É engraçado pensar que a arte de narrar tem na figura de Homero uma espécie de primeiro marco, pelo menos no Ocidente – não se sabe praticamente nada sobre sua vida, mas se sabe que ele era um aedo, um misto de cantor e poeta que recitava suas composições ao toque da lira. É engraçado porque a literatura ocidental, assim, meio que nasceu da narração em voz alta, e reis e rainhas faziam questão de ter seus aedos por perto para distraí-los de preocupações, certamente, mais banais do que pandemias.
Mais de 2,5 mil anos depois, o podcast pode ser uma tremenda ferramenta para a narrativa ficcional. Nos EUA, talvez o programa mais conhecido nessa linha seja Homecoming, produzido pela Gimlet Media. A narrativa, uma novela em áudio, foi adaptada pela Amazon para a TV, e o resultado ganhou três indicações ao Globo de Ouro – certamente, o trabalho mais marcante de Julia Roberts em uma década. Uma segunda temporada, já desenvolvida apenas para a TV e estrelando ninguém menos que Janelle Monae, está marcada para estrear no dia 22.
No Brasil, apesar de algumas iniciativas no passado, as coisas parecem começar a rodar agora: estreou durante a quarentena o interessante Que Dia É Hoje?, produzido pela nova Trovão Mídia – que, como a Gimlet, se denomina “produtora de podcasts narrativos”.
A empresa foi criada em 2020 por José Orestein e Ana Bonomi, e a pandemia virou tudo do avesso, mas o primeiro podcast original da produtora enfim estreou, no fim de abril. Que Dia É Hoje? traz “crônicas ficcionais do absurdo”, escritos e dirigidos pelo Vinícius Calderoni e com design de som e trilha sonora original feitos por Arthur Decloedt, cada uma com cerca de oito minutos. Um primeiro atrativo para o programa é o time estrelado de narradores: Marat Descartes, Alexandre Nero, Denise Fraga, Gabriel Leone, Gregorio Duvivier, Caco Ciocler, Carol Duarte, Luciana Paes, Renata Gaspar, entre outros e outras atores e atrizes do primeiro time.
Ao trazer uma dose de humor para as narrativas do dia a dia, o podcast explora questões específicas que surgiram na quarentena. O episódio mais recente, divulgado ontem, retrata uma “assembleia” na cozinha antes do panelaço diário – mas quem fala são, justamente, as panelas. No anterior, pai e mãe, trancados em casa na quarentena com o filho de quatro anos de idade, precisam entrar em acordo sobre uma conversa “séria” com o garoto. Em outro ep, Alexandre Nero incorpora, ou melhor, dá voz a um fantasma de William Shakespeare, que aparece para um jovem escritor, também isolado em quarentena, e o pressiona a por as mãos na massa e produzir alguma coisa, “num apelo em forma de solilóquio” – já nos primeiros dias da quarentena, todo mundo na internet ficou sabendo que Shakespeare escreveu Rei Lear durante a quarentena da peste negra.
A Trovão Mídia também atua em parceria com agências, e um dos outros projetos foi o podcast Antiviral, com relatos roteirizados de pessoas que tiveram a covid-19, e para contar as historias trás dos números. Podcasts sobre maternidade, gastronomia e de reportagem também estão nos planos para os próximos meses.