Escritores, pintores e músicos escolheram a produção reclusa para elaborar grandes obras


De Shakespeare a Bansky, artistas enfrentaram pandemias ou simplesmente optaram por não dar as caras

Por Paulo Nogueira

Antes que conseguíssemos dizer anticonstitucionalissimamente, nosso modo de vida plantou bananeira – tudo por causa de uma pereba microscópica cujo código genético (mais simples que o de uma bactéria) quase não é compatível com uma entidade viva. A civilização global derrapou e descobrimos, atônitos, que nosso cotidiano não passava de um castelo de cartas. 

O vírus pegou carona em aviões, se regalou em suítes principescas de navios de cruzeiro, se refestelou em maçanetas e interruptores, virando um macabro negócio da China. Porém, se não há ainda uma vacina, pelo menos existe uma bela vitamina espiritual, que nesta era tão secular é a arte. Afinal, como já lacrava Nietzsche, a arte existe para que a realidade não nos destrua. Mas será que os artistas contemporâneos, quando a ânsia de viralização nas redes sociais é um vírus cultural, entendem de reclusão? Será que ainda existem torres de marfim, ou pelo menos quitinetes criativas?

Edvard Munch pintou o quadro 'Autorretrato com a Gripe Espanhola' durante pandemia 
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Na literatura, a coisa é mais simples, até por deformação profissional: ficcionistas precisam de privacidade e introspecção para botar a mão na massa. A ficção literária é precisamente uma ponte entre duas solidões: a do autor que escreve, e a do leitor que lê. Ainda assim, escritores também gostam de bater perna, como disse o crítico George Steiner: “Os vegetais têm raízes. As pessoas têm pés”. 

Apesar disso, tem autores que assumem seu complexo de Greta Garbo e só querem ser deixados quietos no seu canto. Dalton Trevisan, que em um mês fará 95 anos, é um desses eremitas que amam a respectiva cripta – é conhecido como “o vampiro de Curitiba”. Prêmio Camões de 2012, Dalton vive no mesmo mausoléu há 50 anos, e nada de entrevistas nem fotos. Noites de autógrafo? Só no dia de São Nunca. 

Rubem Fonseca também odiava salamaleques midiáticos, embora não fosse misantropo. O colunista Sérgio Augusto contou no Estadão que uma única vez pediu um entrevista a RF – o pedido entrou a jato por um ouvido e saiu a galope pelo outro. Fonseca não lia críticas a sua obra – o que pode ter prós e contras. Em um autor tão reverenciado, talvez fosse uma modéstia quase franciscana. 

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Um recluso imbatível foi o americano J. D. Salinger, autor de O Apanhador no Campo de Centeio, que une o útil ao agradável: clássico da literatura e best-seller com 80 milhões de exemplares vendidos. O autor deu uma banana para a notoriedade: recusou todas as adaptações para o cinema e se entrincheirou numa roça em New Hampshire. Nunca mais escreveu um romance, e vetava qualquer forma de publicidade. Ameaçou disparar contra pessoas que se aproximassem de sua casa e espalhou cartazes apregoando isso. Segundo a filha dele, desenvolveu o hábito de beber a própria urina, acreditando que era boa para a saúde. Como viveu até os 91 anos, talvez tivesse uma certa razão (pior que a cloroquina o xixi não pode ser). 

Thomas Pynchon é outra daquelas criaturas famosas por odiarem a fama. De 83 anos, só existem dez imagens dele, inclusive um vídeo furtivo de 1997 da CNN, que o autor retaliou: “’Recluso’ é um termo criado pela mídia para gente que não gosta de falar com repórteres.” Quando o livro O Leilão do Lote 49 embolsou o National Book Award, Pynchon enviou um humorista à cerimônia, o “professor” Irwin Corey (um “professor Raimundo” americano), que proferiu um discurso maluquete de agradecimento. 

Se na literatura se entende o ensimesmamento, no mundo da moda – gregário e mundano por definição –, ele parece mais desconcertante. Pois foi essa a opção do esfíngico Martin Margiela, um dos estilistas mais revolucionários de todos os tempos. No reino das passarelas todo mundo sabe quem ele é, mas quase ninguém sabe exatamente como ele é. Belga de 63 anos, conhecido como o “Homem Invisível”, não aparece em público nem dá entrevistas. E a palavra “eu” não faz parte do dicionário dele: só fala de suas criações como “nós” – não aquele plural majestático dos jogadores de futebol, mas para incluir todos os funcionários da grife. 

