Um espaço para a discussão de ideias para nosso tempo

A maioria excluída: efeitos bolsonarianos e trumpianos no país Tupiniquim?


Como avançar na construção de novos consensos sociais e políticos em uma democracia liberal ameaçada pelo radicalismo das políticas identitárias e pelo autoritarismo das reações em contrário que essa agenda tem gerado?

Por Estado da Arte
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por Isabelle Anchieta

O título parece contraditório, mas pode ser elucidado quando o analisamos à luz do processo histórico recente. Vivenciamos, no Ocidente Moderno, a emergência e o empoderamento de grupos identitários, especialmente a partir da década de 1960. Negros. Mulheres. Homossexuais. Transsexuais. Pobres. Grupos que conquistaram espaço, simpatia social e midiática com sua defesa por direitos e igualdades. Gradualmente, organizam-se e se profissionalizam em torno de uma ideologia política mais à esquerda. Ganham força e recursos financeiros provindos das mais diversas fontes, desde a governamental até a sociedade civil organizada. Esses grupos ocuparam de tal maneira a cena social que as "minorias" mais parecem ter se tornado a maioria. Estão na TV, nos jornais, nas revistas e mesmo na política.

O status quo foi, enfim, colocado de ponta cabeça. Mas, se podemos parcialmente celebrar o avanço no combate a preconceitos indefensáveis, por outro cria-se uma nova forma de preconceito. Ser branco ou branca, de uma classe abastada (ou mesmo de classe média), conservador nos costumes, católico ou evangélico não pega bem em uma sociedade cujo pertencimento a um grupo, engajado em uma causa social identitária, é a única via da nova redenção social e pessoal. De subversivos, os rebeldes tornam-se os novos donos do poder, e as ideias revolucionárias são naturalizadas como o novo politicamente correto. O casamento gay, o banheiro unissex, o aprendizado das sexualidades e o engajamento social atrelado às ideologias políticas de esquerda nas escolas e fora delas são, agora, a norma.

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Se isso foi, por um lado, um grande avanço - visto que há uma inegável humanização geral da sociedade e mais respeito às escolhas afetivas - por outro, essas conquistas criaram novos problemas para a democracia. É importante problematizar como fica o direito das pessoas que pensam diferente? Que são conservadoras, católicas, evangélicas? Se a escolha religiosa e mesmo pessoal é um direito individual, como lidar também com uma garantia avessa ao liberalismo identitário? Seria democrático impor um modelo de comportamento social se ele não é pactuado socialmente, com o necessário consenso socialmente construído?

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Em um lúcido (e corajoso) artigo, publicado no New York Times, o professor Mark Lilla, da Universidade de Columbia, que estará no Brasil no Fronteiras do Pensamento, critica o que chama de "fixação na diversidade em nossas escolas e na imprensa", produzindo, segundo ele, "uma geração de liberais e progressistas narcisisticamente inconscientes de condições fora de seus grupos autodefinidos e indiferentes à tarefa de alcançar as pessoas em todas as esferas da vida. Em uma idade muito jovem, nossos filhos estão sendo encorajados a falar sobre suas identidades individuais, mesmo antes de tê-las. Quando chegam à faculdade, muitos supõem que o discurso da diversidade esgota o discurso político e, surpreendentemente, têm pouco a dizer sobre questões perenes como classe, guerra, economia e bem comum"[1].

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A chamada onda conservadora, que tem na eleição de Trump sua evidência histórica, pode ser explicada, segundo Lilla, exatamente pela "própria obsessão da diversidade dos liberais, que têm incentivado os americanos brancos, rurais e religiosos a pensar em si mesmos como um grupo desfavorecido cuja identidade está sendo ameaçada ou ignorada. Tais pessoas não estão realmente reagindo contra a realidade de nossa América diversificada. Mas eles estão reagindo contra a onipresente retórica da identidade". No final do artigo, ao constatar a vitória da estratégia de Trump sobre a de Hillary, o sociólogo conclui: "aqueles que jogam o jogo da identidade devem estar preparados para perdê-lo"[2].

