Entenda como Simon Stålenhag inova a ficção científica


Autor fala com exclusividade ao ‘Estadão’ e quebra mitos do gênero, como a projeção dos carros voadores para o futuro

Por André Cáceres

O artista sueco Simon Stålenhag ganhou projeção internacional quando suas pinturas – que misturam cenários bucólicos e ruínas de máquinas hi-tech – inspiraram a elogiada série Tales from the Loop, escrita por Nathaniel Halpern e transmitida pela plataforma de streaming Amazon Prime Video. Independentes entre si, cada um dos oito episódios da obra acompanha uma personagem cujo cotidiano campestre é atravessado pela influência da tecnologia numa cidade interiorana que abriga um misterioso complexo industrial de pesquisa científica, em uma versão alternativa dos anos 1990.

Agora Stålenhag, renovador da ficção científica por ambientar suas histórias num tempo mítico, indeterminado, cruzando o mundo real com o digital, publica no Brasil, pela Companhia das Letras, o álbum Estado Elétrico, que reúne uma série de ilustrações encadeadas por um fio narrativo que relata a roadtrip melancólica pelo Oeste dos Estados Unidos da protagonista Michelle com seu robô Skip em busca de seu irmão, há muito tempo separado dela.

Em sua jornada, que também se passa em uma versão retrofuturista dos anos 1990, Michelle se depara com os efeitos de um aparato de realidade virtual que vicia seus usuários e os transforma praticamente em zumbis tecnológicos. Em tempos nos quais a bola da vez no Vale do Silício é o metaverso, a obra de Stålenhag soa como uma fábula cautelar vinda não do futuro, mas de um passado que nunca aconteceu.

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‘Estado Elétrico’ é uma road trip do autor pelos Estados Unidos que cruza memórias da infância na Suécia com imagens hiper-realistas Foto: Companhia das Letras

De maneira resumida, o metaverso é um ecossistema virtual que pode ser acessado por meio de aparatos específicos e dentro do qual as pessoas podem interagir entre si. Filiado tangencialmente à estética cyberpunk, Estado Elétrico imagina os efeitos potencialmente devastadores desse tipo de tecnologias para o tecido social. Nesse passado alternativo, as pessoas passam a se interessar mais pelo mundo digital do que pelo real, o que talvez não seja tão distante do que já esteja em curso desde a ascensão dos smartphones. “Não lido com o futuro, não sou futurista. As pessoas mais fracassaram do que obtiveram sucesso ao imaginar o futuro. Eu sou parte da geração que percebeu que jamais teremos carros voadores”, afirma Simon Stålenhag em entrevista exclusiva ao Estadão por videoconferência de sua casa, em Estocolmo. Nas palavras do artista, suas ilustrações retratam “sonhos do passado sobre o futuro”.

Stålenhag conta que, durante algum tempo, viajou quase todo ano para os Estados Unidos e passou muito tempo tirando fotografias de paisagens da Califórnia para elaborar as artes presentes em Estado Elétrico. Sua linguagem formal está ancorada no trabalho digital de artistas conceituais como Ralph McQuiarrie (de Star Wars) e Syd Med (Blade Runner), mas o sueco vai além, unindo conteúdo transgressor e linguagem híbrida, o que explica suas adaptações para diversas mídias (séries de TV e álbuns de música eletrônica). “Sempre quis criar uma história sobre crescer na América”, diz ele.

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Pode parecer um contrassenso que um artista cuja obra seja tão marcada por um forte sentimento nostálgico queira abordar uma região tão distante – geográfica, visual e politicamente – de sua terra natal. No entanto, a escolha por retratar uma personagem norte-americana que atravessa o Vale do Silício desolado diz muito sobre a infância do próprio autor.

Nascido em Estocolmo, em 1984, Simon Stalenhag é roteirista, desenhista e designer. Seus livros retratam o futuro por meio de visões hiper-realistas  Foto: Companhia das Letras

“Michelle é uma personagem que já desistiu daquela sociedade. Skip, no entanto, representa, para ela, esperança. Cuidar dele e protegê-lo torna-se seu objetivo, seu propósito. Ela é uma sobrevivente, afinal. É por ele que ela segue em frente”, analisa Stålenhag. A relação de Michelle com Skip é inspirada na relação dele com os próprios irmãos, mais especificamente com sua irmã mais velha, que ofereceu, segundo ele, “proteção emocional” durante a separação de seus pais, quando ele tinha 10 anos.

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Para Stålenhag, “o passado é um lugar confortável para se estar”, e a nostalgia presente em suas ilustrações vem da “percepção da própria mortalidade, da passagem do tempo”. Ele explica: “Em uma sociedade consumista, somos constantemente lembrados da passagem do tempo. Isso motiva a nostalgia, a ideia de que algumas coisas eram melhores, mesmo que outras não fossem. Numa cabana isolada não se vê o tempo passar”.

Embora seja um artista visual autodidata, Stålenhag destaca entre suas influências os motivos pastoris e paisagens idílicas dos artistas suecos Bruno Liljefors (1860-1939), Gunnar Brusewitz (1924-2004) e Lars Jonsson (1952-), mesclados à estética cyberpunk que se imiscui em suas obras. Apesar de mobilizar temáticas densas e muitas vezes lúgubres, é comum que as pinturas presentes em Estado Elétrico e em seus demais trabalhos sejam visualmente pacíficas, com tons aquarelados e harmoniosos. A influência direta ou indireta de quadrinistas como Alex Ross e Wang Ling (mais conhecido pelo pseudônimo Wlop) pode ser notada nos traços quase fotorrealistas de Estado Elétrico.

Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal

Simon Stålenhag

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Stålenhag considera que sua obra trata da sensação que a tecnologia exercia sobre ele quando criança em Estocolmo. “Eu não a entendia, mas ela não representava uma ameaça. Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal”. O aspecto mais instigante sobre a tecnologia para ele é sua “absoluta indiferença para com a sociedade humana e seus valores”, afirma ele. “A tecnologia é como um inseto: pode até provocar medo, mas não é maligno em si”.