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A música é outro reduto mais boêmio que monástico. Menos para João Gilberto, cujos pitis misantrópicos legaram tomos de lendas urbanas. Como a de que foi o pioneiro da refeição delivery: ligava para o restaurante carioca Antiquarius, grunhia sempre com o mesmo garçom, e se identificava como “o senhor Oliveira”. E aquele outro causo (quase bom demais para ser verdade), quando pediu a Elba Ramalho que levasse à casa dele um baralho, já de madrugada. Embevecida com a chance de pisar no Olimpo rarefeito, a cantora chispou. Só para, diante da porta do Zeus da Bossa-Nova, ouvir a vozinha sussurrante: “Passe as cartas sob a porta, uma a uma.”

Nas artes plásticas, há Bansky, pseudônimo do mais viral artista urbano do mundo. Outro dia, ele homenageou profissionais da saúde com a obra “Game Change”, na qual uma criança troca bonecos de super-heróis por outros de médicos e enfermeiros. O dinheiro da venda da peça irá para o serviço de saúde pública britânico. Bansky não vende suas peças diretamente, pois são criadas em paredes públicas das ruas. Leiloeiros tentaram comercializá-las – e o comprador que se virasse para remover o grafite. Há 20 anos literalmente na praça, o artista nunca revelou sua identidade. 

Já o norueguês Edvard Munch, pintor do manjado O Grito, contraiu a gripe espanhola na pandemia de 1919. Hermeticamente fechado em casa, o lockdown lhe inspirou duas telas sugestivas Autorretrato com a Gripe Espanhola e Autorretrato Depois da Gripe Espanhola

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Por sua vez, o austríaco Gustav Klimt (do célebre quadro O Beijo) não teve um antes e um depois: morreu logo no início da pandemia, ainda em 1918. Em compensação, Kafka e Walt Disney, também infectados pela gripe espanhola, sobreviveram (convenhamos que Kafka sobreviver a uma epidemia é bem kafkiano).

Por falar em clássico, nos palcos não há figurinha mais carimbada do que Shakespeare, que escreveu sua tragédia mais excruciante – Rei Lear – fechadinho em casa, durante a peste bubônica que assolou Londres no século 17. Não lhe faltava tempo, pois os teatro foram os primeiros a fechar (antes dos bordeis). Como rugiu um pregador da época: “A causa das pragas é o pecado, e a causa do pecado são as peças de teatro”. 

Consta que, quando acabou a primeira guerra mundial, um espertinho cutucou o escritor irlandês James Joyce: “E aí, o que o senhor fez esse tempo todo?” Joyce sapecou na lata: “Escrevi Ulysses. E você?” Quanto a nós, simples mortais (mais mortais do que nunca), não precisamos gerar nenhuma obra-prima universal. 

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Leitor, se você fica em casa e toda manhã ainda consegue tirar as remelas dos olhos, já é o meu herói.

Antes que conseguíssemos dizer anticonstitucionalissimamente, nosso modo de vida plantou bananeira – tudo por causa de uma pereba microscópica cujo código genético (mais simples que o de uma bactéria) quase não é compatível com uma entidade viva. A civilização global derrapou e descobrimos, atônitos, que nosso cotidiano não passava de um castelo de cartas. 

O vírus pegou carona em aviões, se regalou em suítes principescas de navios de cruzeiro, se refestelou em maçanetas e interruptores, virando um macabro negócio da China. Porém, se não há ainda uma vacina, pelo menos existe uma bela vitamina espiritual, que nesta era tão secular é a arte. Afinal, como já lacrava Nietzsche, a arte existe para que a realidade não nos destrua. Mas será que os artistas contemporâneos, quando a ânsia de viralização nas redes sociais é um vírus cultural, entendem de reclusão? Será que ainda existem torres de marfim, ou pelo menos quitinetes criativas?

Edvard Munch pintou o quadro 'Autorretrato com a Gripe Espanhola' durante pandemia 

Na literatura, a coisa é mais simples, até por deformação profissional: ficcionistas precisam de privacidade e introspecção para botar a mão na massa. A ficção literária é precisamente uma ponte entre duas solidões: a do autor que escreve, e a do leitor que lê. Ainda assim, escritores também gostam de bater perna, como disse o crítico George Steiner: “Os vegetais têm raízes. As pessoas têm pés”. 

