Em sua busca incessante pelo gato perdido, a protagonista Mary, à luz da autora de mesmo nome, evoca Chekhov para fechar a sua trama. Sentia-se como uma personagem secundária do russo, “‘tentando extrair da vida mais do que essa pode dar’; talvez tenha me transformado nesse personagem, incapaz de aceitar o que me foi dado, sempre tentando destruir as coisas visando encontrar o que é ‘real’”.
Em O Gato Perdido, Mary Gaitskill se aproxima das memórias e prova o quão doloroso pode ser adentrar suas fronteiras. Ficcionista nascida no estado do Kentucky, nos Estados Unidos, Gaitskill tem uma carreira sólida no conto norte-americano, tendo publicado seus trabalhos em revistas como Granta e The New Yorker.
Um relato enxuto e visceral, a autora mira o sumiço do felino para falar das perdas em sua vida. Uma metáfora que cruzou seu caminho, não era um gato preto, sim um esquálido gato malhado, resgatado de um sítio na Toscana. Durante uma viagem à Itália, a mulher recolhe o animal de um olho só e tem contato com um rapaz que, em suas palavras, pode ser mágico. À primeira vista, fica marcada a anomalia: cego, foi em Mary que o filhote encontrou a paz, mas por pouco tempo.
Quando cruzam o Atlântico em uma viagem atribulada, no retorno aos EUA, Gattino, que também foi batizado de Chance ou McDestino, aos poucos se adapta à dinâmica da nova casa. Conquista outros gatos, faz reverência, encosta seu focinho no do outro. E não ultrapassa as fronteiras do quintal da casa. Ao menos é o que a protagonista acredita no início.
Mas o instinto fala mais alto. Do ato da fuga do gato, a sina de Mary começa. Em paralelo ao acontecimento que guia as reflexões da protagonista, três histórias se emaranham na teia de sua vida: o encontro com os jovens de uma instituição de menores desamparados, a Fresh Air Fund.
O primeiro Ezekial, com sua marra e destempero, se dá bem com os gatos. O que provoca o pobre Caesar, filho de uma imigrante da República Dominicana, cuja bagagem de maus tratos pesa em sua vida. Sua irmã, Natalia, uma jovem de caminhos tortuosos, também entrará no caminho de Mary. O abismo social é aberto ao leitor e o tamanho do estrago é uma culpa tão grande carregada pela protagonista. A crítica étnica é inevitável.
São muitos fardos que Mary leva consigo. Ao seu lado, está Peter, marido e companheiro, oposto do que a figura paterna significou para sua mãe. O homem, personagem secundário que esbanja paciência, também é porto seguro da narradora. Na busca pelo gato perdido, o casal não mede esforços para achar, e o desespero é a porta de entrada para outras dúvidas que surgem em sua vida, como a conflituosa relação com o pai doente. Nesse processo, a própria fé é colocada em um debate que mostra o poder do sincretismo. Mary sente que o gato vive, em algum lugar, e recorre a médiuns e superstições.
À medida que o tempo passa, a protagonista reflete sobre a caminhada, a busca, e, sobretudo, as faltas que a vida lhe reservou. Mesmo bem-sucedida, Mary vê como a falta da crença mina o terreno espiritual na hora do sufoco. Na história, a figura do gato é a própria crença e, como crava no começo da história, a chance.
“O amor humano é terrivelmente falho, e mesmo quando não é, as pessoas geralmente o interpretam mal; também rejeitam, usam e manipulam o amor.”, reflete a autora, enquanto pondera sobre as crises existenciais das irmãs, das doenças que acometem a família e das crianças problemáticas a sua volta. E conclui: “Um animal nunca escolhe o sofrimento; um animal aceita o amor até mais facilmente do que os jovens”. E foi assim com Gattino, sob o sol da Toscana.
Do meio da escuridão profunda, que é como alguns personagens se encontram (o pai padece de câncer; a irmã, com o gato mandado para eutanásia; o luto; Natalia, irmã de Caesar, espancada pela mãe), apenas um filete de luz é necessário para refletir os olhos de gato. No caso de Gattino, que representava esperança, com um olho só, a protagonista volta ao princípio, reflete até chegar ao dia em que conheceu o gato maltrapilho.
Como no relato de Haruki Murakami, as voltas que esses animais dão na vida dos donos são significativas e repletas de misticismo. “Eu me perguntava se a bola de gude azul que aparecera magicamente na Itália e que depois joguei fora tinha alguma coisa a ver com o desaparecimento do gato”. A crença da protagonista se volta contra a “ordem do visível” e busca nos símbolos uma explicação para a sua jornada, afinal, seus símbolos não eram bonitos, mas similares, em propósito, aos ícones e estátuas diante das quais as pessoas rezam. Se em Murakami o retorno do gato aconchegou sua infância, a partida do felino de Mary é determinante para ela enfrentar os próprios fantasmas, pois a vida não é tão virtuosa.
O GATO PERDIDO
MARY GAITSKILL
TRADUÇÃO DE IZALCO SARDENBERG
80 PAGINAS
R$ 49,90 OU 29,90 (E-book)