Épico indígena 'Poranduba Amazonense' é reeditado no País


Obra bilíngue em nheengatu e português do autor do século 19 João Barbosa Rodrigues estava fora de catálogo há anos

Por Sérgio Medeiros

O saci, na floresta amazônica, é uma mulher, pois seu nome tupi (saci-taperê) significa “mãe das almas”, atuando como espírito dos caminhos. Contudo, essa entidade fantástica é também inclassificável e se metamorfoseia num pássaro, o qual geralmente não se vê, mas tem um único pé. Finalmente, identificado como curupira, se torna o protetor da caça e da floresta, e pode ser descrito simultaneamente como senhor, mãe e gênio com os pés voltados para trás, para enganar quem lhe observa as pegadas. Embora em algumas regiões do país seja conhecido como Caapora, no Rio de Janeiro passou a ser um molequinho coxo, ferido nos joelhos. São tantos os sacis gerados pela mãe das almas que se pode concluir que mitos indígenas diferentes se confundiram sob um mesmo ente genérico, conhecido atualmente de todos os brasileiros: o menino negro de uma perna só.

+'Pai Contra Mãe' compila narrativas breves de Machado de Assis

João Barbosa Rodrigues, autor da 'Poranduba Amazonense' Foto: Wikimedia Commons
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+Exposição nos EUA mostra a inovação tecnológica que vem dos índios

Quem conta esse enredo intrincado e saboroso, à medida que vai analisando a decadência do nheengatu falado em boa parte do território brasileiro até meados do século 18, é João Barbosa Rodrigues (1842-1909), autor de Poranduba Amazonense, obra bilíngue fundamental da literatura indígena publicada originalmente em 1908 e que foi reeditada recentemente com grafia atualizada, organizada por Tenório Telles para a editora Valer de Manaus. A obra de mais de 600 páginas, que estava há muito fora de circulação, inclui um vocabulário indígena comparado, mas é a coleção de narrativas orais e de cantigas populares que lhe dá importância e atraiu escritores como Mario de Andrade, entre outros modernistas brasileiros. 

O termo “poranduba” significa conto, e é com a análise da lenda ou do mito do saci que Barbosa Rodrigues inicia a obra. Embora chame os indígenas de selvagens, ele faz uma defesa veemente de suas habilidades intelectuais e de seu modo de vida em geral, acusando a elite nacional de não ter sido capaz de reconhecer plenamente a riqueza de sua cultura. Chega a afirmar, por exemplo, que o índio não conhece o medo: “O sobrenatural mesmo não o intimida; quando muito o espanta, e, se alguns temem a sombra do morto, sabem afrontar com altivez a morte.” 

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A arte narrativa dos “naturais” (outro termo empregado pelo autor), lida em nheengatu ou em tradução, talvez possa revelar aos leitores de hoje toda a sofisticação da filosofia autóctone que encantou Barbosa Rodrigues. De fato, os contos e as canções enfeixados na Poranduba Amazonense conservaram, mais de um século depois, seu viço e sua beleza, pois Barbosa soube resgatar o que havia de mais belo e sugestivo nessa literatura. Por isso, é possível ler as suas numerosas páginas de uma assentada, como se fosse uma obra contemporânea capaz de tocar profundamente o leitor.

Um dos tópicos explorados pelos narradores indígenas é muito atual: a relação interespécies. Ao mencionar o tema da virgem que dá origem a um herói, Marcos Frederico Krüger afirma notar, na apresentação que escreveu para a nova edição da antologia de Barbosa Rodrigues, “uma visível influência dos missionários na adulteração do mito”, ignorando que o próprio autor havia dito ao comentar o mesmo tema: “Nas Índias Orientais, na China, no Tibet, dois ou três mil anos antes de Cristo, já os deuses e semideuses eram dados como filhos de mães virgens. Assim Jurupari e outros [heróis indígenas] tiveram por mães, sempre, mulheres virgens e puras, como foi a Santíssima mãe d’Aquele que nos ensinou o caminho do céu.”