A obra de Stålenhag reflete, enfim, nostalgia de um passado não vivido. Ele cresceu nos arredores de Estocolmo entre o fim da década de 1980 e o começo dos anos 1990, quando uma bolha imobiliária assolou a economia da Suécia, elevou o desemprego e desencadeou uma quebradeira nos bancos do país. Ao longo de sua infância, era comum para ele caminhar em cenários rurais pincelados com ruínas de fábricas falidas.

É por isso que suas obras, embora tratem de elementos especulativos, ou seja, que a rigor não existem, ou ao menos ainda não existem, falam de uma maneira muito direta sobre a sua infância. Em diversos capítulos de Tales from the Loop, crianças e jovens se deparam com objetos inexplicáveis para eles, que acabam por se revelar aparatos avançados e por provocar impacto, por vezes de maneira permanente, em suas vidas.

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Em ‘Estado Elétrico’, Simon Stålenhag. faz uma citação involuntária da instalação ‘The Seven Heavenly Palaces’ (2015) de Anselm Kiefer Foto: Companhia das Letras

Dois amigos com situações familiares bastante distintas descobrem um objeto que os faz trocar de corpo, mas após experimentar um dia na pele de alguém privilegiado, um deles se recusa a voltar à sua vida; uma garota usa um mecanismo para parar o tempo e viver com seu namorado, mas acaba por descobrir que a vida a dois pode ser mais complicada do que ela imaginava; um homem incapaz de encontrar um companheiro numa cidade pequena e retrógrada é enviado, por meio de um aparelho, a um universo paralelo em que ele é casado, e acaba tendo de lidar com a cobiça pelo marido de seu eu paralelo. Essas são algumas das situações que a série retrata, e que exemplificam como a obra de Stålenhag usa do expediente fantástico para abordar dramas particulares, como aliás costuma fazer a boa ficção científica, sempre mais preocupada com a análise da condição humana do que com a eventual parafernália tecnológica.

Esse jogo de sentidos nos leva a pensar na maneira como comunidades inteiras são afetadas pelo desenvolvimento tecnológico – o fechamento de uma fábrica que leva ao desemprego ou um acidente nuclear que desencadeia doença e morte, por exemplo. Entretanto, o subtexto das criações de Stålenhag também abre brechas por vezes para uma leitura mais lúdica, de crianças que encontram artefatos inúteis, mas que, aos seus olhos, se transformam por meio da imaginação. A máxima de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”, cunhada pelo escritor britânico Arthur C. Clarke (2001, Uma Odisseia no Espaço), desempenha um papel relevante nessa leitura possível, e pode ajudar a explicar a sensação de arrebatamento que o autor experimentava em sua infância em relação à tecnologia. Mas é claro que a obra de Stålenhag não se resume a crianças encontrando aparelhos que podem ou não ter efeitos fabulosos.

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Se, em Tales from the Loop, o complexo industrial instalado na cidadezinha interiorana define a vida de toda uma comunidade, em Estado Elétrico, o avô da protagonista, que trabalhava em fábricas de naves, morre por exposição a substâncias tóxicas envolvidas na produção. É frequente nas histórias do artista que os efeitos da tecnologia na sociedade sejam não apenas reais, mas perturbadores e irreversíveis.

É como se a obra de Stålenhag sempre sugerisse que, se por um lado a tecnologia proporciona prosperidade econômica, também traz impactos que fogem ao controle das pessoas que a circundam. É nessa dicotomia que se firma o retrofuturismo nostálgico e levemente distópico de suas paisagens, que expressam tanto quanto ou até mais do que suas narrativas.

O artista sueco Simon Stålenhag ganhou projeção internacional quando suas pinturas – que misturam cenários bucólicos e ruínas de máquinas hi-tech – inspiraram a elogiada série Tales from the Loop, escrita por Nathaniel Halpern e transmitida pela plataforma de streaming Amazon Prime Video. Independentes entre si, cada um dos oito episódios da obra acompanha uma personagem cujo cotidiano campestre é atravessado pela influência da tecnologia numa cidade interiorana que abriga um misterioso complexo industrial de pesquisa científica, em uma versão alternativa dos anos 1990.

Agora Stålenhag, renovador da ficção científica por ambientar suas histórias num tempo mítico, indeterminado, cruzando o mundo real com o digital, publica no Brasil, pela Companhia das Letras, o álbum Estado Elétrico, que reúne uma série de ilustrações encadeadas por um fio narrativo que relata a roadtrip melancólica pelo Oeste dos Estados Unidos da protagonista Michelle com seu robô Skip em busca de seu irmão, há muito tempo separado dela.

Em sua jornada, que também se passa em uma versão retrofuturista dos anos 1990, Michelle se depara com os efeitos de um aparato de realidade virtual que vicia seus usuários e os transforma praticamente em zumbis tecnológicos. Em tempos nos quais a bola da vez no Vale do Silício é o metaverso, a obra de Stålenhag soa como uma fábula cautelar vinda não do futuro, mas de um passado que nunca aconteceu.

‘Estado Elétrico’ é uma road trip do autor pelos Estados Unidos que cruza memórias da infância na Suécia com imagens hiper-realistas Foto: Companhia das Letras

De maneira resumida, o metaverso é um ecossistema virtual que pode ser acessado por meio de aparatos específicos e dentro do qual as pessoas podem interagir entre si. Filiado tangencialmente à estética cyberpunk, Estado Elétrico imagina os efeitos potencialmente devastadores desse tipo de tecnologias para o tecido social. Nesse passado alternativo, as pessoas passam a se interessar mais pelo mundo digital do que pelo real, o que talvez não seja tão distante do que já esteja em curso desde a ascensão dos smartphones. “Não lido com o futuro, não sou futurista. As pessoas mais fracassaram do que obtiveram sucesso ao imaginar o futuro. Eu sou parte da geração que percebeu que jamais teremos carros voadores”, afirma Simon Stålenhag em entrevista exclusiva ao Estadão por videoconferência de sua casa, em Estocolmo. Nas palavras do artista, suas ilustrações retratam “sonhos do passado sobre o futuro”.