 

Nessa direção, 'o efeito social Trump', é emblemático para compreender o atual momento pré-eleitoral no Brasil. O crescimento do candidato à presidência Jair Bolsonaro, como o único capaz de contrapor-se ao mito do ex-presidente Lula, é sintomático. Diz dessa "maioria excluída" que encontrou no discurso do combate as bandeiras identitárias o seu porta-voz. Repete-se, como nos Estados Unidos, o aparecimento de seguidores fiéis ao candidato - que não serão convencidos pelos ataques dos adversários políticos e da mídia. Muito pelo contrário. Tendem a simpatizar cada vez mais com Bolsonaro à medida que percebem o isolamento do candidato em relação aos políticos tradicionais e aos jornalistas. Por isso, erram (novamente) os adversários ao atacarem o novo mito, quando deveriam preocupar-se em firmar os próprios pés de barro no chão. Erram os jornalistas, ao praticarem um jornalismo claramente de tendência liberal nos costumes, incapaz de compreender, como mediadores, a complexidade da sociedade brasileira.

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Mais inteligente seria fazer como reza o bom e velho jornalismo em períodos eleitorais. Buscar a mediação, a imparcialidade e (por que não?) a verdade. As duas últimas - ainda que impossíveis de serem apreendidas em sua totalidade - podem, sim, ser perseguidas por aproximação. Quanto mais aberto à diversidade de posições for omediador ou a mediadora melhor será o conteúdo levado ao espectador. Esse, sim, é quem deve formar opinião sobre os candidatos. De outra forma, ganha Bolsonaro diante de jornalistas tendenciosos, mas perdemos todos por não nos ser oferecida a oportunidade de escutar suas propostas, independentemente das preferências de quem pergunta.

Tal desacordo que favorece Bolsonaro associa-se à má experiência de insegurança da população que tem basicamente duas fontes: a social e a política. A violência das ruas amalgama-se a uma instabilidade governamental desde os (legítimos) movimentos sociais de 2013. O avanço das investigações do Ministério Público e da Polícia Federal e o impeachment de Dilma - ainda que desejados pela maioria da população - têm criado a sensação de falta de rumos e opções políticas.  A substituição de Dilma por Temer não alterou, por exemplo, os índices de apoio ao presidenciável.

É nesse cenário nebuloso que parte da população confunde a necessidade de ordem com autoritarismo. Ainda que seja uma parcela menor, o pedido da volta da ditadura militar e mesmo o apoio a uma visão militarista de Jair Bolsonaro são sintomas dessa confusão. É preciso, sim, recuperar a ordem democrática - abalada, diga-se, pela generalizada corrupção governamental - mas é importante compreender que ela só é possível (e desejável) por meio da democracia. Do contrário, colocamos desnecessariamente em risco nossas liberdades individuais.

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Entre o preto e o branco: o cinza. A matiz, que amálgama o melhor, exclui os excessos e consegue consensos, ainda que difíceis.  Em minha pesquisa de doutoramento, busco uma saída para esses extremos, a qual chamei de individumanismo. Se, por um lado, não é possível negar o importante processo de individualização e de reconhecimento das igualdades promovidos pelos grupos identitários, não se pode, por outro, cairmos em um revanchismo igualmente preconceituoso que, para exaltar a vítima, precisa criar algozes.

Seria preciso ultrapassar tais marcadores sociais de diferenças em prol da análise de critérios simultaneamente mais individualizados e universais.Em outras palavras, a correta tradução da diversidade deveria ser o humanismo; pois, para romper os estereótipos sociais, é preciso ampliar o frame e não retornar dissimuladamente ao mesmo lugar pelo avesso.

Considerável é o que cada candidato e o que cada um de nós se tornou, seus atos, como realizou sua trajetória (independentemente da cor, etnia, sexo e classe), aliando-se a esse entendimento o respeito humano. Assim, mais do que municiar uma guerra sem fim e sem vencedores, o importante é compor um novo lugar de identificação fora desse sistema binário em prol de um entendimento social ampliado do outro, que une, iguala e pacifica sem homogeneizar. A humanidade composta de indivíduos: o individumano; quando, enfim, pudermos nos engajar na vida em comum para além das estereotipias que nos separam.

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Isabelle Anchieta é doutora em Sociologia pela USP, jornalista, mestre em Comunicação Social pela UFMG. Recebeu prêmio como Jovem Socióloga brasileira pela Associação Internacional de Sociologia com apoio da UNESCO.