Lendo as façanhas de Jurupari na Poranduba Amazonense, creio não poder deixar de constatar, como ocorre em outros textos ameríndios (o Popol Vuh da Mesoamérica, por exemplo, ou o Manuscrito de Huarochiri dos Andes), que a virgem em questão, diferentemente das outras mães puras dos mitos universais, realiza sim o ato sexual antes de conceber, só que seu parceiro, neste caso, é uma fruta. Parece-me que a percepção desse sexo vegetal sempre escapou, e continua escapando, dos leitores especializados, que, ao analisarem o mito de Jurupari e de outros heróis indígenas nos quais o ato de sorver é sexual, apressaram-se em chamar sua mãe de virgem imaculada, influenciados naturalmente pela mitologia cristã. O gozo físico não está ausente dos mitos indígenas, e as virgens, antes de engravidar, se deleitam com árvores que lhes oferecem frutas sumarentas que as fertilizam, ou seja, o ato de sorver o sumo equivale a um intercurso amoroso. A reedição da obra de Barbosa Rodrigues pode ser uma boa introdução ao tema, o qual é também desenvolvido, como disse, em outras narrativas indígenas clássicas. 

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As canções indígenas e populares reunidas na Poranduba Amazonense são igualmente muito saborosas, com expressivas onomatopeias e aliterações, como neste exemplo: “Cu çu cui chá icó, Cururu”, que significa “Vamos dançar, Cururu”. Aqui o leitor é convidado a um baile interespécies, pois “cururu”, como se sabe, é um sapo.  *Sérgio Medeiros traduziu com Gordon Brotherston o poema Maia-Quiché 'Popol Vuh' e publicou vários livros de poesia, entre eles 'O Sexo Vegetal', 'A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens' e 'Trio Pagão', todos pela editora Iluminuras 

O saci, na floresta amazônica, é uma mulher, pois seu nome tupi (saci-taperê) significa “mãe das almas”, atuando como espírito dos caminhos. Contudo, essa entidade fantástica é também inclassificável e se metamorfoseia num pássaro, o qual geralmente não se vê, mas tem um único pé. Finalmente, identificado como curupira, se torna o protetor da caça e da floresta, e pode ser descrito simultaneamente como senhor, mãe e gênio com os pés voltados para trás, para enganar quem lhe observa as pegadas. Embora em algumas regiões do país seja conhecido como Caapora, no Rio de Janeiro passou a ser um molequinho coxo, ferido nos joelhos. São tantos os sacis gerados pela mãe das almas que se pode concluir que mitos indígenas diferentes se confundiram sob um mesmo ente genérico, conhecido atualmente de todos os brasileiros: o menino negro de uma perna só.

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João Barbosa Rodrigues, autor da 'Poranduba Amazonense' Foto: Wikimedia Commons

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Quem conta esse enredo intrincado e saboroso, à medida que vai analisando a decadência do nheengatu falado em boa parte do território brasileiro até meados do século 18, é João Barbosa Rodrigues (1842-1909), autor de Poranduba Amazonense, obra bilíngue fundamental da literatura indígena publicada originalmente em 1908 e que foi reeditada recentemente com grafia atualizada, organizada por Tenório Telles para a editora Valer de Manaus. A obra de mais de 600 páginas, que estava há muito fora de circulação, inclui um vocabulário indígena comparado, mas é a coleção de narrativas orais e de cantigas populares que lhe dá importância e atraiu escritores como Mario de Andrade, entre outros modernistas brasileiros. 

O termo “poranduba” significa conto, e é com a análise da lenda ou do mito do saci que Barbosa Rodrigues inicia a obra. Embora chame os indígenas de selvagens, ele faz uma defesa veemente de suas habilidades intelectuais e de seu modo de vida em geral, acusando a elite nacional de não ter sido capaz de reconhecer plenamente a riqueza de sua cultura. Chega a afirmar, por exemplo, que o índio não conhece o medo: “O sobrenatural mesmo não o intimida; quando muito o espanta, e, se alguns temem a sombra do morto, sabem afrontar com altivez a morte.” 