Apesar disso, tem autores que assumem seu complexo de Greta Garbo e só querem ser deixados quietos no seu canto. Dalton Trevisan, que em um mês fará 95 anos, é um desses eremitas que amam a respectiva cripta – é conhecido como “o vampiro de Curitiba”. Prêmio Camões de 2012, Dalton vive no mesmo mausoléu há 50 anos, e nada de entrevistas nem fotos. Noites de autógrafo? Só no dia de São Nunca. 

Rubem Fonseca também odiava salamaleques midiáticos, embora não fosse misantropo. O colunista Sérgio Augusto contou no Estadão que uma única vez pediu um entrevista a RF – o pedido entrou a jato por um ouvido e saiu a galope pelo outro. Fonseca não lia críticas a sua obra – o que pode ter prós e contras. Em um autor tão reverenciado, talvez fosse uma modéstia quase franciscana. 

Um recluso imbatível foi o americano J. D. Salinger, autor de O Apanhador no Campo de Centeio, que une o útil ao agradável: clássico da literatura e best-seller com 80 milhões de exemplares vendidos. O autor deu uma banana para a notoriedade: recusou todas as adaptações para o cinema e se entrincheirou numa roça em New Hampshire. Nunca mais escreveu um romance, e vetava qualquer forma de publicidade. Ameaçou disparar contra pessoas que se aproximassem de sua casa e espalhou cartazes apregoando isso. Segundo a filha dele, desenvolveu o hábito de beber a própria urina, acreditando que era boa para a saúde. Como viveu até os 91 anos, talvez tivesse uma certa razão (pior que a cloroquina o xixi não pode ser). 

Thomas Pynchon é outra daquelas criaturas famosas por odiarem a fama. De 83 anos, só existem dez imagens dele, inclusive um vídeo furtivo de 1997 da CNN, que o autor retaliou: “’Recluso’ é um termo criado pela mídia para gente que não gosta de falar com repórteres.” Quando o livro O Leilão do Lote 49 embolsou o National Book Award, Pynchon enviou um humorista à cerimônia, o “professor” Irwin Corey (um “professor Raimundo” americano), que proferiu um discurso maluquete de agradecimento. 

Se na literatura se entende o ensimesmamento, no mundo da moda – gregário e mundano por definição –, ele parece mais desconcertante. Pois foi essa a opção do esfíngico Martin Margiela, um dos estilistas mais revolucionários de todos os tempos. No reino das passarelas todo mundo sabe quem ele é, mas quase ninguém sabe exatamente como ele é. Belga de 63 anos, conhecido como o “Homem Invisível”, não aparece em público nem dá entrevistas. E a palavra “eu” não faz parte do dicionário dele: só fala de suas criações como “nós” – não aquele plural majestático dos jogadores de futebol, mas para incluir todos os funcionários da grife. 

A música é outro reduto mais boêmio que monástico. Menos para João Gilberto, cujos pitis misantrópicos legaram tomos de lendas urbanas. Como a de que foi o pioneiro da refeição delivery: ligava para o restaurante carioca Antiquarius, grunhia sempre com o mesmo garçom, e se identificava como “o senhor Oliveira”. E aquele outro causo (quase bom demais para ser verdade), quando pediu a Elba Ramalho que levasse à casa dele um baralho, já de madrugada. Embevecida com a chance de pisar no Olimpo rarefeito, a cantora chispou. Só para, diante da porta do Zeus da Bossa-Nova, ouvir a vozinha sussurrante: “Passe as cartas sob a porta, uma a uma.”

Nas artes plásticas, há Bansky, pseudônimo do mais viral artista urbano do mundo. Outro dia, ele homenageou profissionais da saúde com a obra “Game Change”, na qual uma criança troca bonecos de super-heróis por outros de médicos e enfermeiros. O dinheiro da venda da peça irá para o serviço de saúde pública britânico. Bansky não vende suas peças diretamente, pois são criadas em paredes públicas das ruas. Leiloeiros tentaram comercializá-las – e o comprador que se virasse para remover o grafite. Há 20 anos literalmente na praça, o artista nunca revelou sua identidade. 