Stålenhag conta que, durante algum tempo, viajou quase todo ano para os Estados Unidos e passou muito tempo tirando fotografias de paisagens da Califórnia para elaborar as artes presentes em Estado Elétrico. Sua linguagem formal está ancorada no trabalho digital de artistas conceituais como Ralph McQuiarrie (de Star Wars) e Syd Med (Blade Runner), mas o sueco vai além, unindo conteúdo transgressor e linguagem híbrida, o que explica suas adaptações para diversas mídias (séries de TV e álbuns de música eletrônica). “Sempre quis criar uma história sobre crescer na América”, diz ele.

Pode parecer um contrassenso que um artista cuja obra seja tão marcada por um forte sentimento nostálgico queira abordar uma região tão distante – geográfica, visual e politicamente – de sua terra natal. No entanto, a escolha por retratar uma personagem norte-americana que atravessa o Vale do Silício desolado diz muito sobre a infância do próprio autor.

Nascido em Estocolmo, em 1984, Simon Stalenhag é roteirista, desenhista e designer. Seus livros retratam o futuro por meio de visões hiper-realistas  Foto: Companhia das Letras

“Michelle é uma personagem que já desistiu daquela sociedade. Skip, no entanto, representa, para ela, esperança. Cuidar dele e protegê-lo torna-se seu objetivo, seu propósito. Ela é uma sobrevivente, afinal. É por ele que ela segue em frente”, analisa Stålenhag. A relação de Michelle com Skip é inspirada na relação dele com os próprios irmãos, mais especificamente com sua irmã mais velha, que ofereceu, segundo ele, “proteção emocional” durante a separação de seus pais, quando ele tinha 10 anos.

Para Stålenhag, “o passado é um lugar confortável para se estar”, e a nostalgia presente em suas ilustrações vem da “percepção da própria mortalidade, da passagem do tempo”. Ele explica: “Em uma sociedade consumista, somos constantemente lembrados da passagem do tempo. Isso motiva a nostalgia, a ideia de que algumas coisas eram melhores, mesmo que outras não fossem. Numa cabana isolada não se vê o tempo passar”.

Embora seja um artista visual autodidata, Stålenhag destaca entre suas influências os motivos pastoris e paisagens idílicas dos artistas suecos Bruno Liljefors (1860-1939), Gunnar Brusewitz (1924-2004) e Lars Jonsson (1952-), mesclados à estética cyberpunk que se imiscui em suas obras. Apesar de mobilizar temáticas densas e muitas vezes lúgubres, é comum que as pinturas presentes em Estado Elétrico e em seus demais trabalhos sejam visualmente pacíficas, com tons aquarelados e harmoniosos. A influência direta ou indireta de quadrinistas como Alex Ross e Wang Ling (mais conhecido pelo pseudônimo Wlop) pode ser notada nos traços quase fotorrealistas de Estado Elétrico.

Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal

Simon Stålenhag

Stålenhag considera que sua obra trata da sensação que a tecnologia exercia sobre ele quando criança em Estocolmo. “Eu não a entendia, mas ela não representava uma ameaça. Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal”. O aspecto mais instigante sobre a tecnologia para ele é sua “absoluta indiferença para com a sociedade humana e seus valores”, afirma ele. “A tecnologia é como um inseto: pode até provocar medo, mas não é maligno em si”.

A obra de Stålenhag reflete, enfim, nostalgia de um passado não vivido. Ele cresceu nos arredores de Estocolmo entre o fim da década de 1980 e o começo dos anos 1990, quando uma bolha imobiliária assolou a economia da Suécia, elevou o desemprego e desencadeou uma quebradeira nos bancos do país. Ao longo de sua infância, era comum para ele caminhar em cenários rurais pincelados com ruínas de fábricas falidas.

É por isso que suas obras, embora tratem de elementos especulativos, ou seja, que a rigor não existem, ou ao menos ainda não existem, falam de uma maneira muito direta sobre a sua infância. Em diversos capítulos de Tales from the Loop, crianças e jovens se deparam com objetos inexplicáveis para eles, que acabam por se revelar aparatos avançados e por provocar impacto, por vezes de maneira permanente, em suas vidas.

Em ‘Estado Elétrico’, Simon Stålenhag. faz uma citação involuntária da instalação ‘The Seven Heavenly Palaces’ (2015) de Anselm Kiefer Foto: Companhia das Letras

Dois amigos com situações familiares bastante distintas descobrem um objeto que os faz trocar de corpo, mas após experimentar um dia na pele de alguém privilegiado, um deles se recusa a voltar à sua vida; uma garota usa um mecanismo para parar o tempo e viver com seu namorado, mas acaba por descobrir que a vida a dois pode ser mais complicada do que ela imaginava; um homem incapaz de encontrar um companheiro numa cidade pequena e retrógrada é enviado, por meio de um aparelho, a um universo paralelo em que ele é casado, e acaba tendo de lidar com a cobiça pelo marido de seu eu paralelo. Essas são algumas das situações que a série retrata, e que exemplificam como a obra de Stålenhag usa do expediente fantástico para abordar dramas particulares, como aliás costuma fazer a boa ficção científica, sempre mais preocupada com a análise da condição humana do que com a eventual parafernália tecnológica.