A arte narrativa dos “naturais” (outro termo empregado pelo autor), lida em nheengatu ou em tradução, talvez possa revelar aos leitores de hoje toda a sofisticação da filosofia autóctone que encantou Barbosa Rodrigues. De fato, os contos e as canções enfeixados na Poranduba Amazonense conservaram, mais de um século depois, seu viço e sua beleza, pois Barbosa soube resgatar o que havia de mais belo e sugestivo nessa literatura. Por isso, é possível ler as suas numerosas páginas de uma assentada, como se fosse uma obra contemporânea capaz de tocar profundamente o leitor.

Um dos tópicos explorados pelos narradores indígenas é muito atual: a relação interespécies. Ao mencionar o tema da virgem que dá origem a um herói, Marcos Frederico Krüger afirma notar, na apresentação que escreveu para a nova edição da antologia de Barbosa Rodrigues, “uma visível influência dos missionários na adulteração do mito”, ignorando que o próprio autor havia dito ao comentar o mesmo tema: “Nas Índias Orientais, na China, no Tibet, dois ou três mil anos antes de Cristo, já os deuses e semideuses eram dados como filhos de mães virgens. Assim Jurupari e outros [heróis indígenas] tiveram por mães, sempre, mulheres virgens e puras, como foi a Santíssima mãe d’Aquele que nos ensinou o caminho do céu.”

Lendo as façanhas de Jurupari na Poranduba Amazonense, creio não poder deixar de constatar, como ocorre em outros textos ameríndios (o Popol Vuh da Mesoamérica, por exemplo, ou o Manuscrito de Huarochiri dos Andes), que a virgem em questão, diferentemente das outras mães puras dos mitos universais, realiza sim o ato sexual antes de conceber, só que seu parceiro, neste caso, é uma fruta. Parece-me que a percepção desse sexo vegetal sempre escapou, e continua escapando, dos leitores especializados, que, ao analisarem o mito de Jurupari e de outros heróis indígenas nos quais o ato de sorver é sexual, apressaram-se em chamar sua mãe de virgem imaculada, influenciados naturalmente pela mitologia cristã. O gozo físico não está ausente dos mitos indígenas, e as virgens, antes de engravidar, se deleitam com árvores que lhes oferecem frutas sumarentas que as fertilizam, ou seja, o ato de sorver o sumo equivale a um intercurso amoroso. A reedição da obra de Barbosa Rodrigues pode ser uma boa introdução ao tema, o qual é também desenvolvido, como disse, em outras narrativas indígenas clássicas. 

As canções indígenas e populares reunidas na Poranduba Amazonense são igualmente muito saborosas, com expressivas onomatopeias e aliterações, como neste exemplo: “Cu çu cui chá icó, Cururu”, que significa “Vamos dançar, Cururu”. Aqui o leitor é convidado a um baile interespécies, pois “cururu”, como se sabe, é um sapo.  *Sérgio Medeiros traduziu com Gordon Brotherston o poema Maia-Quiché 'Popol Vuh' e publicou vários livros de poesia, entre eles 'O Sexo Vegetal', 'A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens' e 'Trio Pagão', todos pela editora Iluminuras 

O saci, na floresta amazônica, é uma mulher, pois seu nome tupi (saci-taperê) significa “mãe das almas”, atuando como espírito dos caminhos. Contudo, essa entidade fantástica é também inclassificável e se metamorfoseia num pássaro, o qual geralmente não se vê, mas tem um único pé. Finalmente, identificado como curupira, se torna o protetor da caça e da floresta, e pode ser descrito simultaneamente como senhor, mãe e gênio com os pés voltados para trás, para enganar quem lhe observa as pegadas. Embora em algumas regiões do país seja conhecido como Caapora, no Rio de Janeiro passou a ser um molequinho coxo, ferido nos joelhos. São tantos os sacis gerados pela mãe das almas que se pode concluir que mitos indígenas diferentes se confundiram sob um mesmo ente genérico, conhecido atualmente de todos os brasileiros: o menino negro de uma perna só.