Já o norueguês Edvard Munch, pintor do manjado O Grito, contraiu a gripe espanhola na pandemia de 1919. Hermeticamente fechado em casa, o lockdown lhe inspirou duas telas sugestivas Autorretrato com a Gripe Espanhola e Autorretrato Depois da Gripe Espanhola

Por sua vez, o austríaco Gustav Klimt (do célebre quadro O Beijo) não teve um antes e um depois: morreu logo no início da pandemia, ainda em 1918. Em compensação, Kafka e Walt Disney, também infectados pela gripe espanhola, sobreviveram (convenhamos que Kafka sobreviver a uma epidemia é bem kafkiano).

Por falar em clássico, nos palcos não há figurinha mais carimbada do que Shakespeare, que escreveu sua tragédia mais excruciante – Rei Lear – fechadinho em casa, durante a peste bubônica que assolou Londres no século 17. Não lhe faltava tempo, pois os teatro foram os primeiros a fechar (antes dos bordeis). Como rugiu um pregador da época: “A causa das pragas é o pecado, e a causa do pecado são as peças de teatro”. 

Consta que, quando acabou a primeira guerra mundial, um espertinho cutucou o escritor irlandês James Joyce: “E aí, o que o senhor fez esse tempo todo?” Joyce sapecou na lata: “Escrevi Ulysses. E você?” Quanto a nós, simples mortais (mais mortais do que nunca), não precisamos gerar nenhuma obra-prima universal. 

Leitor, se você fica em casa e toda manhã ainda consegue tirar as remelas dos olhos, já é o meu herói.

Antes que conseguíssemos dizer anticonstitucionalissimamente, nosso modo de vida plantou bananeira – tudo por causa de uma pereba microscópica cujo código genético (mais simples que o de uma bactéria) quase não é compatível com uma entidade viva. A civilização global derrapou e descobrimos, atônitos, que nosso cotidiano não passava de um castelo de cartas. 

O vírus pegou carona em aviões, se regalou em suítes principescas de navios de cruzeiro, se refestelou em maçanetas e interruptores, virando um macabro negócio da China. Porém, se não há ainda uma vacina, pelo menos existe uma bela vitamina espiritual, que nesta era tão secular é a arte. Afinal, como já lacrava Nietzsche, a arte existe para que a realidade não nos destrua. Mas será que os artistas contemporâneos, quando a ânsia de viralização nas redes sociais é um vírus cultural, entendem de reclusão? Será que ainda existem torres de marfim, ou pelo menos quitinetes criativas?

Edvard Munch pintou o quadro 'Autorretrato com a Gripe Espanhola' durante pandemia 

Na literatura, a coisa é mais simples, até por deformação profissional: ficcionistas precisam de privacidade e introspecção para botar a mão na massa. A ficção literária é precisamente uma ponte entre duas solidões: a do autor que escreve, e a do leitor que lê. Ainda assim, escritores também gostam de bater perna, como disse o crítico George Steiner: “Os vegetais têm raízes. As pessoas têm pés”. 

Apesar disso, tem autores que assumem seu complexo de Greta Garbo e só querem ser deixados quietos no seu canto. Dalton Trevisan, que em um mês fará 95 anos, é um desses eremitas que amam a respectiva cripta – é conhecido como “o vampiro de Curitiba”. Prêmio Camões de 2012, Dalton vive no mesmo mausoléu há 50 anos, e nada de entrevistas nem fotos. Noites de autógrafo? Só no dia de São Nunca. 

Rubem Fonseca também odiava salamaleques midiáticos, embora não fosse misantropo. O colunista Sérgio Augusto contou no Estadão que uma única vez pediu um entrevista a RF – o pedido entrou a jato por um ouvido e saiu a galope pelo outro. Fonseca não lia críticas a sua obra – o que pode ter prós e contras. Em um autor tão reverenciado, talvez fosse uma modéstia quase franciscana. 

Um recluso imbatível foi o americano J. D. Salinger, autor de O Apanhador no Campo de Centeio, que une o útil ao agradável: clássico da literatura e best-seller com 80 milhões de exemplares vendidos. O autor deu uma banana para a notoriedade: recusou todas as adaptações para o cinema e se entrincheirou numa roça em New Hampshire. Nunca mais escreveu um romance, e vetava qualquer forma de publicidade. Ameaçou disparar contra pessoas que se aproximassem de sua casa e espalhou cartazes apregoando isso. Segundo a filha dele, desenvolveu o hábito de beber a própria urina, acreditando que era boa para a saúde. Como viveu até os 91 anos, talvez tivesse uma certa razão (pior que a cloroquina o xixi não pode ser). 

