A redescoberta dos artistas modernos pelas galerias é muito mais que um simples fenômeno de mercado. Faltando ainda cinco anos para as comemorações do centenário da Semana de Arte de 1922, galeristas já se movimentam para reavaliar a contribuição de artistas pioneiros como Brecheret (1894-1955) e Rego Monteiro (1897-1970), que dela não participaram de corpo presente – ambos se encontravam em Paris, na época – mas com obras que definiram o marco zero da modernidade entre nós. O impulso dado a esses artistas pelos escritores Mário de Andrade, que tem dois livros adaptados para os quadrinhos pela editora Ática, e Oswald de Andrade, analisado no livro Neve na Manhã de São Paulo, de José Roberto Walker foi fundamental na carreira de ambos os artistas, homenageados com mostras individuais em São Paulo.
Victor Brecheret, autor do mais famoso conjunto escultórico de São Paulo, o Monumento às Bandeiras, no Ibirapuera, ganha uma retrospectiva na Dan Galeria, Encantamento e Força, aberta desde ontem, que tem como curadora Daisy Peccinini, autora de um livro de referência sobre o artista. Vicente do Rêgo Monteiro tem obras fundamentais reunidas na exposição Nem Tabu, Nem Totem, com curadoria de Denise Mattar, em cartaz na Galeria Almeida e Dale. Uma feliz coincidência, considerando que ambos os artistas, além de terem participado da Semana de 1922, foram amigos e pioneiros na transposição dos mitos e lendas indígenas de tribos brasileiras para o terreno da vanguarda.
A exposição de Brecheret reúne 56 obras do artista, entre esculturas e desenhos, realizadas em diferentes épocas (de 1916 a 1955, ano de sua morte). Dividida em núcleos, a mostra tem peças históricas como o bronze Três Graças, uma escultura que une três diferentes raças (branca, negra e amarela) numa época (década de 1930) dominada pela doutrina eugênica seguida pelos nazistas, como observa a curadora. O desenho que esboça a peça também está em exposição, assim como o relevo (1953) com cavalos que traz o modelo de um dos painéis de mármore travertino da fachada do Jockey Club.
Quase sempre a obra de Brecheret é analisada em conexão com o trabalho de modernos europeus (Brancusi, Henry Moore) e raras vezes se menciona o papel da cultura indígena como elemento de referência e estudo do escultor. A curadora Deisy Peccinini fez questão de incluir peças como a escultura de temática indígena Filha da Terra Roxa (1948) para mostrar como o uso da terracota, em Brecheret, era um procedimento quase místico, “como se a terra lhe revelasse o segredo da vida dos povos autóctones”. O estudo dos rostos indígenas seria fundamental para a criação do Monumento às Bandeiras, assim como a passagem pelo estúdio do escultor François Pompon (1855-1933) em Paris para as esculturas dos animais selvagens que marcaram sua obra.
Para a curadora, a fase da arte indígena de Brecheret, que durou as duas últimas décadas de sua vida, foi o “prenúncio de uma realização mais madura”. O escultor deixava para trás a “roupa de civilizado”, de escultor formado pelo classicismo grego e o modernismo francês, para trabalhar seixos graníticos junto ao mar com incisões nesse material natural.
Essas peças de incisão sobre a superfície são o testemunho do apego de Brecheret à arte dos primeiros habitantes do País. Constituem um núcleo interessantíssimo dentro da exposição, tanto como o de arte sacra – da qual o exemplo máximo é Virgem (1923/25), um bronze polido (figura maior nesta página) que seria posteriormente retrabalhado em mármore com algumas modificações.
Apesar de ter assinado diversas peças sacras e o jazigo encomendado por sua mecenas Olívia Guedes Penteado, Brecheret não era um homem religioso. Mário de Andrade se mostrou decepcionado com a arte religiosa e os temas alegóricos de Brecheret em sua primeira exposição paulistana (em 1926), embora tenha reconhecido posteriormente sua equivocada avaliação.
Concessão ou não, o fato é que as peças religiosas de Brecheret traduzem um desejo de confraternização universal por meio do cristianismo – ele esculpiu virgens africanas e asiáticas nos anos 1930. Sua religiosidade passava mesmo pelo reconhecimento de que não existia nada de natural na natureza: tudo era sobrenatural, dos cavalos (que amava) aos seixos que o levaram a moldar a terracota e prestar tributo à arte indígena.