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João Barbosa Rodrigues, autor da 'Poranduba Amazonense' Foto: Wikimedia Commons

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Quem conta esse enredo intrincado e saboroso, à medida que vai analisando a decadência do nheengatu falado em boa parte do território brasileiro até meados do século 18, é João Barbosa Rodrigues (1842-1909), autor de Poranduba Amazonense, obra bilíngue fundamental da literatura indígena publicada originalmente em 1908 e que foi reeditada recentemente com grafia atualizada, organizada por Tenório Telles para a editora Valer de Manaus. A obra de mais de 600 páginas, que estava há muito fora de circulação, inclui um vocabulário indígena comparado, mas é a coleção de narrativas orais e de cantigas populares que lhe dá importância e atraiu escritores como Mario de Andrade, entre outros modernistas brasileiros. 

O termo “poranduba” significa conto, e é com a análise da lenda ou do mito do saci que Barbosa Rodrigues inicia a obra. Embora chame os indígenas de selvagens, ele faz uma defesa veemente de suas habilidades intelectuais e de seu modo de vida em geral, acusando a elite nacional de não ter sido capaz de reconhecer plenamente a riqueza de sua cultura. Chega a afirmar, por exemplo, que o índio não conhece o medo: “O sobrenatural mesmo não o intimida; quando muito o espanta, e, se alguns temem a sombra do morto, sabem afrontar com altivez a morte.” 

A arte narrativa dos “naturais” (outro termo empregado pelo autor), lida em nheengatu ou em tradução, talvez possa revelar aos leitores de hoje toda a sofisticação da filosofia autóctone que encantou Barbosa Rodrigues. De fato, os contos e as canções enfeixados na Poranduba Amazonense conservaram, mais de um século depois, seu viço e sua beleza, pois Barbosa soube resgatar o que havia de mais belo e sugestivo nessa literatura. Por isso, é possível ler as suas numerosas páginas de uma assentada, como se fosse uma obra contemporânea capaz de tocar profundamente o leitor.

Um dos tópicos explorados pelos narradores indígenas é muito atual: a relação interespécies. Ao mencionar o tema da virgem que dá origem a um herói, Marcos Frederico Krüger afirma notar, na apresentação que escreveu para a nova edição da antologia de Barbosa Rodrigues, “uma visível influência dos missionários na adulteração do mito”, ignorando que o próprio autor havia dito ao comentar o mesmo tema: “Nas Índias Orientais, na China, no Tibet, dois ou três mil anos antes de Cristo, já os deuses e semideuses eram dados como filhos de mães virgens. Assim Jurupari e outros [heróis indígenas] tiveram por mães, sempre, mulheres virgens e puras, como foi a Santíssima mãe d’Aquele que nos ensinou o caminho do céu.”

Lendo as façanhas de Jurupari na Poranduba Amazonense, creio não poder deixar de constatar, como ocorre em outros textos ameríndios (o Popol Vuh da Mesoamérica, por exemplo, ou o Manuscrito de Huarochiri dos Andes), que a virgem em questão, diferentemente das outras mães puras dos mitos universais, realiza sim o ato sexual antes de conceber, só que seu parceiro, neste caso, é uma fruta. Parece-me que a percepção desse sexo vegetal sempre escapou, e continua escapando, dos leitores especializados, que, ao analisarem o mito de Jurupari e de outros heróis indígenas nos quais o ato de sorver é sexual, apressaram-se em chamar sua mãe de virgem imaculada, influenciados naturalmente pela mitologia cristã. O gozo físico não está ausente dos mitos indígenas, e as virgens, antes de engravidar, se deleitam com árvores que lhes oferecem frutas sumarentas que as fertilizam, ou seja, o ato de sorver o sumo equivale a um intercurso amoroso. A reedição da obra de Barbosa Rodrigues pode ser uma boa introdução ao tema, o qual é também desenvolvido, como disse, em outras narrativas indígenas clássicas. 