Esse jogo de sentidos nos leva a pensar na maneira como comunidades inteiras são afetadas pelo desenvolvimento tecnológico – o fechamento de uma fábrica que leva ao desemprego ou um acidente nuclear que desencadeia doença e morte, por exemplo. Entretanto, o subtexto das criações de Stålenhag também abre brechas por vezes para uma leitura mais lúdica, de crianças que encontram artefatos inúteis, mas que, aos seus olhos, se transformam por meio da imaginação. A máxima de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”, cunhada pelo escritor britânico Arthur C. Clarke (2001, Uma Odisseia no Espaço), desempenha um papel relevante nessa leitura possível, e pode ajudar a explicar a sensação de arrebatamento que o autor experimentava em sua infância em relação à tecnologia. Mas é claro que a obra de Stålenhag não se resume a crianças encontrando aparelhos que podem ou não ter efeitos fabulosos.

Se, em Tales from the Loop, o complexo industrial instalado na cidadezinha interiorana define a vida de toda uma comunidade, em Estado Elétrico, o avô da protagonista, que trabalhava em fábricas de naves, morre por exposição a substâncias tóxicas envolvidas na produção. É frequente nas histórias do artista que os efeitos da tecnologia na sociedade sejam não apenas reais, mas perturbadores e irreversíveis.

É como se a obra de Stålenhag sempre sugerisse que, se por um lado a tecnologia proporciona prosperidade econômica, também traz impactos que fogem ao controle das pessoas que a circundam. É nessa dicotomia que se firma o retrofuturismo nostálgico e levemente distópico de suas paisagens, que expressam tanto quanto ou até mais do que suas narrativas.

O artista sueco Simon Stålenhag ganhou projeção internacional quando suas pinturas – que misturam cenários bucólicos e ruínas de máquinas hi-tech – inspiraram a elogiada série Tales from the Loop, escrita por Nathaniel Halpern e transmitida pela plataforma de streaming Amazon Prime Video. Independentes entre si, cada um dos oito episódios da obra acompanha uma personagem cujo cotidiano campestre é atravessado pela influência da tecnologia numa cidade interiorana que abriga um misterioso complexo industrial de pesquisa científica, em uma versão alternativa dos anos 1990.

Agora Stålenhag, renovador da ficção científica por ambientar suas histórias num tempo mítico, indeterminado, cruzando o mundo real com o digital, publica no Brasil, pela Companhia das Letras, o álbum Estado Elétrico, que reúne uma série de ilustrações encadeadas por um fio narrativo que relata a roadtrip melancólica pelo Oeste dos Estados Unidos da protagonista Michelle com seu robô Skip em busca de seu irmão, há muito tempo separado dela.

Em sua jornada, que também se passa em uma versão retrofuturista dos anos 1990, Michelle se depara com os efeitos de um aparato de realidade virtual que vicia seus usuários e os transforma praticamente em zumbis tecnológicos. Em tempos nos quais a bola da vez no Vale do Silício é o metaverso, a obra de Stålenhag soa como uma fábula cautelar vinda não do futuro, mas de um passado que nunca aconteceu.

‘Estado Elétrico’ é uma road trip do autor pelos Estados Unidos que cruza memórias da infância na Suécia com imagens hiper-realistas Foto: Companhia das Letras

De maneira resumida, o metaverso é um ecossistema virtual que pode ser acessado por meio de aparatos específicos e dentro do qual as pessoas podem interagir entre si. Filiado tangencialmente à estética cyberpunk, Estado Elétrico imagina os efeitos potencialmente devastadores desse tipo de tecnologias para o tecido social. Nesse passado alternativo, as pessoas passam a se interessar mais pelo mundo digital do que pelo real, o que talvez não seja tão distante do que já esteja em curso desde a ascensão dos smartphones. “Não lido com o futuro, não sou futurista. As pessoas mais fracassaram do que obtiveram sucesso ao imaginar o futuro. Eu sou parte da geração que percebeu que jamais teremos carros voadores”, afirma Simon Stålenhag em entrevista exclusiva ao Estadão por videoconferência de sua casa, em Estocolmo. Nas palavras do artista, suas ilustrações retratam “sonhos do passado sobre o futuro”.

Stålenhag conta que, durante algum tempo, viajou quase todo ano para os Estados Unidos e passou muito tempo tirando fotografias de paisagens da Califórnia para elaborar as artes presentes em Estado Elétrico. Sua linguagem formal está ancorada no trabalho digital de artistas conceituais como Ralph McQuiarrie (de Star Wars) e Syd Med (Blade Runner), mas o sueco vai além, unindo conteúdo transgressor e linguagem híbrida, o que explica suas adaptações para diversas mídias (séries de TV e álbuns de música eletrônica). “Sempre quis criar uma história sobre crescer na América”, diz ele.

Pode parecer um contrassenso que um artista cuja obra seja tão marcada por um forte sentimento nostálgico queira abordar uma região tão distante – geográfica, visual e politicamente – de sua terra natal. No entanto, a escolha por retratar uma personagem norte-americana que atravessa o Vale do Silício desolado diz muito sobre a infância do próprio autor.

Nascido em Estocolmo, em 1984, Simon Stalenhag é roteirista, desenhista e designer. Seus livros retratam o futuro por meio de visões hiper-realistas  Foto: Companhia das Letras

“Michelle é uma personagem que já desistiu daquela sociedade. Skip, no entanto, representa, para ela, esperança. Cuidar dele e protegê-lo torna-se seu objetivo, seu propósito. Ela é uma sobrevivente, afinal. É por ele que ela segue em frente”, analisa Stålenhag. A relação de Michelle com Skip é inspirada na relação dele com os próprios irmãos, mais especificamente com sua irmã mais velha, que ofereceu, segundo ele, “proteção emocional” durante a separação de seus pais, quando ele tinha 10 anos.

Para Stålenhag, “o passado é um lugar confortável para se estar”, e a nostalgia presente em suas ilustrações vem da “percepção da própria mortalidade, da passagem do tempo”. Ele explica: “Em uma sociedade consumista, somos constantemente lembrados da passagem do tempo. Isso motiva a nostalgia, a ideia de que algumas coisas eram melhores, mesmo que outras não fossem. Numa cabana isolada não se vê o tempo passar”.

