Quando Jacob Talmon (1916-1980) foi questionado sobre o que seria um intelectual, ele respondeu rapidamente: “É alguém que não dorme à noite, e não pelas razões que você imagina”. O motivo do pesadelo tinha um nome: “democracia totalitária”. Este perturbador conceito foi popularizado por Talmon em seu livro mais célebre, intitulado justamente As Origens da Democracia Totalitária, publicado em 1956 e que causou considerável frisson entre os pensadores da época.
O termo não era exclusivo de Talmon. Já tinha sido usado antes pelo francês Bertrand De Jouvenel em seu clássico Do Poder, de 1948, mas tanto este livro como o seu autor tinham credenciais antissociais (De Jouvenel criticava a democracia liberal e causava inveja em seus pares porque foi amante de ninguém menos que Colette, autora de best-sellers apimentados da época). Nada disso incomodou a recepção da análise de Talmon porque ele era um ardoroso defensor do liberalismo e só muitos anos depois o estudioso dirigiria sua afeição para outra beldade do pensamento – no caso, a jovem crítica literária Susan Sontag.
O que As Origens da Democracia Totalitária mostrava, entretanto, era um novo tipo de pensamento político surgido naquelas décadas pós-2ª. Guerra Mundial. Contemporâneo de scholars como Leo Strauss (Direito Natural e História, 1948) e Eric Voegelin (A Nova Ciência da Política, 1952), Jacob Talmon, mesmo sendo um judeu afeiçoado às formas tradicionais de sua religião, reconhecia que o pensamento apocalíptico cristão (ou “messiânico”, segundo sua terminologia) se transformou em uma espécie de molde que estruturava a imaginação política do século 20, em especial o surgimento das ideologias totalitárias como o socialismo, o comunismo e o nazismo.
Acreditava-se então que a política era regida exclusivamente por leis racionais e perfeitas, em um sistema bem-ordenado, uma nítida influência do Iluminismo francês. Hitler e Mussolini mostraram que não era nada disso – como, na verdade, sempre foi. O discurso político é frequentemente alimentado pelo irracionalismo, ao atiçar os detritos que existem no subsolo da sociedade. A função do verdadeiro estadista, seja ele um político ou um artista da palavra (como foram os casos de Edmund Burke e Winston Churchill na Inglaterra, de Alexis de Tocqueville na França e de Joaquim Nabuco no Brasil), é articular essa sub-racionalidade e torná-la parte do nosso vocabulário cotidiano, nunca para controlá-la e sim para dominá-la temporariamente.
Neste sentido, o uso do conceito “democracia totalitária” parece ser uma contradição. Afinal de contas, essa tal de “democracia” sempre foi considerada como o espaço do consenso e da harmonia – e o “totalitarismo” seria justamente o seu oposto em todas essas características. Que diabos então essas duas palavras teriam em comum?
Revolução
Para Talmon, o fenômeno da “democracia totalitária” começa nos eventos históricos que são a publicação das obras de Jean-Jacques Rousseau e a hecatombe que foi a Revolução Francesa, ocorridos entre 1750 e 1789. Nesses trinta e nove anos, há o cisma entre dois tipos de sistemas de governo democrático: o liberal e o totalitário, que praticamente evoluíram na modernidade de maneira concomitante.
Ambos afirmam que lutam pela liberdade, mas se diferenciam pelos modos de conquistá-la. A democracia liberal se caracteriza por uma política de tentativa e erro, reconhecendo aquilo que Michael Oakeshott chamava de “dinâmica imprevisível da conduta humana” e sabendo que a função primeira das instituições é preservar essa característica acima de tudo, mesmo quando o representante que está no poder nos pareça completamente inadequado. Já a democracia totalitária se baseia numa acepção de que há apenas uma única e exclusiva definição do que seria a verdade no universo político. Dessa forma, a tentativa e erro são abandonados por um messianismo político no qual se postula um esquema pré-ordenado, perfeito e imposto de cima para baixo. Os outros estratos da existência são abolidos e subordinados à política ideológica, realizada de maneira mais rasteira possível – e os “representantes” da democracia liberal são transformados nos “eleitos” que pensam saber como uma sociedade deve ser conduzida em todos os detalhes.
Ao correr dos anos
As consequências deste cisma foram nada mais, nada menos que os holocaustos do século 20, com as tentativas da democracia liberal da Alemanha de Weimar e do socialismo moderado da Rússia dos mencheviques abrindo espaço para os verdadeiros genocídios feitos por Hitler e por Lênin e Stalin contra a humanidade como um todo (em particular, o povo judeu, o que tornava o pesadelo de Talmon algo evidentemente pessoal).