As canções indígenas e populares reunidas na Poranduba Amazonense são igualmente muito saborosas, com expressivas onomatopeias e aliterações, como neste exemplo: “Cu çu cui chá icó, Cururu”, que significa “Vamos dançar, Cururu”. Aqui o leitor é convidado a um baile interespécies, pois “cururu”, como se sabe, é um sapo.  *Sérgio Medeiros traduziu com Gordon Brotherston o poema Maia-Quiché 'Popol Vuh' e publicou vários livros de poesia, entre eles 'O Sexo Vegetal', 'A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens' e 'Trio Pagão', todos pela editora Iluminuras 

O saci, na floresta amazônica, é uma mulher, pois seu nome tupi (saci-taperê) significa “mãe das almas”, atuando como espírito dos caminhos. Contudo, essa entidade fantástica é também inclassificável e se metamorfoseia num pássaro, o qual geralmente não se vê, mas tem um único pé. Finalmente, identificado como curupira, se torna o protetor da caça e da floresta, e pode ser descrito simultaneamente como senhor, mãe e gênio com os pés voltados para trás, para enganar quem lhe observa as pegadas. Embora em algumas regiões do país seja conhecido como Caapora, no Rio de Janeiro passou a ser um molequinho coxo, ferido nos joelhos. São tantos os sacis gerados pela mãe das almas que se pode concluir que mitos indígenas diferentes se confundiram sob um mesmo ente genérico, conhecido atualmente de todos os brasileiros: o menino negro de uma perna só.

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João Barbosa Rodrigues, autor da 'Poranduba Amazonense' Foto: Wikimedia Commons

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Quem conta esse enredo intrincado e saboroso, à medida que vai analisando a decadência do nheengatu falado em boa parte do território brasileiro até meados do século 18, é João Barbosa Rodrigues (1842-1909), autor de Poranduba Amazonense, obra bilíngue fundamental da literatura indígena publicada originalmente em 1908 e que foi reeditada recentemente com grafia atualizada, organizada por Tenório Telles para a editora Valer de Manaus. A obra de mais de 600 páginas, que estava há muito fora de circulação, inclui um vocabulário indígena comparado, mas é a coleção de narrativas orais e de cantigas populares que lhe dá importância e atraiu escritores como Mario de Andrade, entre outros modernistas brasileiros. 

O termo “poranduba” significa conto, e é com a análise da lenda ou do mito do saci que Barbosa Rodrigues inicia a obra. Embora chame os indígenas de selvagens, ele faz uma defesa veemente de suas habilidades intelectuais e de seu modo de vida em geral, acusando a elite nacional de não ter sido capaz de reconhecer plenamente a riqueza de sua cultura. Chega a afirmar, por exemplo, que o índio não conhece o medo: “O sobrenatural mesmo não o intimida; quando muito o espanta, e, se alguns temem a sombra do morto, sabem afrontar com altivez a morte.” 

A arte narrativa dos “naturais” (outro termo empregado pelo autor), lida em nheengatu ou em tradução, talvez possa revelar aos leitores de hoje toda a sofisticação da filosofia autóctone que encantou Barbosa Rodrigues. De fato, os contos e as canções enfeixados na Poranduba Amazonense conservaram, mais de um século depois, seu viço e sua beleza, pois Barbosa soube resgatar o que havia de mais belo e sugestivo nessa literatura. Por isso, é possível ler as suas numerosas páginas de uma assentada, como se fosse uma obra contemporânea capaz de tocar profundamente o leitor.

Um dos tópicos explorados pelos narradores indígenas é muito atual: a relação interespécies. Ao mencionar o tema da virgem que dá origem a um herói, Marcos Frederico Krüger afirma notar, na apresentação que escreveu para a nova edição da antologia de Barbosa Rodrigues, “uma visível influência dos missionários na adulteração do mito”, ignorando que o próprio autor havia dito ao comentar o mesmo tema: “Nas Índias Orientais, na China, no Tibet, dois ou três mil anos antes de Cristo, já os deuses e semideuses eram dados como filhos de mães virgens. Assim Jurupari e outros [heróis indígenas] tiveram por mães, sempre, mulheres virgens e puras, como foi a Santíssima mãe d’Aquele que nos ensinou o caminho do céu.”

