Aos 20 anos, o escritor Richard Zenith, 66, teve contato pela primeira vez com alguns versos de Fernando Pessoa (em espanhol). O estudante, em Chicago, percebeu de antemão que o autor que acabara de conhecer possuía não só qualidade literária, mas também um mistério.
Na década de 1980, Zenith esteve no Brasil e teve acesso à obra do escritor português por meio de edições compradas em sebos. No País, aprendeu o idioma de Pessoa, o que facilitou sua ida a Portugal, em 1987, onde mora desde então.
No Velho Continente, o norte-americano começou a estudar a obra de Pessoa, dono de mais de uma centena de heterônimos (alguns famosos, como Álvaro de Campos e Ricardo Reis, outros menos conhecidos, como Maria José, única figura feminina entre as personas criadas pelo luso). Zenith descreve a figura excêntrica do poeta, cujo projeto literário se emaranhou tão bem em sua vida pessoal que essa atmosfera íntima ficou reduzida a especulações com o passar dos anos, como a questão da suposta homossexualidade de Pessoa, tema trazido pelo próprio escriba em 1912, no poema Antinous. O autor de Pessoa: Uma Biografia (Companhia das Letras) conta, na entrevista a seguir, sobre como foi mergulhar em todas as vidas do escritor de múltiplas faces.
A biografia trata as particularidades desse sujeito poeta fragmentado, mostra as ambiguidades do autor que fez críticas ao governo, mas ganhou um prêmio por seus poemas nacionalistas, com o livro ‘Mensagem’, como foi se acostumar com esse camaleão que foi Fernando Pessoa durante o processo de escrita e pesquisa?
Foi um processo extremamente estimulante. Pessoa disse, meio brincando, que um intelectual moderno tem a obrigação cerebral de mudar de opinião várias vezes no mesmo dia e ele possuía uma flexibilidade mental fora do vulgar. Em parte queria provocar, desafiando princípios estabelecidos e ideias largamente aceites, mas também queria testar e pôr em causa as suas próprias convicções. Insistia em ver um determinado assunto de diversos pontos de vista. Tinha mais interesse em viajar pelo pensamento do que em chegar a conclusões definitivas. Para ele, aliás, não havia nada definitivo. Dito tudo isso, é possível traçar uma evolução nas suas ideias políticas, nos seus interesses espirituais e nos seus gostos literários.
Quanto a Mensagem, é preciso lembrar que o nacionalismo dos seus poemas é sui generis. O livro apresenta uma visão idealizada de Portugal, da sua história e do seu futuro. O Portugal de Pessoa não corresponde exatamente ao país que ocupa o canto sudoeste da Europa. André Luiz Oliveira, ao musicar os poemas de Mensagem (com a participação de Caetano, Elba Ramalho, Ney Matogrosso e muitos outros), soube celebrar este “Portugal” entre aspas, que é um país específico mas também universal.
A biografia de Pessoa escrita por João Gaspar Simões, em 1950, foi a primeira e, claro, ficaram pontas soltas, como interpretações equivocadas acerca da intimidade do autor. Em que sentido a biografia do senhor avança nesses aspectos e esclarece episódios da vida pessoal de Pessoa, um homem arisco e reservado, segundo os seus?
Através de cartas inéditas, pesquisas em arquivos, uma viagem a Durban (onde Pessoa passou nove anos da infância), entrevistas com descendentes de parentes e amigos do poeta e um exame aturado de todos os cadernos e papéis deixados por Pessoa, foi possível elaborar um retrato dele muito mais rico em pormenores. Também me beneficiei de todo o trabalho feito por outros pessoanos durante as últimas sete décadas.
Apesar de ser sociável, com um bom sentido de humor, Pessoa era, de fato, um homem “arisco e reservado”. Não tive a presunção de revelar o mistério de Pessoa — até porque seria uma tarefa condenada ao insucesso — mas espero ter escrito uma biografia que nos permite sentir o homem. Espero ter humanizado a figura do grande gênio.
Em que medida a vida pessoal de Fernando Pessoa se emaranha em sua obra literária? Como o autor trabalhou cada um de seus heterônimos e suas ambiguidades?
No caso de Pessoa, estamos perante uma obra-vida ou, se preferirmos, uma vida-obra, pois neste autor é difícil separar uma coisa da outra. Pessoa era sempre literário, mesmo nos aspectos mais quotidianos da vida, e a sua obra está impregnada de autobiografia, embora de uma forma quase sempre distorcida. A poesia e prosa de Pessoa são a fonte mais importante para o biógrafo, mas este tem de proceder cautelosamente, uma vez que o, poeta português nunca deixa de ser um fingidor. Não é um mentiroso, mas inventa, altera, reconfigura. Os heterônimos são como atos poéticos, impregnados também de muita autobiografia e fingimento. Além de contar a história individual de cada heterônimo ou autor fictício, a biografia traça a longa história do fenômeno da heteronímia, desde os amigos imaginários da infância, um dos quais escrevia cartas para Pessoa (isto é, Pessoa redigia cartas a si próprio em nome do amigo), até Maria José, uma corcunda tuberculosa que, por volta de 1930, escreve uma desesperada carta de amor para um serralheiro bonito que passa pela sua janela todos os dias. Durante minha estadia em Durban, descobri o heterônimo Karl P. Effield, autor do primeiro poema em inglês publicado por Pessoa, com 15 anos de idade, num jornal daquela cidade.
Desde pequeno Pessoa (como Alexander Search, seu primeiro heterônimo em inglês) buscava algo que chamava de Verdade – um conceito que vai ser estudado pelo escritor em sua busca esotérica. Em dado momento, o senhor dá a entender que a busca literária de Fernando Pessoa é também espiritual, concluindo que o autor seria capaz de criar essa própria ‘Verdade’. Que verdade é essa?
