Um gênero híbrido, a meio caminho entre a biografia e ficção - eis o caminho escolhido por diversos escritores contemporâneos, preocupados em encontrar a dosagem certa de realidade e fatos imaginários. Alguns temem transformar seu trabalho em produto cultural, com interesse mais comercial que intelectual. Outros não se preocupam em delimitar o espaço que separa a reprodução do real e o fruto da imaginação. "Essa dosagem é um problema", acredita o escritor gaúcho Moacyr Scliar, que já se aventurou tanto pela ficção pura como na reconstituição biográfica - é de sua autoria A Majestade do Xingu, ficção que tem como um dos personagens o médico e sanitarista russo Noel Nutels, que emigrou para o Brasil em 1921. "Os escritores americanos que freqüentam listas de best-sellers costumam trabalhar com obras que exigem pesquisa e conhecimento; se vai escrever um livro sobre um hospital, ele pesquisa tudo sobre o assunto, entrevista pessoas, descobre como funcionam tais instituições." O resultado, porém, acredita Scliar, é que o consumidor desse tipo de obra tem a sensação de que está recebendo ficção com informação. "Trata-se de uma reportagem dramatizada, que se torna mais agradável à necessidade de determinados tipos de leitor." Há casos, no entanto, mais delicados, em que não está em questão detalhar como funciona um estabelecimento comercial, mas utilizar segredos de pessoas como material para a ficção. É o caso de Estórias Roubadas e, de maneira mais agressiva, de Ravelstein, livro escrito por Saul Bellow que provocou furor ao chegar às livrarias, no início do ano. Motivo: nele, Bellow, aos 84 anos, revela que um de seus amigos íntimos, Allan Bloom (o Ravelstein do título), era homossexual e sua morte, aos 62 anos, atribuída no obituário a uma hemorragia interna e falência do fígado foi, na verdade, causada pela aids. Alguns amigos de Bloom contestaram a causa da morte e colocam em questão as intenções de Bellow ao expor o seu colega de maneira tão indiscreta. Bellow revelou-se irredutível com o que chama de "testemunho dos meus sentimentos em relação a Bloom". O escritor americano defendeu-se também das críticas contra sua forma de elaborar ficção. Para ele, poucas pessoas entendem da prática literária e associam erroneamente fatos reais com os criados pela imaginação. Respeito - O caso rendeu comentários também no Brasil. "Allan Bloom escondeu, durante toda a vida, sua homossexualidade e, depois, que adoeceu, que era vítima de aids; suas reservas deveriam ser respeitadas", acredita o dramaturgo Alcione Araújo. "Revelar publicamente o que ele silenciou em vida é desrespeitar sua privacidade, violar a ética das relações e, sobretudo, trair a confiança da amizade." O autor de peças como A Caravana da Ilusão confessa não ter lido ainda Ravelstein, mas supõe que Bellow possa pensar que o silêncio sobre tais questões signifique uma submissão que reforça o preconceito e mascara a discriminação. "É um ponto de vista respeitável", pondera. "O inaceitável é impô-lo contra o desejo de Bloom e após sua morte." Araújo faz distinção da situação do livro com a representada em Estórias Roubadas. "Na trama da peça, não há revelação pública de nomes e lugares nem a traição a um pedido explícito de sigilo", comenta. "Houve o uso não autorizado de confidências pessoais, com um tratamento ficcional; pode ser abuso de confiança, mas se passa das suscetibilidades das relações pessoais." A preocupação de evitar perigosos arranhões nos sentimentos das pessoas próximas acompanhou a escritora Lygia Fagundes Telles na composição de sua última obra, chamada sintomaticamente Invenção e Memória. Nela, a escritora procurou trilhar livremente entre os fatos criados pela imaginação e suas recordações antigas, da infância e adolescência. Lygia julga-se incapaz de escrever sua autobiografia, pois a memória é todo tempo invadida pela imaginação. "Não existe memória pura", acredita. Para ela, existe, entre ficção e fatos reais, um sistema de vasos comunicantes, por meio do qual as idéias circulam livremente, influenciando umas às outras. Idéias - Assim, as lembranças transformam-se em ficções e, com a mesma facilidade e intensidade, ficções convertem-se em recordações. A conseqüência é até previsível: quando decide rememorar seu passado, o escritor pode até perder controle sobre a origem dos fatos - se realmente referem-se a eventos reais ou se estão invadidos por idéias criadas pela imaginação. A discussão, na verdade, é abrangente e atual, representando uma síntese de alguns dos impasses que pontuam a produção literária brasileira de hoje. Depois de uma produção pouco característica nos anos 80, a literatura do Brasil se reencontrou, na década de 90, no esteio dos romances históricos (Ana Miranda, Assis Brasil, Moacyr Scliar), da narrativa policial sofisticada forjada na escola de Rubem Fonseca e das grandes biografias como as assinadas por Fernando Morais e Ruy Castro. A década termina com o lançamento da coleção Literatura ou Morte, da Companhia das Letras, em que escritores são convidados a escrever ficção sobre personagens famosos. "É uma proposta criativa e descompromissada com um oportuno aproveitamento mercadológico da popularidade dos grandes mitos", comenta Alcione Araújo.