Embora seja um artista visual autodidata, Stålenhag destaca entre suas influências os motivos pastoris e paisagens idílicas dos artistas suecos Bruno Liljefors (1860-1939), Gunnar Brusewitz (1924-2004) e Lars Jonsson (1952-), mesclados à estética cyberpunk que se imiscui em suas obras. Apesar de mobilizar temáticas densas e muitas vezes lúgubres, é comum que as pinturas presentes em Estado Elétrico e em seus demais trabalhos sejam visualmente pacíficas, com tons aquarelados e harmoniosos. A influência direta ou indireta de quadrinistas como Alex Ross e Wang Ling (mais conhecido pelo pseudônimo Wlop) pode ser notada nos traços quase fotorrealistas de Estado Elétrico.

Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal

Simon Stålenhag

Stålenhag considera que sua obra trata da sensação que a tecnologia exercia sobre ele quando criança em Estocolmo. “Eu não a entendia, mas ela não representava uma ameaça. Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal”. O aspecto mais instigante sobre a tecnologia para ele é sua “absoluta indiferença para com a sociedade humana e seus valores”, afirma ele. “A tecnologia é como um inseto: pode até provocar medo, mas não é maligno em si”.

A obra de Stålenhag reflete, enfim, nostalgia de um passado não vivido. Ele cresceu nos arredores de Estocolmo entre o fim da década de 1980 e o começo dos anos 1990, quando uma bolha imobiliária assolou a economia da Suécia, elevou o desemprego e desencadeou uma quebradeira nos bancos do país. Ao longo de sua infância, era comum para ele caminhar em cenários rurais pincelados com ruínas de fábricas falidas.

É por isso que suas obras, embora tratem de elementos especulativos, ou seja, que a rigor não existem, ou ao menos ainda não existem, falam de uma maneira muito direta sobre a sua infância. Em diversos capítulos de Tales from the Loop, crianças e jovens se deparam com objetos inexplicáveis para eles, que acabam por se revelar aparatos avançados e por provocar impacto, por vezes de maneira permanente, em suas vidas.

Em ‘Estado Elétrico’, Simon Stålenhag. faz uma citação involuntária da instalação ‘The Seven Heavenly Palaces’ (2015) de Anselm Kiefer Foto: Companhia das Letras

Dois amigos com situações familiares bastante distintas descobrem um objeto que os faz trocar de corpo, mas após experimentar um dia na pele de alguém privilegiado, um deles se recusa a voltar à sua vida; uma garota usa um mecanismo para parar o tempo e viver com seu namorado, mas acaba por descobrir que a vida a dois pode ser mais complicada do que ela imaginava; um homem incapaz de encontrar um companheiro numa cidade pequena e retrógrada é enviado, por meio de um aparelho, a um universo paralelo em que ele é casado, e acaba tendo de lidar com a cobiça pelo marido de seu eu paralelo. Essas são algumas das situações que a série retrata, e que exemplificam como a obra de Stålenhag usa do expediente fantástico para abordar dramas particulares, como aliás costuma fazer a boa ficção científica, sempre mais preocupada com a análise da condição humana do que com a eventual parafernália tecnológica.

Esse jogo de sentidos nos leva a pensar na maneira como comunidades inteiras são afetadas pelo desenvolvimento tecnológico – o fechamento de uma fábrica que leva ao desemprego ou um acidente nuclear que desencadeia doença e morte, por exemplo. Entretanto, o subtexto das criações de Stålenhag também abre brechas por vezes para uma leitura mais lúdica, de crianças que encontram artefatos inúteis, mas que, aos seus olhos, se transformam por meio da imaginação. A máxima de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”, cunhada pelo escritor britânico Arthur C. Clarke (2001, Uma Odisseia no Espaço), desempenha um papel relevante nessa leitura possível, e pode ajudar a explicar a sensação de arrebatamento que o autor experimentava em sua infância em relação à tecnologia. Mas é claro que a obra de Stålenhag não se resume a crianças encontrando aparelhos que podem ou não ter efeitos fabulosos.

Se, em Tales from the Loop, o complexo industrial instalado na cidadezinha interiorana define a vida de toda uma comunidade, em Estado Elétrico, o avô da protagonista, que trabalhava em fábricas de naves, morre por exposição a substâncias tóxicas envolvidas na produção. É frequente nas histórias do artista que os efeitos da tecnologia na sociedade sejam não apenas reais, mas perturbadores e irreversíveis.

É como se a obra de Stålenhag sempre sugerisse que, se por um lado a tecnologia proporciona prosperidade econômica, também traz impactos que fogem ao controle das pessoas que a circundam. É nessa dicotomia que se firma o retrofuturismo nostálgico e levemente distópico de suas paisagens, que expressam tanto quanto ou até mais do que suas narrativas.

O artista sueco Simon Stålenhag ganhou projeção internacional quando suas pinturas – que misturam cenários bucólicos e ruínas de máquinas hi-tech – inspiraram a elogiada série Tales from the Loop, escrita por Nathaniel Halpern e transmitida pela plataforma de streaming Amazon Prime Video. Independentes entre si, cada um dos oito episódios da obra acompanha uma personagem cujo cotidiano campestre é atravessado pela influência da tecnologia numa cidade interiorana que abriga um misterioso complexo industrial de pesquisa científica, em uma versão alternativa dos anos 1990.

Agora Stålenhag, renovador da ficção científica por ambientar suas histórias num tempo mítico, indeterminado, cruzando o mundo real com o digital, publica no Brasil, pela Companhia das Letras, o álbum Estado Elétrico, que reúne uma série de ilustrações encadeadas por um fio narrativo que relata a roadtrip melancólica pelo Oeste dos Estados Unidos da protagonista Michelle com seu robô Skip em busca de seu irmão, há muito tempo separado dela.