 

[1]Mark Lilla, The End of Identity Liberalism, The New York Times, 18 nov. 2016

[2]Idem.

 

https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/o-neocanibalismo-cordial-contatos-eroticos-e-violentos-entre-o-passado-e-o-presente-na-arte-contemporanea-brasileira/

 

 

 

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por Isabelle Anchieta

O título parece contraditório, mas pode ser elucidado quando o analisamos à luz do processo histórico recente. Vivenciamos, no Ocidente Moderno, a emergência e o empoderamento de grupos identitários, especialmente a partir da década de 1960. Negros. Mulheres. Homossexuais. Transsexuais. Pobres. Grupos que conquistaram espaço, simpatia social e midiática com sua defesa por direitos e igualdades. Gradualmente, organizam-se e se profissionalizam em torno de uma ideologia política mais à esquerda. Ganham força e recursos financeiros provindos das mais diversas fontes, desde a governamental até a sociedade civil organizada. Esses grupos ocuparam de tal maneira a cena social que as "minorias" mais parecem ter se tornado a maioria. Estão na TV, nos jornais, nas revistas e mesmo na política.

O status quo foi, enfim, colocado de ponta cabeça. Mas, se podemos parcialmente celebrar o avanço no combate a preconceitos indefensáveis, por outro cria-se uma nova forma de preconceito. Ser branco ou branca, de uma classe abastada (ou mesmo de classe média), conservador nos costumes, católico ou evangélico não pega bem em uma sociedade cujo pertencimento a um grupo, engajado em uma causa social identitária, é a única via da nova redenção social e pessoal. De subversivos, os rebeldes tornam-se os novos donos do poder, e as ideias revolucionárias são naturalizadas como o novo politicamente correto. O casamento gay, o banheiro unissex, o aprendizado das sexualidades e o engajamento social atrelado às ideologias políticas de esquerda nas escolas e fora delas são, agora, a norma.

Se isso foi, por um lado, um grande avanço - visto que há uma inegável humanização geral da sociedade e mais respeito às escolhas afetivas - por outro, essas conquistas criaram novos problemas para a democracia. É importante problematizar como fica o direito das pessoas que pensam diferente? Que são conservadoras, católicas, evangélicas? Se a escolha religiosa e mesmo pessoal é um direito individual, como lidar também com uma garantia avessa ao liberalismo identitário? Seria democrático impor um modelo de comportamento social se ele não é pactuado socialmente, com o necessário consenso socialmente construído?

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Em um lúcido (e corajoso) artigo, publicado no New York Times, o professor Mark Lilla, da Universidade de Columbia, que estará no Brasil no Fronteiras do Pensamento, critica o que chama de "fixação na diversidade em nossas escolas e na imprensa", produzindo, segundo ele, "uma geração de liberais e progressistas narcisisticamente inconscientes de condições fora de seus grupos autodefinidos e indiferentes à tarefa de alcançar as pessoas em todas as esferas da vida. Em uma idade muito jovem, nossos filhos estão sendo encorajados a falar sobre suas identidades individuais, mesmo antes de tê-las. Quando chegam à faculdade, muitos supõem que o discurso da diversidade esgota o discurso político e, surpreendentemente, têm pouco a dizer sobre questões perenes como classe, guerra, economia e bem comum"[1].

A chamada onda conservadora, que tem na eleição de Trump sua evidência histórica, pode ser explicada, segundo Lilla, exatamente pela "própria obsessão da diversidade dos liberais, que têm incentivado os americanos brancos, rurais e religiosos a pensar em si mesmos como um grupo desfavorecido cuja identidade está sendo ameaçada ou ignorada. Tais pessoas não estão realmente reagindo contra a realidade de nossa América diversificada. Mas eles estão reagindo contra a onipresente retórica da identidade". No final do artigo, ao constatar a vitória da estratégia de Trump sobre a de Hillary, o sociólogo conclui: "aqueles que jogam o jogo da identidade devem estar preparados para perdê-lo"[2].

