O atual presidente da Fundação Bienal de São Paulo, João Carlos de Figueiredo Ferraz, hoje com 65 anos, estava prestes a completar 16 quando seu pai, o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz (1918-1994), levou-o ao Masp para ver a derrubada do “paliteiro” que sustentaria o futuro museu, aberto no ano seguinte (1968) pela rainha Elizabeth da Inglaterra. Responsável pela engenharia da estrutura de concreto que suporta há meio século um dos maiores acervos de arte do mundo, ele deu ordem aos operários da obra para que retirassem os “palitos” de madeira, mas não foi obedecido, conta o filho. Era grande o temor de que o prédio, apoiado apenas em quatro colunas, desabasse. O engenheiro, responsável pelos cálculos do vão livre do Masp, pegou, então, uma marreta e começou a derrubar os caibros, sendo logo seguido pelos peões da obra.
A confiança do pai no próprio trabalho – o prédio do Masp na Paulista completa 50 anos em 2018 – foi o principal legado recebido pelo filho do ex-prefeito de São Paulo (de 1971 a 1973). João Carlos de Figueiredo Ferraz é tão confiante que acabou construindo uma das melhores coleções de arte contemporânea do Brasil, arriscando seu patrimônio em artistas jovens que apenas começavam a carreira há 30 anos. Para citar apenas um nome hoje internacionalmente reconhecido: Nuno Ramos. Mais: criou sem ajuda de nenhum governo um instituto em Ribeirão Preto que leva o sobrenome da família e é hoje a principal fonte de educação artística no interior paulista, num raio de 300 quilômetros.
O Instituto Figueiredo Ferraz abriga mais de mil obras de uma coleção que, em três décadas, reuniu não só contemporâneos brasileiros como artistas latino-americanos disputados no mercado internacional. Apesar disso, ele não se considera um visionário, como Ciccillo Matarazzo (1898-1977), o homem que criou a Bienal de São Paulo, hoje por ele presidida. Diz que fundou o instituto não por altruísmo, mas por egoísmo. Queria “contemplar” as obras guardadas em caixas e espalhadas por sua casa – e de parentes – até a construção de sua sede, inaugurada em 2011.
Um belo e imponente edifício moderno, bauhausiano, o instituto é parecido com o homem escolhido para dirigir a Fundação Bienal nos próximos quatro anos: discreto, elegante, repleto de informações e, acima de tudo, aberto ao público. João Carlos, um usineiro que trocou a doce cana-de-açúcar pela amarga missão de ensinar arte contemporânea a neófitos, ainda teve a coragem de instalar essa “escola” longe da Capital, lutando contra a retromania de cidadãos ancorados na arte do século 19.
Ao mudar de São Paulo para Ribeirão Preto, em 1982, João Carlos, convidado a organizar o tradicional salão de arte local, convidou três dos maiores críticos em atividade no país – Rodrigo Naves, Alberto Tassinari e Ronaldo Brito – para integrar a comissão julgadora dos trabalhos. Acostumadas a participar do salão, senhoras que pintavam naturezas-mortas e paisagens bucólicas, sentido-se excluídas, moveram um ruidoso protesto contra a transformação do salão num evento contemporâneo. Mais um traço que aproxima João Carlos do pai, que foi destituído do cargo de prefeito pelo governador Laudo Natel por estar à frente do seu tempo – o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz foi o responsável pelo início da construção da linha Norte Sul do metrô paulista.
Talvez isso explique o pouco interesse que o filho tenha por política. Ex-estudante da Universidade Prebisteriana Mackenzie, ele foi testemunha – sem participar – da histórica batalha da rua Maria Antonia (Mackenzie versus USP) durante a ditadura, em outubro de 1968. A então reitora do Mackenzie, sua tia Esther de Figueiredo Ferraz (1915-2008), seria mais tarde a primeira ministra mulher do Brasil, assumindo a pasta da Educação na transição para o regime democrático, o que garantiu mais recursos para o setor em 1985, ao promover a reforma universitária.
Com toda essa herança familiar, é natural que se espere de João Carlos um papel de protagonista na história política do País. O presidente da Bienal, no entanto, tem ambições modestas. “Se, por acaso, estou fazendo algo positivo, é o trabalho educativo do instituto, levando arte a diferentes categorias sociais, indistintamente”, diz. Arte, conclui Figueiredo Ferraz, “é o único registro confiável do nosso tempo, pois não tem censura, nem bloqueio”.
Foi por acreditar nisso que ele, para choque dos amigos usineiros, começou a comprar alguns objetos “esquisitos” como uma moto moldada em plástico vermelha (do escultor Sérgio Romagnolo) e assemblages pantagruélicas de Nuno Ramos. O próprio João Carlos admite que, ao começar sua coleção – com uma tela do carioca Jorginho Guinle, morto em 1987 – pouco entendia de arte. “Foram galeristas e marchands que me guiaram, o que explica minha fidelidade a eles”, observa, confirmando o que todos sabem: ele não compra em ateliê de artista. Até porque, explica, “se ele está numa galeria, é porque já passou pelo crivo de um especialista”.
Obviamente, ele esqueceu de dizer que um bom olho e intuição ajudam: em 1988 ele comprou um dos 12 ‘sarrafos’ de Mira Schendel, que, na época, valiam algo em torno de US$ 8 mil (hoje, esse preço ultrapassa a casa dos milhões). E João Carlos tinha apenas três anos de estrada como colecionador. A primeira Bienal que visitou foi em 1985, a da “Grande Tela”, que colocou lado a lado os neoxpressionistas. Um ano depois, comprou a primeira tela de um integrante da Casa 7, Nuno Ramos, prova de sua ousadia, que hoje responde pela escolha do curador da próxima Bienal, o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro.
Leia o artigo de João Carlos de Figueiredo Ferraz sobre a Bienal de São Paulo