Em sua jornada, que também se passa em uma versão retrofuturista dos anos 1990, Michelle se depara com os efeitos de um aparato de realidade virtual que vicia seus usuários e os transforma praticamente em zumbis tecnológicos. Em tempos nos quais a bola da vez no Vale do Silício é o metaverso, a obra de Stålenhag soa como uma fábula cautelar vinda não do futuro, mas de um passado que nunca aconteceu.

‘Estado Elétrico’ é uma road trip do autor pelos Estados Unidos que cruza memórias da infância na Suécia com imagens hiper-realistas Foto: Companhia das Letras

De maneira resumida, o metaverso é um ecossistema virtual que pode ser acessado por meio de aparatos específicos e dentro do qual as pessoas podem interagir entre si. Filiado tangencialmente à estética cyberpunk, Estado Elétrico imagina os efeitos potencialmente devastadores desse tipo de tecnologias para o tecido social. Nesse passado alternativo, as pessoas passam a se interessar mais pelo mundo digital do que pelo real, o que talvez não seja tão distante do que já esteja em curso desde a ascensão dos smartphones. “Não lido com o futuro, não sou futurista. As pessoas mais fracassaram do que obtiveram sucesso ao imaginar o futuro. Eu sou parte da geração que percebeu que jamais teremos carros voadores”, afirma Simon Stålenhag em entrevista exclusiva ao Estadão por videoconferência de sua casa, em Estocolmo. Nas palavras do artista, suas ilustrações retratam “sonhos do passado sobre o futuro”.

Stålenhag conta que, durante algum tempo, viajou quase todo ano para os Estados Unidos e passou muito tempo tirando fotografias de paisagens da Califórnia para elaborar as artes presentes em Estado Elétrico. Sua linguagem formal está ancorada no trabalho digital de artistas conceituais como Ralph McQuiarrie (de Star Wars) e Syd Med (Blade Runner), mas o sueco vai além, unindo conteúdo transgressor e linguagem híbrida, o que explica suas adaptações para diversas mídias (séries de TV e álbuns de música eletrônica). “Sempre quis criar uma história sobre crescer na América”, diz ele.

Pode parecer um contrassenso que um artista cuja obra seja tão marcada por um forte sentimento nostálgico queira abordar uma região tão distante – geográfica, visual e politicamente – de sua terra natal. No entanto, a escolha por retratar uma personagem norte-americana que atravessa o Vale do Silício desolado diz muito sobre a infância do próprio autor.

Nascido em Estocolmo, em 1984, Simon Stalenhag é roteirista, desenhista e designer. Seus livros retratam o futuro por meio de visões hiper-realistas  Foto: Companhia das Letras

“Michelle é uma personagem que já desistiu daquela sociedade. Skip, no entanto, representa, para ela, esperança. Cuidar dele e protegê-lo torna-se seu objetivo, seu propósito. Ela é uma sobrevivente, afinal. É por ele que ela segue em frente”, analisa Stålenhag. A relação de Michelle com Skip é inspirada na relação dele com os próprios irmãos, mais especificamente com sua irmã mais velha, que ofereceu, segundo ele, “proteção emocional” durante a separação de seus pais, quando ele tinha 10 anos.

Para Stålenhag, “o passado é um lugar confortável para se estar”, e a nostalgia presente em suas ilustrações vem da “percepção da própria mortalidade, da passagem do tempo”. Ele explica: “Em uma sociedade consumista, somos constantemente lembrados da passagem do tempo. Isso motiva a nostalgia, a ideia de que algumas coisas eram melhores, mesmo que outras não fossem. Numa cabana isolada não se vê o tempo passar”.

Embora seja um artista visual autodidata, Stålenhag destaca entre suas influências os motivos pastoris e paisagens idílicas dos artistas suecos Bruno Liljefors (1860-1939), Gunnar Brusewitz (1924-2004) e Lars Jonsson (1952-), mesclados à estética cyberpunk que se imiscui em suas obras. Apesar de mobilizar temáticas densas e muitas vezes lúgubres, é comum que as pinturas presentes em Estado Elétrico e em seus demais trabalhos sejam visualmente pacíficas, com tons aquarelados e harmoniosos. A influência direta ou indireta de quadrinistas como Alex Ross e Wang Ling (mais conhecido pelo pseudônimo Wlop) pode ser notada nos traços quase fotorrealistas de Estado Elétrico.

Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal

Simon Stålenhag

Stålenhag considera que sua obra trata da sensação que a tecnologia exercia sobre ele quando criança em Estocolmo. “Eu não a entendia, mas ela não representava uma ameaça. Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal”. O aspecto mais instigante sobre a tecnologia para ele é sua “absoluta indiferença para com a sociedade humana e seus valores”, afirma ele. “A tecnologia é como um inseto: pode até provocar medo, mas não é maligno em si”.

A obra de Stålenhag reflete, enfim, nostalgia de um passado não vivido. Ele cresceu nos arredores de Estocolmo entre o fim da década de 1980 e o começo dos anos 1990, quando uma bolha imobiliária assolou a economia da Suécia, elevou o desemprego e desencadeou uma quebradeira nos bancos do país. Ao longo de sua infância, era comum para ele caminhar em cenários rurais pincelados com ruínas de fábricas falidas.

É por isso que suas obras, embora tratem de elementos especulativos, ou seja, que a rigor não existem, ou ao menos ainda não existem, falam de uma maneira muito direta sobre a sua infância. Em diversos capítulos de Tales from the Loop, crianças e jovens se deparam com objetos inexplicáveis para eles, que acabam por se revelar aparatos avançados e por provocar impacto, por vezes de maneira permanente, em suas vidas.