 

Nessa direção, 'o efeito social Trump', é emblemático para compreender o atual momento pré-eleitoral no Brasil. O crescimento do candidato à presidência Jair Bolsonaro, como o único capaz de contrapor-se ao mito do ex-presidente Lula, é sintomático. Diz dessa "maioria excluída" que encontrou no discurso do combate as bandeiras identitárias o seu porta-voz. Repete-se, como nos Estados Unidos, o aparecimento de seguidores fiéis ao candidato - que não serão convencidos pelos ataques dos adversários políticos e da mídia. Muito pelo contrário. Tendem a simpatizar cada vez mais com Bolsonaro à medida que percebem o isolamento do candidato em relação aos políticos tradicionais e aos jornalistas. Por isso, erram (novamente) os adversários ao atacarem o novo mito, quando deveriam preocupar-se em firmar os próprios pés de barro no chão. Erram os jornalistas, ao praticarem um jornalismo claramente de tendência liberal nos costumes, incapaz de compreender, como mediadores, a complexidade da sociedade brasileira.

Mais inteligente seria fazer como reza o bom e velho jornalismo em períodos eleitorais. Buscar a mediação, a imparcialidade e (por que não?) a verdade. As duas últimas - ainda que impossíveis de serem apreendidas em sua totalidade - podem, sim, ser perseguidas por aproximação. Quanto mais aberto à diversidade de posições for omediador ou a mediadora melhor será o conteúdo levado ao espectador. Esse, sim, é quem deve formar opinião sobre os candidatos. De outra forma, ganha Bolsonaro diante de jornalistas tendenciosos, mas perdemos todos por não nos ser oferecida a oportunidade de escutar suas propostas, independentemente das preferências de quem pergunta.

Tal desacordo que favorece Bolsonaro associa-se à má experiência de insegurança da população que tem basicamente duas fontes: a social e a política. A violência das ruas amalgama-se a uma instabilidade governamental desde os (legítimos) movimentos sociais de 2013. O avanço das investigações do Ministério Público e da Polícia Federal e o impeachment de Dilma - ainda que desejados pela maioria da população - têm criado a sensação de falta de rumos e opções políticas.  A substituição de Dilma por Temer não alterou, por exemplo, os índices de apoio ao presidenciável.

É nesse cenário nebuloso que parte da população confunde a necessidade de ordem com autoritarismo. Ainda que seja uma parcela menor, o pedido da volta da ditadura militar e mesmo o apoio a uma visão militarista de Jair Bolsonaro são sintomas dessa confusão. É preciso, sim, recuperar a ordem democrática - abalada, diga-se, pela generalizada corrupção governamental - mas é importante compreender que ela só é possível (e desejável) por meio da democracia. Do contrário, colocamos desnecessariamente em risco nossas liberdades individuais.

Entre o preto e o branco: o cinza. A matiz, que amálgama o melhor, exclui os excessos e consegue consensos, ainda que difíceis.  Em minha pesquisa de doutoramento, busco uma saída para esses extremos, a qual chamei de individumanismo. Se, por um lado, não é possível negar o importante processo de individualização e de reconhecimento das igualdades promovidos pelos grupos identitários, não se pode, por outro, cairmos em um revanchismo igualmente preconceituoso que, para exaltar a vítima, precisa criar algozes.

Seria preciso ultrapassar tais marcadores sociais de diferenças em prol da análise de critérios simultaneamente mais individualizados e universais.Em outras palavras, a correta tradução da diversidade deveria ser o humanismo; pois, para romper os estereótipos sociais, é preciso ampliar o frame e não retornar dissimuladamente ao mesmo lugar pelo avesso.

Considerável é o que cada candidato e o que cada um de nós se tornou, seus atos, como realizou sua trajetória (independentemente da cor, etnia, sexo e classe), aliando-se a esse entendimento o respeito humano. Assim, mais do que municiar uma guerra sem fim e sem vencedores, o importante é compor um novo lugar de identificação fora desse sistema binário em prol de um entendimento social ampliado do outro, que une, iguala e pacifica sem homogeneizar. A humanidade composta de indivíduos: o individumano; quando, enfim, pudermos nos engajar na vida em comum para além das estereotipias que nos separam.

 

Isabelle Anchieta é doutora em Sociologia pela USP, jornalista, mestre em Comunicação Social pela UFMG. Recebeu prêmio como Jovem Socióloga brasileira pela Associação Internacional de Sociologia com apoio da UNESCO.

 

[1]Mark Lilla, The End of Identity Liberalism, The New York Times, 18 nov. 2016

[2]Idem.