No seu Fausto Pessoa escreveu, “O segredo da Busca é que não se acha”, mas isso não o impediu de buscar sempre. No seu entender, foi o buscar, não o encontrar, que valia a pena. Se encontrasse a Verdade, não haveria mais jogo, e Pessoa era um lúdico apaixonado, adorava brincar. Com coisas frívolas e com coisas sérias. Sabia que o raciocínio jamais poderia atingir a Verdade, se é que a Verdade existe, e por isso levou sua busca para caminhos espirituais. Interessou-se sobretudo em caminhos esotéricos, pois queria (pelo menos teoricamente) apreender o mistério da existência, a gnose. Toda a busca de Pessoa foi feita com palavras, a mesma matéria com que construía as suas obras literárias. Sendo a Verdade afinal inalcançável, se não inexistente, Pessoa foi criando verdades provisórias, com “v” minúsculo. Com os heterônimos, por exemplo, Pessoa teorizou um Neopaganismo em que Alberto Caeiro era o mestre, quase um deus, enquanto Ricardo Reis e Álvaro de Campos eram os seus discípulos. Estudando os muitos apontamentos que Pessoa deixou sobre assuntos esotéricos, fiquei espantado quando percebi que não só investigou intensamente correntes como a Cabala, a Rosa Cruz e a Maçonaria, ele também inventou as suas próprias ordens iniciáticas — com sistemas de graus e ritos de iniciação. Portanto a religião, para Pessoa, também era um jogo, uma outra forma de literatura.
Tão solitário, mas nem por isso tão religioso quanto (o monge) Kierkegaard, embora a cultura portuguesa (a formação da sociedade) seja muito ligada à religião, ao catolicismo. Pessoa, em um de seus últimos escritos, teria citado um versículo do capítulo 9 da Primeira Epístola de São Paulo aos Coríntios: “Fiz-me tudo para todos, a fim de salvar a todos”. Fernando Pessoa busca a redenção por meio da espiritualidade ( o místico) em algum momento?
Pessoa tinha pouco interesse na autoperfeição ou na redenção de si próprio. O fato de ele ter citado o dito versículo da Epístola de São Paulo mostra a sua preocupação em redimir os outros. Dotado de uma forte veia pedagógica, Pessoa queria ajudar a elevar o nível cultural de Portugal e queria, sobretudo, contribuir à civilização da humanidade. As suas investigações espirituais visavam a publicação de vários livros didáticos, que começava a escrever sem nunca acabar. Preocupava-se em indicar possíveis caminhos para os outros. No que respeita ao seu próprio caminho, ia atrás da gnose, como já indiquei. Rezar não era com ele, exceto literariamente, em poemas escritos em forma de preces.
O conservadorismo do mercado editorial português da década de 1940 soterrou trabalhos primorosos de Pessoa, quais trabalhos são esses e qual a importância deles? Quais foram redescobertos depois?
Não foi culpa do mercado editorial. Pessoa era um escritor promíscuo, bagunçado, Uma mesma folha de papel podia acolher alguns versos de um poema, a ideia para um conto, uma lista de pequenas dívidas, etc. O caso do Livro do Desassossego é emblemático. Pessoa não tinha sequer um caderno dedicado a sua maior obra em prosa, embora vários trechos da obra figurem nos seus cadernos. Depois, há quase 500 trechos adicionais escritos ao acaso, quando lhe apetecia, ao longo da sua vida adulta. Estes trechos encontravam-se dispersos entre os mais de 25,000 papéis que o autor deixou. Ainda por cima, a caligrafia de Pessoa é por vezes hieroglífica. Por isso os investigadores levaram tantos anos a recolher e decifrar os originais até poderem publicar a primeira edição do livro, apenas em 1982. Vários compêndios de textos em prosa tinham saído nos anos 60 e 70 e muitos outros inéditos têm sido publicados apenas nas últimas décadas. Quase podemos dizer que Pessoa, pelos conteúdos da sua obra — mais facilmente apreciados por nós do que pelos seus contemporâneos — e também pela sua fortuna editorial, é um escritor da segunda metade do século e mesmo do século atual. Para a nossa época, preocupada com questões de identidade, de fluidez de gênero, de diversidade e por aí fora, a relevância da obra de Pessoa só vai aumentando.
Como tem sido o papel dos escritores e pesquisadores contemporâneos em cima da obra de Pessoa?
Pessoa é muito amado por outros escritores, que por vezes o inserem nas suas obras (sendo O ano da morte de Ricardo Reis o caso mais notório), assim ajudando a promovê-lo em língua portuguesa e em tradução para outras línguas. Sei que há professores de filosofia no mundo anglo-saxônico que usam o Livro do desassossego nas suas aulas. No mundo acadêmico, há toda uma indústria de investigação ao redor da obra de Pessoa, envolvendo pesquisadores em muitos países.
O senhor fala de uma “incerteza inerente” que guia Pessoa; uma “tensão dinâmica” entre os heterônimos e o criador, o que isso quer dizer?
Falo dessa incerteza e dessa tensão em relação ao que poderíamos chamar o “sistema-Pessoa”. Pessoa negava a existência de um eu coeso e fixo e negava até a possibilidade de conhecer o eu. O eu existe, mas não pode ser agarrado. Pessoa e os seus heterônimos constituem uma espécie de sistema solar sem um centro onde se pode chegar. Ele concebia o seu ser (e, na verdade, o ser de qualquer pessoa) como estando em fluxo permanente, como um eu em que nada é seguro. Esta incerteza existencial não o guiava exatamente mas, sim, o estimulava. Podemos ver toda a sua obra como um ato contínuo de se afirmar, um protesto contra a sua não-existência enquanto ente firme e seguro.