Thomas Pynchon é outra daquelas criaturas famosas por odiarem a fama. De 83 anos, só existem dez imagens dele, inclusive um vídeo furtivo de 1997 da CNN, que o autor retaliou: “’Recluso’ é um termo criado pela mídia para gente que não gosta de falar com repórteres.” Quando o livro O Leilão do Lote 49 embolsou o National Book Award, Pynchon enviou um humorista à cerimônia, o “professor” Irwin Corey (um “professor Raimundo” americano), que proferiu um discurso maluquete de agradecimento. 

Se na literatura se entende o ensimesmamento, no mundo da moda – gregário e mundano por definição –, ele parece mais desconcertante. Pois foi essa a opção do esfíngico Martin Margiela, um dos estilistas mais revolucionários de todos os tempos. No reino das passarelas todo mundo sabe quem ele é, mas quase ninguém sabe exatamente como ele é. Belga de 63 anos, conhecido como o “Homem Invisível”, não aparece em público nem dá entrevistas. E a palavra “eu” não faz parte do dicionário dele: só fala de suas criações como “nós” – não aquele plural majestático dos jogadores de futebol, mas para incluir todos os funcionários da grife. 

A música é outro reduto mais boêmio que monástico. Menos para João Gilberto, cujos pitis misantrópicos legaram tomos de lendas urbanas. Como a de que foi o pioneiro da refeição delivery: ligava para o restaurante carioca Antiquarius, grunhia sempre com o mesmo garçom, e se identificava como “o senhor Oliveira”. E aquele outro causo (quase bom demais para ser verdade), quando pediu a Elba Ramalho que levasse à casa dele um baralho, já de madrugada. Embevecida com a chance de pisar no Olimpo rarefeito, a cantora chispou. Só para, diante da porta do Zeus da Bossa-Nova, ouvir a vozinha sussurrante: “Passe as cartas sob a porta, uma a uma.”

Nas artes plásticas, há Bansky, pseudônimo do mais viral artista urbano do mundo. Outro dia, ele homenageou profissionais da saúde com a obra “Game Change”, na qual uma criança troca bonecos de super-heróis por outros de médicos e enfermeiros. O dinheiro da venda da peça irá para o serviço de saúde pública britânico. Bansky não vende suas peças diretamente, pois são criadas em paredes públicas das ruas. Leiloeiros tentaram comercializá-las – e o comprador que se virasse para remover o grafite. Há 20 anos literalmente na praça, o artista nunca revelou sua identidade. 

Já o norueguês Edvard Munch, pintor do manjado O Grito, contraiu a gripe espanhola na pandemia de 1919. Hermeticamente fechado em casa, o lockdown lhe inspirou duas telas sugestivas Autorretrato com a Gripe Espanhola e Autorretrato Depois da Gripe Espanhola

Por sua vez, o austríaco Gustav Klimt (do célebre quadro O Beijo) não teve um antes e um depois: morreu logo no início da pandemia, ainda em 1918. Em compensação, Kafka e Walt Disney, também infectados pela gripe espanhola, sobreviveram (convenhamos que Kafka sobreviver a uma epidemia é bem kafkiano).

Por falar em clássico, nos palcos não há figurinha mais carimbada do que Shakespeare, que escreveu sua tragédia mais excruciante – Rei Lear – fechadinho em casa, durante a peste bubônica que assolou Londres no século 17. Não lhe faltava tempo, pois os teatro foram os primeiros a fechar (antes dos bordeis). Como rugiu um pregador da época: “A causa das pragas é o pecado, e a causa do pecado são as peças de teatro”. 

Consta que, quando acabou a primeira guerra mundial, um espertinho cutucou o escritor irlandês James Joyce: “E aí, o que o senhor fez esse tempo todo?” Joyce sapecou na lata: “Escrevi Ulysses. E você?” Quanto a nós, simples mortais (mais mortais do que nunca), não precisamos gerar nenhuma obra-prima universal. 

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