 

https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/o-neocanibalismo-cordial-contatos-eroticos-e-violentos-entre-o-passado-e-o-presente-na-arte-contemporanea-brasileira/

 

 

 

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por Isabelle Anchieta

O título parece contraditório, mas pode ser elucidado quando o analisamos à luz do processo histórico recente. Vivenciamos, no Ocidente Moderno, a emergência e o empoderamento de grupos identitários, especialmente a partir da década de 1960. Negros. Mulheres. Homossexuais. Transsexuais. Pobres. Grupos que conquistaram espaço, simpatia social e midiática com sua defesa por direitos e igualdades. Gradualmente, organizam-se e se profissionalizam em torno de uma ideologia política mais à esquerda. Ganham força e recursos financeiros provindos das mais diversas fontes, desde a governamental até a sociedade civil organizada. Esses grupos ocuparam de tal maneira a cena social que as "minorias" mais parecem ter se tornado a maioria. Estão na TV, nos jornais, nas revistas e mesmo na política.

O status quo foi, enfim, colocado de ponta cabeça. Mas, se podemos parcialmente celebrar o avanço no combate a preconceitos indefensáveis, por outro cria-se uma nova forma de preconceito. Ser branco ou branca, de uma classe abastada (ou mesmo de classe média), conservador nos costumes, católico ou evangélico não pega bem em uma sociedade cujo pertencimento a um grupo, engajado em uma causa social identitária, é a única via da nova redenção social e pessoal. De subversivos, os rebeldes tornam-se os novos donos do poder, e as ideias revolucionárias são naturalizadas como o novo politicamente correto. O casamento gay, o banheiro unissex, o aprendizado das sexualidades e o engajamento social atrelado às ideologias políticas de esquerda nas escolas e fora delas são, agora, a norma.

Se isso foi, por um lado, um grande avanço - visto que há uma inegável humanização geral da sociedade e mais respeito às escolhas afetivas - por outro, essas conquistas criaram novos problemas para a democracia. É importante problematizar como fica o direito das pessoas que pensam diferente? Que são conservadoras, católicas, evangélicas? Se a escolha religiosa e mesmo pessoal é um direito individual, como lidar também com uma garantia avessa ao liberalismo identitário? Seria democrático impor um modelo de comportamento social se ele não é pactuado socialmente, com o necessário consenso socialmente construído?

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Em um lúcido (e corajoso) artigo, publicado no New York Times, o professor Mark Lilla, da Universidade de Columbia, que estará no Brasil no Fronteiras do Pensamento, critica o que chama de "fixação na diversidade em nossas escolas e na imprensa", produzindo, segundo ele, "uma geração de liberais e progressistas narcisisticamente inconscientes de condições fora de seus grupos autodefinidos e indiferentes à tarefa de alcançar as pessoas em todas as esferas da vida. Em uma idade muito jovem, nossos filhos estão sendo encorajados a falar sobre suas identidades individuais, mesmo antes de tê-las. Quando chegam à faculdade, muitos supõem que o discurso da diversidade esgota o discurso político e, surpreendentemente, têm pouco a dizer sobre questões perenes como classe, guerra, economia e bem comum"[1].

A chamada onda conservadora, que tem na eleição de Trump sua evidência histórica, pode ser explicada, segundo Lilla, exatamente pela "própria obsessão da diversidade dos liberais, que têm incentivado os americanos brancos, rurais e religiosos a pensar em si mesmos como um grupo desfavorecido cuja identidade está sendo ameaçada ou ignorada. Tais pessoas não estão realmente reagindo contra a realidade de nossa América diversificada. Mas eles estão reagindo contra a onipresente retórica da identidade". No final do artigo, ao constatar a vitória da estratégia de Trump sobre a de Hillary, o sociólogo conclui: "aqueles que jogam o jogo da identidade devem estar preparados para perdê-lo"[2].

