o Magnavox – que significa a crescente separação geracional entre os pais de Rabinowitz, que passam seu tempo de lazer assistindo à tela da televisão, enquanto o próprio Rabinowitz, intelectual em ascensão, toca e ouve seus LPs clássicos em solitária introspecção.

Às vezes, a prosa de Rabinowitz fica um pouco prolixa em sua aspiração à eloquência. Mas sua evocação ternamente detalhada de tempos que não existem mais nos lembra que nós também temos as ferramentas para abrir o passado e reviver o que pensávamos ter esquecido.

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Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story

Richard Rabinowitz

Belknap - 325 páginas - US $29.95

Diane Cole é a autora do livro de memórias After Great Pain: A New Life Emerges.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE WASHINGTON POST - E se Marcel Proust, em vez de crescer na sofisticada e cosmopolita Paris, tivesse sido filho de pais imigrantes que o criaram desde a pobreza de um cortiço de Nova York até a respeitabilidade da classe média no Brooklyn? Será que a enxurrada de memórias que para Proust se tornou Em Busca do Tempo Perdido teria sido provocada não pelo sabor de uma petite madeleine embebida em chá, mas, sim, como nas memórias profundamente comoventes do historiador Richard Rabinowitz, Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story, pela descoberta acidental de um abridor de garrafas com cabo de madeira quase centenário?

Rabinowitz tropeçou no objeto em 2015, enquanto esvaziava o apartamento de sua mãe na Flórida, após sua morte aos 100 anos de idade. “Parecia familiar, como se eu estivesse apertando a mão de um velho amigo”, escreve ele. Segurá-lo nos dedos liberou uma onda de memórias familiares, começando com a lembrança chorosa de sua mãe: ainda operária de uma fábrica de roupas em 1934, aos 18 anos, ela o comprou por 20 centavos, depois de barganhar 25 centavos. Era um presente para sua mãe frugal e pragmática.

Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles

Por que esse utensílio de cozinha comum carregava tanto significado e emoção para sua mãe e, por sua vez, para ele, como se fosse, digamos, uma preciosa joia de herança, passada de geração em geração? Em sua carreira de historiador e curador na Sociedade Histórica de Nova York e em outros museus, Rabinowitz havia aprendido, como ele mesmo diz, que “as histórias se ligam aos objetos”. E os relatos que os acompanham podem revelar relacionamentos íntimos, aspirações e muito mais.

É o que Rabinowitz fez, capítulo a capítulo, apresentando a jornada geracional de sua família da Europa Oriental para a América através das lentes de uma miscelânea de objetos, que vão desde um projétil de artilharia da Primeira Guerra Mundial até uma caixa de charutos cheia de bugigangas e um televisor Magnavox de meados do século. Esses itens ilustram a progressão da família ao longo das décadas e continentes, são adereços de palco que enraízam cada personagem em determinado tempo e lugar. Ao se concentrar nesses objetos, Rabinowitz consegue nos guiar pelas rotinas, dificuldades, tristezas e celebrações que se prendem a eles. É uma técnica que os genealogistas que tentam reconstruir a vida de seus ancestrais acharão particularmente instrutiva.

Relógios de bolso expostos em uma feira de antiguidades Foto: PAULO LIEBERT/ESTADÃO

Rabinowitz começa com o abridor de garrafas. Ele enquadra o presente de sua mãe quase adulta, Sarah, para sua avó Shenka no contexto da vida imigrante: a compra simboliza a sua aspiração para se integrar à vida americana moderna, mesmo que o aperto financeiro da Depressão as obrigasse a pechinchar até o último centavo. O fato de ser um utensílio de cozinha também captura o vínculo inquebrável entre a mãe e a avó, que se ajudavam nos afazeres domésticos. É, portanto, um símbolo de sua devoção mútua, sua praticidade e frugalidade e seus papéis mutáveis dentro da família. “Não era mais a filha dependente, aos dezoito anos”, escreve Rabinowitz. “Ela estava guiando o progresso de sua mãe na América, assim como o dela mesma”.

Em contraste, Rabinowitz usa uma traiçoeira granada de artilharia alemã de 20 quilos para dramatizar a mistura explosiva – literalmente – de turbulência política e antissemitismo que empurrou seus ancestrais judeus da Polônia para os Estados Unidos. Esse capítulo da história da família aconteceu em 1920, na vila polonesa de Wysokie Mazowieckie, onde metade dos habitantes eram judeus. Rabinowitz conta que seu bisavô Isaac encontrou um explosivo perdido, que sobrara da guerra. Ele queria usar a cobertura de latão em sua loja de metal. Mas a bomba explode quando ele a levanta, a explosão o esmaga no chão, onde ele morre com a neta de 4 anos segurando sua mão, tentando confortá-lo.

A cena trágica foi a primeira lembrança de Sarah, mas apenas uma entre muitas calamidades que se abateram sobre a família. Durante e depois da Primeira Guerra Mundial, uma multidão de tropas e milícias de territórios vizinhos marcharam pela vila, saqueando e aterrorizando tudo que encontravam pelo caminho. Pior de tudo, em agosto de 1920, os cossacos russos avançaram, instigando um pogrom brutal e apreendendo 230 homens judeus como reféns, um dos quais era Dovid, marido de Shenka e pai de Sarah.

Pintura Calle De París, de Joaquim Torres Garcia, que faz alusão à cena da cidade luz  Foto: Galeria Sur

Era o que Sarah chamava de “tempos difíceis” de sua infância. Sem Dovid – logo depois que voltou do cativeiro, ele partiu para a América sozinho, só trazendo o resto da família em 1928 – ela efetivamente se tornou a parceira de Shenka, pois as duas juntas enfrentaram fome e escassez enquanto cuidavam uma da outra e dos dois irmãos mais novos de Sarah.

Não é de se admirar, então, que quando todos eles finalmente se reencontram em um cortiço do Lower East Side de Nova York, Dovid, até então o arrimo de família, se viu relegado ao papel de forasteiro dentro da própria casa. Rabinowitz captura comicamente sua presença em um capítulo centrado no fato de que, como Sarah dizia, seu pai não “tinha noção de nada” – nem dos gostos dos filhos, cada vez mais assimilados à vida americana.

E assim as décadas de vida familiar progridem, objeto por objeto. O futuro marido de Sarah, David Rabinowitz, a corteja com um frasco de perfume caro, símbolo de suas esperanças de maior segurança financeira ao iniciarem a vida familiar em um novo apartamento no Brooklyn. Durante a Segunda Guerra Mundial, as mães de todo o prédio estremecem ao som do apito do carteiro, temendo a chegada da notícia da morte de um marido, um irmão, um filho. Os anos 50 e 60 trazem mais confortos materiais, inclusive o Magnavox – que significa a crescente separação geracional entre os pais de Rabinowitz, que passam seu tempo de lazer assistindo à tela da televisão, enquanto o próprio Rabinowitz, intelectual em ascensão, toca e ouve seus LPs clássicos em solitária introspecção.

Às vezes, a prosa de Rabinowitz fica um pouco prolixa em sua aspiração à eloquência. Mas sua evocação ternamente detalhada de tempos que não existem mais nos lembra que nós também temos as ferramentas para abrir o passado e reviver o que pensávamos ter esquecido.

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Objects of Love and Regret: A Brooklyn Story

Richard Rabinowitz

Belknap - 325 páginas - US $29.95

Diane Cole é a autora do livro de memórias After Great Pain: A New Life Emerges.

/ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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