Lendo as façanhas de Jurupari na Poranduba Amazonense, creio não poder deixar de constatar, como ocorre em outros textos ameríndios (o Popol Vuh da Mesoamérica, por exemplo, ou o Manuscrito de Huarochiri dos Andes), que a virgem em questão, diferentemente das outras mães puras dos mitos universais, realiza sim o ato sexual antes de conceber, só que seu parceiro, neste caso, é uma fruta. Parece-me que a percepção desse sexo vegetal sempre escapou, e continua escapando, dos leitores especializados, que, ao analisarem o mito de Jurupari e de outros heróis indígenas nos quais o ato de sorver é sexual, apressaram-se em chamar sua mãe de virgem imaculada, influenciados naturalmente pela mitologia cristã. O gozo físico não está ausente dos mitos indígenas, e as virgens, antes de engravidar, se deleitam com árvores que lhes oferecem frutas sumarentas que as fertilizam, ou seja, o ato de sorver o sumo equivale a um intercurso amoroso. A reedição da obra de Barbosa Rodrigues pode ser uma boa introdução ao tema, o qual é também desenvolvido, como disse, em outras narrativas indígenas clássicas. 

As canções indígenas e populares reunidas na Poranduba Amazonense são igualmente muito saborosas, com expressivas onomatopeias e aliterações, como neste exemplo: “Cu çu cui chá icó, Cururu”, que significa “Vamos dançar, Cururu”. Aqui o leitor é convidado a um baile interespécies, pois “cururu”, como se sabe, é um sapo.  *Sérgio Medeiros traduziu com Gordon Brotherston o poema Maia-Quiché 'Popol Vuh' e publicou vários livros de poesia, entre eles 'O Sexo Vegetal', 'A Idolatria Poética ou a Febre de Imagens' e 'Trio Pagão', todos pela editora Iluminuras 

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João Barbosa Rodrigues, autor da 'Poranduba Amazonense' Foto: Wikimedia Commons

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O termo “poranduba” significa conto, e é com a análise da lenda ou do mito do saci que Barbosa Rodrigues inicia a obra. Embora chame os indígenas de selvagens, ele faz uma defesa veemente de suas habilidades intelectuais e de seu modo de vida em geral, acusando a elite nacional de não ter sido capaz de reconhecer plenamente a riqueza de sua cultura. Chega a afirmar, por exemplo, que o índio não conhece o medo: “O sobrenatural mesmo não o intimida; quando muito o espanta, e, se alguns temem a sombra do morto, sabem afrontar com altivez a morte.” 

A arte narrativa dos “naturais” (outro termo empregado pelo autor), lida em nheengatu ou em tradução, talvez possa revelar aos leitores de hoje toda a sofisticação da filosofia autóctone que encantou Barbosa Rodrigues. De fato, os contos e as canções enfeixados na Poranduba Amazonense conservaram, mais de um século depois, seu viço e sua beleza, pois Barbosa soube resgatar o que havia de mais belo e sugestivo nessa literatura. Por isso, é possível ler as suas numerosas páginas de uma assentada, como se fosse uma obra contemporânea capaz de tocar profundamente o leitor.

Um dos tópicos explorados pelos narradores indígenas é muito atual: a relação interespécies. Ao mencionar o tema da virgem que dá origem a um herói, Marcos Frederico Krüger afirma notar, na apresentação que escreveu para a nova edição da antologia de Barbosa Rodrigues, “uma visível influência dos missionários na adulteração do mito”, ignorando que o próprio autor havia dito ao comentar o mesmo tema: “Nas Índias Orientais, na China, no Tibet, dois ou três mil anos antes de Cristo, já os deuses e semideuses eram dados como filhos de mães virgens. Assim Jurupari e outros [heróis indígenas] tiveram por mães, sempre, mulheres virgens e puras, como foi a Santíssima mãe d’Aquele que nos ensinou o caminho do céu.”

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