 

Nessa direção, 'o efeito social Trump', é emblemático para compreender o atual momento pré-eleitoral no Brasil. O crescimento do candidato à presidência Jair Bolsonaro, como o único capaz de contrapor-se ao mito do ex-presidente Lula, é sintomático. Diz dessa "maioria excluída" que encontrou no discurso do combate as bandeiras identitárias o seu porta-voz. Repete-se, como nos Estados Unidos, o aparecimento de seguidores fiéis ao candidato - que não serão convencidos pelos ataques dos adversários políticos e da mídia. Muito pelo contrário. Tendem a simpatizar cada vez mais com Bolsonaro à medida que percebem o isolamento do candidato em relação aos políticos tradicionais e aos jornalistas. Por isso, erram (novamente) os adversários ao atacarem o novo mito, quando deveriam preocupar-se em firmar os próprios pés de barro no chão. Erram os jornalistas, ao praticarem um jornalismo claramente de tendência liberal nos costumes, incapaz de compreender, como mediadores, a complexidade da sociedade brasileira.

Mais inteligente seria fazer como reza o bom e velho jornalismo em períodos eleitorais. Buscar a mediação, a imparcialidade e (por que não?) a verdade. As duas últimas - ainda que impossíveis de serem apreendidas em sua totalidade - podem, sim, ser perseguidas por aproximação. Quanto mais aberto à diversidade de posições for omediador ou a mediadora melhor será o conteúdo levado ao espectador. Esse, sim, é quem deve formar opinião sobre os candidatos. De outra forma, ganha Bolsonaro diante de jornalistas tendenciosos, mas perdemos todos por não nos ser oferecida a oportunidade de escutar suas propostas, independentemente das preferências de quem pergunta.

Tal desacordo que favorece Bolsonaro associa-se à má experiência de insegurança da população que tem basicamente duas fontes: a social e a política. A violência das ruas amalgama-se a uma instabilidade governamental desde os (legítimos) movimentos sociais de 2013. O avanço das investigações do Ministério Público e da Polícia Federal e o impeachment de Dilma - ainda que desejados pela maioria da população - têm criado a sensação de falta de rumos e opções políticas.  A substituição de Dilma por Temer não alterou, por exemplo, os índices de apoio ao presidenciável.

É nesse cenário nebuloso que parte da população confunde a necessidade de ordem com autoritarismo. Ainda que seja uma parcela menor, o pedido da volta da ditadura militar e mesmo o apoio a uma visão militarista de Jair Bolsonaro são sintomas dessa confusão. É preciso, sim, recuperar a ordem democrática - abalada, diga-se, pela generalizada corrupção governamental - mas é importante compreender que ela só é possível (e desejável) por meio da democracia. Do contrário, colocamos desnecessariamente em risco nossas liberdades individuais.

Entre o preto e o branco: o cinza. A matiz, que amálgama o melhor, exclui os excessos e consegue consensos, ainda que difíceis.  Em minha pesquisa de doutoramento, busco uma saída para esses extremos, a qual chamei de individumanismo. Se, por um lado, não é possível negar o importante processo de individualização e de reconhecimento das igualdades promovidos pelos grupos identitários, não se pode, por outro, cairmos em um revanchismo igualmente preconceituoso que, para exaltar a vítima, precisa criar algozes.

Seria preciso ultrapassar tais marcadores sociais de diferenças em prol da análise de critérios simultaneamente mais individualizados e universais.Em outras palavras, a correta tradução da diversidade deveria ser o humanismo; pois, para romper os estereótipos sociais, é preciso ampliar o frame e não retornar dissimuladamente ao mesmo lugar pelo avesso.

Considerável é o que cada candidato e o que cada um de nós se tornou, seus atos, como realizou sua trajetória (independentemente da cor, etnia, sexo e classe), aliando-se a esse entendimento o respeito humano. Assim, mais do que municiar uma guerra sem fim e sem vencedores, o importante é compor um novo lugar de identificação fora desse sistema binário em prol de um entendimento social ampliado do outro, que une, iguala e pacifica sem homogeneizar. A humanidade composta de indivíduos: o individumano; quando, enfim, pudermos nos engajar na vida em comum para além das estereotipias que nos separam.

 

Isabelle Anchieta é doutora em Sociologia pela USP, jornalista, mestre em Comunicação Social pela UFMG. Recebeu prêmio como Jovem Socióloga brasileira pela Associação Internacional de Sociologia com apoio da UNESCO.

 

[1]Mark Lilla, The End of Identity Liberalism, The New York Times, 18 nov. 2016

[2]Idem.