Em ‘Estado Elétrico’, Simon Stålenhag. faz uma citação involuntária da instalação ‘The Seven Heavenly Palaces’ (2015) de Anselm Kiefer Foto: Companhia das Letras

Dois amigos com situações familiares bastante distintas descobrem um objeto que os faz trocar de corpo, mas após experimentar um dia na pele de alguém privilegiado, um deles se recusa a voltar à sua vida; uma garota usa um mecanismo para parar o tempo e viver com seu namorado, mas acaba por descobrir que a vida a dois pode ser mais complicada do que ela imaginava; um homem incapaz de encontrar um companheiro numa cidade pequena e retrógrada é enviado, por meio de um aparelho, a um universo paralelo em que ele é casado, e acaba tendo de lidar com a cobiça pelo marido de seu eu paralelo. Essas são algumas das situações que a série retrata, e que exemplificam como a obra de Stålenhag usa do expediente fantástico para abordar dramas particulares, como aliás costuma fazer a boa ficção científica, sempre mais preocupada com a análise da condição humana do que com a eventual parafernália tecnológica.

Esse jogo de sentidos nos leva a pensar na maneira como comunidades inteiras são afetadas pelo desenvolvimento tecnológico – o fechamento de uma fábrica que leva ao desemprego ou um acidente nuclear que desencadeia doença e morte, por exemplo. Entretanto, o subtexto das criações de Stålenhag também abre brechas por vezes para uma leitura mais lúdica, de crianças que encontram artefatos inúteis, mas que, aos seus olhos, se transformam por meio da imaginação. A máxima de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”, cunhada pelo escritor britânico Arthur C. Clarke (2001, Uma Odisseia no Espaço), desempenha um papel relevante nessa leitura possível, e pode ajudar a explicar a sensação de arrebatamento que o autor experimentava em sua infância em relação à tecnologia. Mas é claro que a obra de Stålenhag não se resume a crianças encontrando aparelhos que podem ou não ter efeitos fabulosos.

Se, em Tales from the Loop, o complexo industrial instalado na cidadezinha interiorana define a vida de toda uma comunidade, em Estado Elétrico, o avô da protagonista, que trabalhava em fábricas de naves, morre por exposição a substâncias tóxicas envolvidas na produção. É frequente nas histórias do artista que os efeitos da tecnologia na sociedade sejam não apenas reais, mas perturbadores e irreversíveis.

É como se a obra de Stålenhag sempre sugerisse que, se por um lado a tecnologia proporciona prosperidade econômica, também traz impactos que fogem ao controle das pessoas que a circundam. É nessa dicotomia que se firma o retrofuturismo nostálgico e levemente distópico de suas paisagens, que expressam tanto quanto ou até mais do que suas narrativas.

O artista sueco Simon Stålenhag ganhou projeção internacional quando suas pinturas – que misturam cenários bucólicos e ruínas de máquinas hi-tech – inspiraram a elogiada série Tales from the Loop, escrita por Nathaniel Halpern e transmitida pela plataforma de streaming Amazon Prime Video. Independentes entre si, cada um dos oito episódios da obra acompanha uma personagem cujo cotidiano campestre é atravessado pela influência da tecnologia numa cidade interiorana que abriga um misterioso complexo industrial de pesquisa científica, em uma versão alternativa dos anos 1990.

Agora Stålenhag, renovador da ficção científica por ambientar suas histórias num tempo mítico, indeterminado, cruzando o mundo real com o digital, publica no Brasil, pela Companhia das Letras, o álbum Estado Elétrico, que reúne uma série de ilustrações encadeadas por um fio narrativo que relata a roadtrip melancólica pelo Oeste dos Estados Unidos da protagonista Michelle com seu robô Skip em busca de seu irmão, há muito tempo separado dela.

Em sua jornada, que também se passa em uma versão retrofuturista dos anos 1990, Michelle se depara com os efeitos de um aparato de realidade virtual que vicia seus usuários e os transforma praticamente em zumbis tecnológicos. Em tempos nos quais a bola da vez no Vale do Silício é o metaverso, a obra de Stålenhag soa como uma fábula cautelar vinda não do futuro, mas de um passado que nunca aconteceu.

‘Estado Elétrico’ é uma road trip do autor pelos Estados Unidos que cruza memórias da infância na Suécia com imagens hiper-realistas Foto: Companhia das Letras

De maneira resumida, o metaverso é um ecossistema virtual que pode ser acessado por meio de aparatos específicos e dentro do qual as pessoas podem interagir entre si. Filiado tangencialmente à estética cyberpunk, Estado Elétrico imagina os efeitos potencialmente devastadores desse tipo de tecnologias para o tecido social. Nesse passado alternativo, as pessoas passam a se interessar mais pelo mundo digital do que pelo real, o que talvez não seja tão distante do que já esteja em curso desde a ascensão dos smartphones. “Não lido com o futuro, não sou futurista. As pessoas mais fracassaram do que obtiveram sucesso ao imaginar o futuro. Eu sou parte da geração que percebeu que jamais teremos carros voadores”, afirma Simon Stålenhag em entrevista exclusiva ao Estadão por videoconferência de sua casa, em Estocolmo. Nas palavras do artista, suas ilustrações retratam “sonhos do passado sobre o futuro”.

Stålenhag conta que, durante algum tempo, viajou quase todo ano para os Estados Unidos e passou muito tempo tirando fotografias de paisagens da Califórnia para elaborar as artes presentes em Estado Elétrico. Sua linguagem formal está ancorada no trabalho digital de artistas conceituais como Ralph McQuiarrie (de Star Wars) e Syd Med (Blade Runner), mas o sueco vai além, unindo conteúdo transgressor e linguagem híbrida, o que explica suas adaptações para diversas mídias (séries de TV e álbuns de música eletrônica). “Sempre quis criar uma história sobre crescer na América”, diz ele.

Pode parecer um contrassenso que um artista cuja obra seja tão marcada por um forte sentimento nostálgico queira abordar uma região tão distante – geográfica, visual e politicamente – de sua terra natal. No entanto, a escolha por retratar uma personagem norte-americana que atravessa o Vale do Silício desolado diz muito sobre a infância do próprio autor.