Apesar da divisão categórica entre os dois tipos de democracias, o pensador não tinha ilusões e reconhecia que, se o liberalismo não contivesse a imaginação apocalíptica dentro dos limites das suas instituições e dos seus representantes, a política de tentativa e erro seria rapidamente substituída pela do sistema perfeito – e o totalitarismo estaria inserido por completo naquilo que antes era conhecido como o “mundo livre”. A única forma de praticar essa contenção seria com a ajuda da compreensão adequada do fenômeno religioso. Renegar isso seria o ponto em comum que há tanto entre a democracia liberal como a totalitária.
Mesmo assim, há no panorama analítico de Talmon – que foi complementado por outros dois tomos, Political Messianism (1960) e The Myth of Nation and Vision of Revolution (1981), formando assim uma trilogia ambiciosa – um equívoco entre o que seria causa e consequência dentro do dinamismo peculiar da vida social. Por mais que ele seja um especialista impecável no tema, Talmon possui a crença popular de que a política democrática só pode ser razoavelmente saudável se ocorrer por meio da representação institucional e, portanto, também por meio deste instrumento pequenino, mas poderoso, chamado “voto”.
Porém, quando Jacob Talmon lançou seus estudos, ele estava imerso em uma atmosfera de pesquisa que privilegiava, antes de tudo, a meta final da democracia. Neste sentido, em especial em um mundo onde ditaduras pululavam por todos os cantos do planeta (particularmente na América Latina, com o Brasil, Argentina e Paraguai, e nos países eslavos dominados pela União Soviética), o voto tinha uma importância fundamental porque era a última barreira a preservar algum direito do cidadão. Contudo, conforme mostram os estudos de Joshua Ober e Paul Cartridge a respeito do alvorecer da democracia na Grécia antiga, o que realmente importava, por exemplo, para quem realmente mandava em Atenas nunca foi a decisão derradeira, mas o próprio processo de como ela acontecia na assembleia, junto com seus principais atores.
Ou seja: antes do voto, a democracia se fundamenta na dinâmica da informação e do conhecimento humanos. Não é por acaso que os membros mais importantes entre os gregos nunca foram os soldados ou os estadistas, e sim os poetas, os filósofos e os sofistas. Eram eles que criavam o discurso que permitia o poder do povo ser usado de maneira equânime (e não igualitária, como pensam hoje). Porém, essa perspectiva muda por completo quando descobrimos, graças a estudos feitos nos últimos sessenta anos, que a verdadeira democracia não se iniciou com a Grécia e sim com uma tribo muito específica. Sim, estamos falando de Israel.
Segundo Eric Voegelin em Ordem e História e Os Guinness em A Carta Magna da Humanidade (recentemente lançado no Brasil pela editora Vida Nova), os israelitas eram muito cientes do seu relacionamento privado e público com o Deus hebreu, principalmente após a revelação dos Dez Mandamentos, cujas regras comprovariam aos fiéis que todos faziam parte de uma aliança, uma berith iniciada como um contrato nas relações privadas e que depois se tornaria “uma confederação de pessoas, famílias e tribos numa unidade política religiosamente sancionada”. Eis o início da democracia de facto e de jure, de acordo com o pensador brasileiro Mario Vieira de Mello, uma vez que todos se sentem iguais dentro das normas da berith, observados e cuidados por um Deus que garante a ordem e a paz (o shalom), se os javistas (os adoradores de Iahveh) respeitarem as regras estabelecidas. Neste caso específico, a aliança é um contrato que, para Voegelin, comprova a vocação original e natural de um povo ser chamado para governar o resto da humanidade.
A democracia surge dessa tensão orgânica entre o conhecimento da realidade tal como é e o da realidade como o homem a imagina ser. É um processo que, como a criação de um mundo (o gênesis), modela o caos das nossas percepções em uma ordem fabricada, mas perfectível e maleável, capaz de nos dar a liberdade de entendermos a sociedade onde estamos inseridos naquele “conhecimento tácito” (na acepção de Michael Polanyi), que supera qualquer estatística com pretensões de banalizar a política.
Jacob Talmon foi um verdadeiro intelectual que se opôs a esse reducionismo perigoso – e com uma presciência digna de um profeta hebreu. O pesadelo que o atormentava nas suas noites insones – a “democracia totalitária” – é a traição de tudo o que a aliança do Sinai nos deu de presente – e o qual chamamos hoje de civilização. A ameaça continua aí, a nos assombrar. Resta saber se teremos coragem de combatê-la.