 

https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/o-neocanibalismo-cordial-contatos-eroticos-e-violentos-entre-o-passado-e-o-presente-na-arte-contemporanea-brasileira/

 

 

 

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por Isabelle Anchieta

O título parece contraditório, mas pode ser elucidado quando o analisamos à luz do processo histórico recente. Vivenciamos, no Ocidente Moderno, a emergência e o empoderamento de grupos identitários, especialmente a partir da década de 1960. Negros. Mulheres. Homossexuais. Transsexuais. Pobres. Grupos que conquistaram espaço, simpatia social e midiática com sua defesa por direitos e igualdades. Gradualmente, organizam-se e se profissionalizam em torno de uma ideologia política mais à esquerda. Ganham força e recursos financeiros provindos das mais diversas fontes, desde a governamental até a sociedade civil organizada. Esses grupos ocuparam de tal maneira a cena social que as "minorias" mais parecem ter se tornado a maioria. Estão na TV, nos jornais, nas revistas e mesmo na política.

O status quo foi, enfim, colocado de ponta cabeça. Mas, se podemos parcialmente celebrar o avanço no combate a preconceitos indefensáveis, por outro cria-se uma nova forma de preconceito. Ser branco ou branca, de uma classe abastada (ou mesmo de classe média), conservador nos costumes, católico ou evangélico não pega bem em uma sociedade cujo pertencimento a um grupo, engajado em uma causa social identitária, é a única via da nova redenção social e pessoal. De subversivos, os rebeldes tornam-se os novos donos do poder, e as ideias revolucionárias são naturalizadas como o novo politicamente correto. O casamento gay, o banheiro unissex, o aprendizado das sexualidades e o engajamento social atrelado às ideologias políticas de esquerda nas escolas e fora delas são, agora, a norma.

Se isso foi, por um lado, um grande avanço - visto que há uma inegável humanização geral da sociedade e mais respeito às escolhas afetivas - por outro, essas conquistas criaram novos problemas para a democracia. É importante problematizar como fica o direito das pessoas que pensam diferente? Que são conservadoras, católicas, evangélicas? Se a escolha religiosa e mesmo pessoal é um direito individual, como lidar também com uma garantia avessa ao liberalismo identitário? Seria democrático impor um modelo de comportamento social se ele não é pactuado socialmente, com o necessário consenso socialmente construído?

reference

Em um lúcido (e corajoso) artigo, publicado no New York Times, o professor Mark Lilla, da Universidade de Columbia, que estará no Brasil no Fronteiras do Pensamento, critica o que chama de "fixação na diversidade em nossas escolas e na imprensa", produzindo, segundo ele, "uma geração de liberais e progressistas narcisisticamente inconscientes de condições fora de seus grupos autodefinidos e indiferentes à tarefa de alcançar as pessoas em todas as esferas da vida. Em uma idade muito jovem, nossos filhos estão sendo encorajados a falar sobre suas identidades individuais, mesmo antes de tê-las. Quando chegam à faculdade, muitos supõem que o discurso da diversidade esgota o discurso político e, surpreendentemente, têm pouco a dizer sobre questões perenes como classe, guerra, economia e bem comum"[1].

A chamada onda conservadora, que tem na eleição de Trump sua evidência histórica, pode ser explicada, segundo Lilla, exatamente pela "própria obsessão da diversidade dos liberais, que têm incentivado os americanos brancos, rurais e religiosos a pensar em si mesmos como um grupo desfavorecido cuja identidade está sendo ameaçada ou ignorada. Tais pessoas não estão realmente reagindo contra a realidade de nossa América diversificada. Mas eles estão reagindo contra a onipresente retórica da identidade". No final do artigo, ao constatar a vitória da estratégia de Trump sobre a de Hillary, o sociólogo conclui: "aqueles que jogam o jogo da identidade devem estar preparados para perdê-lo"[2].

 

Nessa direção, 'o efeito social Trump', é emblemático para compreender o atual momento pré-eleitoral no Brasil. O crescimento do candidato à presidência Jair Bolsonaro, como o único capaz de contrapor-se ao mito do ex-presidente Lula, é sintomático. Diz dessa "maioria excluída" que encontrou no discurso do combate as bandeiras identitárias o seu porta-voz. Repete-se, como nos Estados Unidos, o aparecimento de seguidores fiéis ao candidato - que não serão convencidos pelos ataques dos adversários políticos e da mídia. Muito pelo contrário. Tendem a simpatizar cada vez mais com Bolsonaro à medida que percebem o isolamento do candidato em relação aos políticos tradicionais e aos jornalistas. Por isso, erram (novamente) os adversários ao atacarem o novo mito, quando deveriam preocupar-se em firmar os próprios pés de barro no chão. Erram os jornalistas, ao praticarem um jornalismo claramente de tendência liberal nos costumes, incapaz de compreender, como mediadores, a complexidade da sociedade brasileira.