Nascido em Estocolmo, em 1984, Simon Stalenhag é roteirista, desenhista e designer. Seus livros retratam o futuro por meio de visões hiper-realistas  Foto: Companhia das Letras

“Michelle é uma personagem que já desistiu daquela sociedade. Skip, no entanto, representa, para ela, esperança. Cuidar dele e protegê-lo torna-se seu objetivo, seu propósito. Ela é uma sobrevivente, afinal. É por ele que ela segue em frente”, analisa Stålenhag. A relação de Michelle com Skip é inspirada na relação dele com os próprios irmãos, mais especificamente com sua irmã mais velha, que ofereceu, segundo ele, “proteção emocional” durante a separação de seus pais, quando ele tinha 10 anos.

Para Stålenhag, “o passado é um lugar confortável para se estar”, e a nostalgia presente em suas ilustrações vem da “percepção da própria mortalidade, da passagem do tempo”. Ele explica: “Em uma sociedade consumista, somos constantemente lembrados da passagem do tempo. Isso motiva a nostalgia, a ideia de que algumas coisas eram melhores, mesmo que outras não fossem. Numa cabana isolada não se vê o tempo passar”.

Embora seja um artista visual autodidata, Stålenhag destaca entre suas influências os motivos pastoris e paisagens idílicas dos artistas suecos Bruno Liljefors (1860-1939), Gunnar Brusewitz (1924-2004) e Lars Jonsson (1952-), mesclados à estética cyberpunk que se imiscui em suas obras. Apesar de mobilizar temáticas densas e muitas vezes lúgubres, é comum que as pinturas presentes em Estado Elétrico e em seus demais trabalhos sejam visualmente pacíficas, com tons aquarelados e harmoniosos. A influência direta ou indireta de quadrinistas como Alex Ross e Wang Ling (mais conhecido pelo pseudônimo Wlop) pode ser notada nos traços quase fotorrealistas de Estado Elétrico.

Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal

Simon Stålenhag

Stålenhag considera que sua obra trata da sensação que a tecnologia exercia sobre ele quando criança em Estocolmo. “Eu não a entendia, mas ela não representava uma ameaça. Sempre fui fascinado por máquinas, essas ferramentas poderosas que podem tanto fazer o bem quanto o mal”. O aspecto mais instigante sobre a tecnologia para ele é sua “absoluta indiferença para com a sociedade humana e seus valores”, afirma ele. “A tecnologia é como um inseto: pode até provocar medo, mas não é maligno em si”.

A obra de Stålenhag reflete, enfim, nostalgia de um passado não vivido. Ele cresceu nos arredores de Estocolmo entre o fim da década de 1980 e o começo dos anos 1990, quando uma bolha imobiliária assolou a economia da Suécia, elevou o desemprego e desencadeou uma quebradeira nos bancos do país. Ao longo de sua infância, era comum para ele caminhar em cenários rurais pincelados com ruínas de fábricas falidas.

É por isso que suas obras, embora tratem de elementos especulativos, ou seja, que a rigor não existem, ou ao menos ainda não existem, falam de uma maneira muito direta sobre a sua infância. Em diversos capítulos de Tales from the Loop, crianças e jovens se deparam com objetos inexplicáveis para eles, que acabam por se revelar aparatos avançados e por provocar impacto, por vezes de maneira permanente, em suas vidas.

Em ‘Estado Elétrico’, Simon Stålenhag. faz uma citação involuntária da instalação ‘The Seven Heavenly Palaces’ (2015) de Anselm Kiefer Foto: Companhia das Letras

Dois amigos com situações familiares bastante distintas descobrem um objeto que os faz trocar de corpo, mas após experimentar um dia na pele de alguém privilegiado, um deles se recusa a voltar à sua vida; uma garota usa um mecanismo para parar o tempo e viver com seu namorado, mas acaba por descobrir que a vida a dois pode ser mais complicada do que ela imaginava; um homem incapaz de encontrar um companheiro numa cidade pequena e retrógrada é enviado, por meio de um aparelho, a um universo paralelo em que ele é casado, e acaba tendo de lidar com a cobiça pelo marido de seu eu paralelo. Essas são algumas das situações que a série retrata, e que exemplificam como a obra de Stålenhag usa do expediente fantástico para abordar dramas particulares, como aliás costuma fazer a boa ficção científica, sempre mais preocupada com a análise da condição humana do que com a eventual parafernália tecnológica.

Esse jogo de sentidos nos leva a pensar na maneira como comunidades inteiras são afetadas pelo desenvolvimento tecnológico – o fechamento de uma fábrica que leva ao desemprego ou um acidente nuclear que desencadeia doença e morte, por exemplo. Entretanto, o subtexto das criações de Stålenhag também abre brechas por vezes para uma leitura mais lúdica, de crianças que encontram artefatos inúteis, mas que, aos seus olhos, se transformam por meio da imaginação. A máxima de que “qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia”, cunhada pelo escritor britânico Arthur C. Clarke (2001, Uma Odisseia no Espaço), desempenha um papel relevante nessa leitura possível, e pode ajudar a explicar a sensação de arrebatamento que o autor experimentava em sua infância em relação à tecnologia. Mas é claro que a obra de Stålenhag não se resume a crianças encontrando aparelhos que podem ou não ter efeitos fabulosos.

Se, em Tales from the Loop, o complexo industrial instalado na cidadezinha interiorana define a vida de toda uma comunidade, em Estado Elétrico, o avô da protagonista, que trabalhava em fábricas de naves, morre por exposição a substâncias tóxicas envolvidas na produção. É frequente nas histórias do artista que os efeitos da tecnologia na sociedade sejam não apenas reais, mas perturbadores e irreversíveis.

É como se a obra de Stålenhag sempre sugerisse que, se por um lado a tecnologia proporciona prosperidade econômica, também traz impactos que fogem ao controle das pessoas que a circundam. É nessa dicotomia que se firma o retrofuturismo nostálgico e levemente distópico de suas paisagens, que expressam tanto quanto ou até mais do que suas narrativas.

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