Mais inteligente seria fazer como reza o bom e velho jornalismo em períodos eleitorais. Buscar a mediação, a imparcialidade e (por que não?) a verdade. As duas últimas - ainda que impossíveis de serem apreendidas em sua totalidade - podem, sim, ser perseguidas por aproximação. Quanto mais aberto à diversidade de posições for omediador ou a mediadora melhor será o conteúdo levado ao espectador. Esse, sim, é quem deve formar opinião sobre os candidatos. De outra forma, ganha Bolsonaro diante de jornalistas tendenciosos, mas perdemos todos por não nos ser oferecida a oportunidade de escutar suas propostas, independentemente das preferências de quem pergunta.

Tal desacordo que favorece Bolsonaro associa-se à má experiência de insegurança da população que tem basicamente duas fontes: a social e a política. A violência das ruas amalgama-se a uma instabilidade governamental desde os (legítimos) movimentos sociais de 2013. O avanço das investigações do Ministério Público e da Polícia Federal e o impeachment de Dilma - ainda que desejados pela maioria da população - têm criado a sensação de falta de rumos e opções políticas.  A substituição de Dilma por Temer não alterou, por exemplo, os índices de apoio ao presidenciável.

É nesse cenário nebuloso que parte da população confunde a necessidade de ordem com autoritarismo. Ainda que seja uma parcela menor, o pedido da volta da ditadura militar e mesmo o apoio a uma visão militarista de Jair Bolsonaro são sintomas dessa confusão. É preciso, sim, recuperar a ordem democrática - abalada, diga-se, pela generalizada corrupção governamental - mas é importante compreender que ela só é possível (e desejável) por meio da democracia. Do contrário, colocamos desnecessariamente em risco nossas liberdades individuais.

Entre o preto e o branco: o cinza. A matiz, que amálgama o melhor, exclui os excessos e consegue consensos, ainda que difíceis.  Em minha pesquisa de doutoramento, busco uma saída para esses extremos, a qual chamei de individumanismo. Se, por um lado, não é possível negar o importante processo de individualização e de reconhecimento das igualdades promovidos pelos grupos identitários, não se pode, por outro, cairmos em um revanchismo igualmente preconceituoso que, para exaltar a vítima, precisa criar algozes.

Seria preciso ultrapassar tais marcadores sociais de diferenças em prol da análise de critérios simultaneamente mais individualizados e universais.Em outras palavras, a correta tradução da diversidade deveria ser o humanismo; pois, para romper os estereótipos sociais, é preciso ampliar o frame e não retornar dissimuladamente ao mesmo lugar pelo avesso.

Considerável é o que cada candidato e o que cada um de nós se tornou, seus atos, como realizou sua trajetória (independentemente da cor, etnia, sexo e classe), aliando-se a esse entendimento o respeito humano. Assim, mais do que municiar uma guerra sem fim e sem vencedores, o importante é compor um novo lugar de identificação fora desse sistema binário em prol de um entendimento social ampliado do outro, que une, iguala e pacifica sem homogeneizar. A humanidade composta de indivíduos: o individumano; quando, enfim, pudermos nos engajar na vida em comum para além das estereotipias que nos separam.

 

Isabelle Anchieta é doutora em Sociologia pela USP, jornalista, mestre em Comunicação Social pela UFMG. Recebeu prêmio como Jovem Socióloga brasileira pela Associação Internacional de Sociologia com apoio da UNESCO.

 

[1]Mark Lilla, The End of Identity Liberalism, The New York Times, 18 nov. 2016

[2]Idem.

 

https://cultura.estadao.com.br/blogs/estado-da-arte/o-neocanibalismo-cordial-contatos-eroticos-e-violentos-entre-o-passado-e-o-presente-na-arte-contemporanea-brasileira/

 

 

 

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